quarta-feira, 4 de julho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 3 / Ato XVII


XVII

“O que o senhor vai fazer, doutor?”
Trevor se levantou, sem aviso, buscando algo escondido entre suas prateleiras. Não gostava de usar aquilo, sabia dos riscos. Mas aquele caso era peculiar, complexo demais para que sua magia funcionasse. Precisava do espelho. Era preciso pois, antes mesmo de que ele entendesse as motivações de Evelyn, assim como sua dor e seu sofrimento, ela mesma tinha de se entender.
Tinha de ver a verdade dentro de si.
“O que é isso?”
Terminando de desembrulhar o artefato, Trevor respondeu:
“Um espelho, senhorita Evelyn.”
“E o que fará com um espelho?”
“Esse espelho faz parte do seu tratamento. Eu entendo o que se passa dentro de sua mente, entendo as dificuldades de sua vida. Agora, é hora de você entender. Esse espelho é especial, e seu reflexo é muito mais do que uma simples imagem. Não espere se ver por fora, Evelyn. Você tem de se entender por dentro.”
“O senhor é louco, também.”
“Um pouco.”
Ambos riram.
Trevor entregou o fragmento do espelho para Evelyn.
“Quando estiver pronta.”
“Demorei nove meses para nascer, doutor. Se me faltasse algo para estar pronta, demoraria menos.”
E, sem hesitar, Evelyn fitou seu reflexo naquele artefato, e gritou por todos os demônios que a assombravam.
Trevor esperou, como sempre esperava. Assistiu enquanto Evelyn grunhia, agonizando uma dor indescritível, inerte em seu assento. Tocou-a com ambas as mãos, os braços tremulando pela vibração de seus bramidos, acompanhando as lamúrias de seus pavores.
O ceifador fechou os olhos, atirando-se para dentro da consciência perturbada daquela mulher.
Encontrou uma paisagem assustadora.
Era uma floresta, ou deveria ser. Cada árvore tinha galhos metálicos, cada arbusto tinha folhas escarlates. A escuridão se espalhava mesmo ante o sol que irradiava ao longe, incapaz de trespassar a densidade daquele cerco rubro e torturante. Alguns olhos se moviam nas sombras, vermelhos como cada pétala das flores, brilhosos como a estrela que iluminava o belo dia que seguia além dos limites daquele escudo de vermelhidão.
Amarrada por correntes cobreadas, enquanto cada uma delas forçava seu corpo numa direção diferente, Evelyn choramingava. A dor era imensa, mas não a dor física. Seus olhos estavam fechados, mas despejavam lágrimas banhadas por seu sangue. Sua dor não vinha da tortura fantasiosa, mas sim do castigo real de se ver por dentro, de entender a verdadeira faceta do ser humano, de si mesma.
Abaixo de seu corpo, suspenso na armadilha das assombrações que a perseguiam, um casal de seres observava. Eram disformes, o homem tinha seis braços, a mulher tinha uma cauda de sereia. Ele não tinha olhos, mas cada uma de suas seis bocarras ria com um prazer sádico e sinistro; ela vomitava atrocidades, vermes e mais vermes que deslizavam rapidamente após tombar ao solo, jorrando de seu estômago rompido ao mesmo tempo em que eram cuspidos pela fêmea monstruosa que acompanhava o monstro.
Aquelas eram as sombras dos pais de Evelyn, Trevor sabia. Ao menos, a sombra do que restou de suas existências, após serem assassinados pela própria filha. Fantasmas, espectros de passado corrompido, mas agora nada além de assombros para aquela jovem, destruindo sua mente da mesma maneira que a realidade fazia naquele instante.
“Temos um intruso.”
As palavras saíram de seis bocas em coro, lembrando uma orquestra cantarolando pragas. Eram ásperas, roucas e graves, vozes capazes de torturar os mais fracos.
Não Trevor.
“O que ele é?”
“Um intruso, e apenas isso. Vamos nos divertir com ele também.”
O ceifador não hesitou. Ergueu os braços para o teto de folhas vermelhas, tirando do inexistente sua foice de ceifador.
“Que tal se eu me divertir com vocês também?”
“Um ceifador!”
“O que é isso, pai?”
“Ele está aqui para nos matar, mãe!”
O tratamento de marido e mulher permanecia, mas não enganava Trevor. Eram sombras, e nada mais. Monstros. Tinham de morrer.
“Está enganado. Não estou aqui para matá-los, como acredita. Estou aqui para libertar a filha de vocês desta tortura que estão causando. Vocês já estão mortos há tempos.”
“Libertar? Você sabe o que ela nos fez, ceifador?! Sabe do que essa mulher que você está ajudando é capaz?!”
“Tomara que ela o empurre da janela de um prédio também, seu porco!”
“Eu sei do que ela é capaz, meus caros, e não aprovo suas atitudes. Ainda assim, vocês foram os pais dela em vida, e são culpados pela revolta que extinguiu os limites nas ações de Evelyn. Agora mesmo, por estarem assombrando a própria filha, sei que são pais que nunca a amaram durante a vida inteira.”
O monstro-pai se aproximou, grunhindo o que parecia uma gargalhada.
“Amar? O que é amar para você, ceifador?”
“Não é nada perto do que tentaram fazer.”
“Então vai nos eliminar? Por acreditar nas palavras daquela vadia, vai nos destruir aqui, em nosso único lar? Vai acabar com o nosso último vestígio de sobrevivência?”
A foice dançou, acompanhando um movimento sagaz e imperceptível do ceifador, onde o tilintar da lâmina contra as rochas foi a última badalada de uma marcha fúnebre. O monstro-pai jorrou sangue, um líquido espesso e verdejante, despejado junto de pedaços do que pareciam seus órgãos.
“O que você...”
“Para aprender a não chamar sua própria filha de vadia, amigo. Boa viagem.”
E a foice cortou outra vez, partindo aquela criatura sem que houvesse tempo para reações.
O monstro-mãe fintou, cuspiu um batalhão asqueroso de pragas vivas, ordenou que atacassem sem piedade. Trevor estudou a paisagem, limpou a área com sua lâmina, derrubou árvores e mais árvores um corte circular. Saltou por sobre um caule mórbido, pousou num galho mais elevado, investiu como um trovão na direção daquele ser meio-peixe, meio-aberração. Com um movimento experiente, separou o torso da cauda anfíbia, que se debatia involuntariamente enquanto desfazia-se em pequenas bactérias.
O monstro-mãe urrava.
“Você não pode salvá-la! Ela é um caso perdido!”
“Vocês são um caso perdido.”
Houve gritos por mais alguns instantes, mas logo cessaram, restando o silêncio daquele devaneio.
Um silêncio que pouco durou, aturdido pelos gritos do castigo de Evelyn.
“Fique calma, Evelyn! Você tem que superar isso!”
Trevor pensou em ajudá-la, mas falhou. O chão abaixo de si tremeu num estrondo, um tremor incontrolável que o impedia de manter-se em pé. Apoiou-se numa árvore, mas toda a floresta ao seu redor desmoronava, o céu partindo-se como um vidro fragilizado. O terremoto aumentou, fez o sol desabar sobre aquele mundo surreal, seguido por um turbilhão de estrelas e nuvens.
Evelyn ainda presa em correntes, esticadas por uma força sobrenatural, para lugar nenhum.
(O que é isso?)
“Você pode me ver?”
Aquela voz encantou Trevor. Por um instante, um rápido quarto de segundo, esqueceu-se de Evelyn, de seu próprio nome, de seu propósito na vida. Restava apenas aquela voz chamejante, capaz de reerguer um exército exausto para uma nova onda de combate.
“Pode me ouvir?”
Era uma mulher linda, de cabelos negros e pele pálida. Desenhos ilustravam seus antebraços, metal adornava seus lábios e suas orelhas. A tez pálida ruborizava pelo esforço de se prender numa das rochas, enquanto o solo abaixo de si inexistia, transformando em nada aquele mundo de falsidades, criado apenas pela loucura daquela paciente.
“Eu preciso de ajuda!”
Trevor se perdeu naqueles olhos bicolores. O verde o deslumbrou, o violeta impregnou seu espírito.
“Escute-me, eu preciso de ajuda! Ele está chegando, você tem que me ajudar! Ele está vindo! Ele vai nos matar!”
A mente de Trevor parecia não funcionar. Estava repleto de dúvidas, mas não pôde formular nenhuma delas, pois seus lábios estavam amarrados pela visão encantadora daquela mulher. Ela estava em perigo, precisava de ajuda. O mundo ruía, Trevor era sua única esperança.
Atrás dele, Evelyn sentia o corpo se despedaçar nas correntes.
“Eu tenho tanto medo! Ele vai nos matar! Eu não quero morrer!”
Então, a presença. Uma presença maligna, um tormento para a alma do ceifador, que tinha de se esforçar ao limite para que sua vontade não fosse pulverizada por aquela força. A mulher suplicava, implorava por sua vida, gritava por seus medos. Trevor estava paralisado, perdido em sua própria fantasia, sem reação alguma.
Evelyn morria, mas ele não percebeu. Tinha olhos para apenas uma coisa.
Correu na direção daquela mulher desconhecida, atirando-se para ela com os braços protetores, salvando-a daquilo que se aproximava, ou que esteve sempre ali, escondido numa máscara ornamentada em beleza.

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