segunda-feira, 16 de julho de 2012

Web Novela - A Melancolia de Raymond - 2

II

Eu aprendi cedo a me transformar em lince.
Foi uma coisa que fez minha vida mudar por inteiro. Não que me tornar um gato seja interessante assim, mas me possibilitou conhecer lugares que eu nunca imaginei conhecer. O telhado das casas, o topo das construções, eu os alcançava sem dificuldade. Saltava, via o céu se comprimir, o vento tentar me rasgar, e então pousava, indiferente à altura, com a maciez de uma pluma, seguindo em meu desfile de cauda levantada.
Mas eu pouco utilizava meu dom na cidade onde vivia. Não seria legal para os homens sem mágica ver um lince por aí, à solta. Eles ficariam, no mínimo, intrigados.
Nessas horas eu praguejava por não me tornar um gato comum.
Um dia, estava eu a deslizar sobre as rodas de meu skate, como muito tenho o costume de fazer, quando eles apareceram. Os mesmos magos que me maltratavam, que ousavam apontar suas imundices em meu rosto e me culpar por nascer filho de pai sem magia. Eram herdeiros da guerra, eu sabia. Eu era somente um garoto, filho de porcos, sem dinheiro e sem poder.
Durante muitos anos, eu sofri silenciado. Deixava que me cobrissem os lábios, escondia as marcas no corpo após as torturas que me eram impostas.
Naquele dia foi diferente.
Eu pensava em minha mãe, em sua loucura. Pensava no rosto de meu pai, contorcido pela ira do preconceito, expurgado somente por ser diferente, ou ser normal num mundo de diferentes. Pensava na vida de merda à qual eu tinha de me submeter, sem entender o mundo, sem entender meus poderes, sem entender a mim mesmo.
Quando eles me provocaram, eu revidei. Retruquei, inicialmente com palavras, logo após com a magia que entrelaçava meus dedos. O vento solidificado me servia de rampa, mas ali mostrou-se de uso variável, afagando o pescoço de um deles enquanto lhe privava do ato de respirar. Eu poderia tê-lo matado, ou todos eles.
Não o fiz.
Deixei-os ali, com meros resquícios de consciência, e fugi. Não fugi para longe, entretanto. Fugi para sobre os muros, nos olhos de um felino de tamanho incomum, na pelugem de um animal cuja inocência se provava com um simples ronronar. Dali, assisti enquanto uma viatura policial encostou, ajudou os garotos a serem carregados para uma ambulância. Eu ouvi uma enfermeira alertar seu companheiro de que um deles teria sequelas cerebrais pela falta de oxigênio. Outro chegou tão perto da morte que era inacreditável o fato dele poder respirar novamente. Aquilo era uma atrocidade e, pior do que isso, uma atrocidade que a milícia jamais seria capaz de explicar.
Eu me senti culpado por instantes, mas a culpa não era minha.
Quem fez aquilo era um garoto, um feiticeiro, um bruxo.
Eu era somente um lince.

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