terça-feira, 10 de julho de 2012

Light Novel - Desejos de Juno - Prólogo

Olá, companheiros.
Inicio agora uma nova Light Novel, a primeira de uma série chamada Desejos de Juno. Neste primeiro volume, intitulado A Cauda do Escorpião, teremos cinco capítulos longos (já contando o prólogo), diferente das demais Light Novel que postei aqui, portanto o ritmo das postagens será diferente. Tudo depende, é claro. Hoje trago a vocês o Prólogo, e em breve deverei trazer o próximo, chamado Reiseziel. Até lá, espero que apreciem a leitura de Desejos de Juno!
Até a próxima!


Prólogo

Dylan Lorenzo era um bom garoto.
Infelizmente, bons garotos tendem a sofrer nas mãos dos aproveitadores e, com Dylan, não foi diferente.
Era um dia como outro qualquer, pois todos os dias eram assim. Estava acostumado, não faria diferença. Deitado sobre o cimento frio da quadra, Dylan pensava em sua vida. Aos onze anos, sempre fora maltratado pelos colegas de classe, como era naquele mesmo momento. Sempre humilhado ante seus companheiros, tão covardes quanto ele próprio, assistindo ao exibicionismo impassível daqueles que o utilizavam como saco de pancadas. Pensava em seu futuro. Poderia conviver com aquilo para sempre? Poderia suportar aqueles hábitos doentios das pessoas ao seu redor?
Talvez devesse concordar com o desejo de seus pais, ambos militares da Elizei, a milícia de sua região, e se unir às forças armadas. Estudando para ser um cadete, ganharia o respeito que sempre almejou, por mais que fosse necessário desgraçar a vida que tinha em mente. Não gostava da milícia, do trabalho dos pais, de nada que se envolvesse com aquela farda imaculada. Não desejava aquilo para si.
Agora, atirado mais uma vez sobre o chão frio e sujo de sua escola, pensava se não seria uma boa solução.
“Vai ficar deitado o dia todo, pobrezinho?”
Aquele que o provocava era Julian Valentin, o grande líder da máfia dos valentões. Junto de seus capangas, Julian sempre demonstrava para toda a escola seu talento nato para a luta, e o boneco de suas brincadeiras era sempre Dylan. Algumas vezes outros estudantes atípicos, mas Dylan era seu favorito.
“Vamos, me responda! Pretende ficar aí o dia todo, covarde?”
Talvez fosse a melhor solução. Ali, Dylan escutava os pássaros, o assovio das aves que se amontoavam nas árvores. Ali, escutava o burburinho sobre sua fraqueza, as risadas das garotas porcas que admiravam aqueles atos, os suspiros inconsequentes de seus companheiros temerosos. Ali, pensava em sua vida, não recebia socos ou chutes por isso. O clima quente se acomodava no chão gélido, a brisa atingia seu rosto, o brilho do sol incomodava os olhos, mesmo que fechados. Poderia ficar ali por muito tempo, fingindo que nada daquilo estava acontecendo.
Esta era sua especialidade: fingir que nada acontecia.
Sentiu um chute no estômago, tossiu.
“Levante, seu idiota.”
Julian empurrou o corpo de Dylan com os pés, zombando. Seus companheiros riam. Muita gente ria, mas isso não importava. Dylan se deixou levar, fingiu-se inconsciente. Era bom em fingir. Era bom em ignorar. Decidiu que ignoraria a voz de Julian até que aquela situação terminasse.
“Eu posso te ajudar.”
Aquela não era a voz de Julian.
“Não fale.” A voz continuou. “Vão pensar que você endoideceu. Apenas me escute: eu posso te ajudar.”
De quem era aquela voz estranha? Parecia vir da mente de Dylan, como um amigo imaginário, mas ele tinha seus onze anos, não acreditava mais nessas coisas. Sentia-se tomado por uma sensação diferente, um calor peculiar. Abriu os olhos, encontrou Julian se gabando por uma nova vitória, um círculo de pessoas o circundava. Apontavam, comentavam, riam. Logo o diretor estaria ali, ou algum professor, tudo estaria acabado. Só precisava esperar e...
“Vai realmente deixar isso acontecer?” A voz era intensa, vinha de lugar nenhum, ao mesmo tempo em que vinha de todos os lugares. “Sabe que, se não reagir, ele voltará a incomodá-lo, não sabe? Você tem esperado essas coisas passarem há muito tempo, Dylan, elas sempre voltam. Vai deixar que isso aconteça durante toda sua vida?”
Não era seu maior desejo, mas o que poderia fazer? Era fraco, era medroso, não sabia lutar ou se defender. Julian era um brigão, Dylan era um estudioso, e a vida tende a valorizar os atributos mais utilizados por cada um. Julian utilizava os músculos, Dylan, seu cérebro, e assim as lutas tornavam-se fáceis para o valentão. O que aquela voz estranha queria que ele fizesse? Levantasse e enfrentasse aquele monstro que tanto o amedrontava?
“Exatamente isso.”
Ela falou, como se respondesse às suas perguntas. Como se fosse capaz de escutar seus pensamentos.
“E sou, Dylan. Posso escutar cada pensamento seu. Posso conversar contigo, com sua mente, escutar e responder. Somos amigos, Dylan, e poderemos ser muito mais se assim você desejar.”
O que estava acontecendo? O que era aquela voz? Dylan estava confuso, sentia-se mal. Acima dele, Julian apontava o dedo em seu rosto, humilhava-o, mas Dylan não o escutava. Estava o ignorando, como se desligasse por completo seus sentidos para com aquela pessoa. Mesmo seus golpes pareciam não doer, ainda que fossem um incômodo horas mais tarde.
“Só preciso que você me diga, Dylan, que você pense que quer me ajuda. Se decidir assim, farei o possível para que você se mostre capaz, e tenho certeza que conseguirá. Você é forte, Dylan, em espírito. Isso é muito mais importante do que os braços largos deste moleque imprestável. Você sabe disso, sabe o que é importante para sua vida. Sabe que ele não tem nada de bom, que é uma caixa vazia, um aglomerado de carne incapaz de pensar. Sabe que tem de reagir, ou isso nunca vai acabar. Que seja agora.”
Os pássaros pararam de silvar, o burburinho sumiu. Por um momento, Dylan deixou de sentir mesmo os raios de sol. Era como se ele estivesse concentrado naquela voz, naquele companheiro, escutasse apenas ele.
“Não está me escutando?!” Julian gritou em sua cara, sua saliva encharcou as bochechas de Dylan.
Os olhos estavam abertos, mas não viam o garoto que o ameaçava. Viam além. Uma árvore distante tomada por pássaros e flores e frutos. E olhares.
“O que você quer, Dylan?”
Queria ser forte. Queria reagir. Queria ser corajoso para enfrentar aquele brutamontes, para derrubá-lo com apenas um soco, em troca de todos aqueles que levou durante anos de sua vida escolar. Retribuir toda aquela humilhação, descontar a raiva que reprimiu durante muito tempo.
Precisava de ajuda.
“Confie em mim, Dylan, você tem que confiar em mim. Agora, você vai se levantar, vai empurrá-lo, vai socá-lo como nunca fez a ninguém. Eu estou contigo, estou do seu lado. Você vai conseguir. Tenho certeza de que pode fazer isso.”
E podia. Limpou o rosto umedecido pela baba asquerosa de Julian, se levantou. O valentão se preparava para ir embora, virou-se para ele, achou graça. Largou a mochila nas mãos de um de seus companheiros, abriu um sorriso largo e malicioso.
“Resolveu apanhar mais, Dylan?” Abria os braços para seu público, era aplaudido. Dylan era vaiado, garotas gritavam ofensas, pediam para que ele fosse socado até a morte. O mesmo povo nojento de sempre.
“Não.”
Dylan respondeu, e se surpreendeu por isso. Nunca falara com Julian, nunca sequer ousara pedir para que ele parasse. Agora, falou. A voz trespassou seus lábios com rebeldia, fora de controle. Estava confiante, confiante demais. Pensou, por um momento, se aquela voz em sua mente era real, se aqueles olhares que vira na árvore não eram alucinações. Era possível, após tantas pancadas, que ele estivesse vendo coisas. Torceu para que fosse real. Torceu para que acertasse seu soco, e que tudo desse certo.
Fingiu estar bem. Era ótimo em fingir.
“Não quer apanhar mais?”
“Não vou. Resolvi outra coisa.”
“E o que você resolveu, amiguinho?”
Firmou os pés, cerrou os punhos. Nunca fizera aquilo antes. Respirou.
“Resolvi que é a sua vez de cair.”
Todos se espantaram. Os gritos pararam. Aquela turba de crianças arregalou os olhos, os amigos de Dylan estavam boquiabertos. Não hesitou. Queria correr, queria fugir, mas não o faria. Fingiu que estava bem, enganou a si mesmo. Manteve-se impassível.
Julian franziu o cenho.
“Acho que você errou as palavras, garotinha.”
Correu na direção de Dylan, mas estava lento. Aos olhos de Dylan, movia-se como uma lesma, cada passo era vagaroso e desastrado. Em um segundo, Dylan enxergou todas as possibilidades, os alvos, as partes do corpo em que poderia atingi-lo. Foi uma sensação estranha, mas Dylan pôde ver toda a anatomia de Julian por um instante, e então decidir o que deveria alvejar.
Escolheu o maxilar.
O tempo voltou a correr, Julian acelerou. Dylan não foi surpreendido. Sabia exatamente como ele se moveria. Esperou, esquivou-se de seu golpe, admirou a expressão bizarra de surpresa que assolou aquele que tanto se aproveitara de sua fraqueza. Não era mais fraco. Sentiu-se animalesco, sentiu-se poderoso. Dentro de si, um urso urrava, faminto. Deixou que a fera o dominasse, controlasse seu punho, a curva foi perfeita. Sentiu seus dedos estalarem em contato com o rosto de Julian, um osso se partiu. Não era dele.
O valentão tombou, rolou para trás, gritava. A roda se abriu, surgiram professores, a inspetora de alunos correu até Julian. Dois professores seguraram Dylan, mas ele não se debatia. Apenas assistia. Tinha um sorrido prazeroso no rosto.
“O que aconteceu?”
Era o diretor, sempre preocupado com seus alunos, ainda que não pudesse resolver muitas coisas. A inspetora, estagiária de enfermagem, examinou o garoto que agonizava no chão. Seu sangue empoçava o chão, o rosto estava encharcado de vermelho.
“Ele está machucado.” Ela o tirou do chão com ajuda do professor de educação física. “O maxilar parece quebrado. Temos que levá-lo a um hospital!”
O diretor se espantou, correu para junto do aluno ferido, colocou-o em seu carro particular. Os professores que seguravam Dylan se ajoelharam próximos ao garoto, os demais dispersaram a turba de observadores, todos chocados com a situação.
“O que você fez?”
Dylan sequer soube dizer quem fez aquela pergunta. Não deveria ter uma resposta preparada, nunca respondera a um professor. Ali, entretanto, havia uma.
“Não fiz nada, professor. Apenas devolvi o que ele me fez todos esses anos. De uma só vez.”
Agradeceu à voz, mas ela não o respondeu.
Nunca mais a ouviu.

***

Até então.
Dylan cresceu. Vários anos se passaram, e o garoto se tornou um homem. Não se tornou militar, como os pais queriam. Seria obrigado, mas ambos morreram num acidente de seus serviços, uma experiência traumatizante por um lado, mas gratificante por outro. Sem a pressão dos parentes, Dylan pôde escolher seu caminho, o rumo que deveria trilhar em sua vida. Malhou, ganhou vigor, resistência, força. Abandonou os estudos, mas não o cérebro. Aquele soco de sua infância o marcara para sempre. Gostou da sensação.
“Você está pronto para a luta de hoje?”
Escolhera as lutas como profissão.
Aquele que falava com ele era o velho Victor, seu treinador. Victor esteve presente durante quase toda a vida de Dylan, o auxiliando com treinos, com dietas, com a saúde e o vigor. Era como um pai, diferente dos escravos de Elizei que viveram na mesma casa do garoto. Juntos, nunca perderam uma luta. Dylan era talentoso, tinha vontade, garra, almejava a vitória. Victor trabalhava duro, insistia, apoiava. Eram um grupo, e sempre venciam.
“Estou pronto para todas as lutas.”
“Gosto da sua determinação.”
O velho se sentou ao lado de Dylan, que relaxava. Após um banho veloz, restavam ainda algumas horas antes daquele confronto importante. Dylan iniciou seu treinamento aos quatorze anos, esforçou-se como ninguém. Oito anos mais tarde, aos vinte e dois, alcançava sua oportunidade de ouro. Naquele ano, o campeonato mundial fora levado à sua cidade-nação, o que garantiu a ele uma vaga de imediato. Lutara, derrubando um a um seus oponentes, era um recordista. Aquela seria sua última luta. Se vencesse, seria considerado o melhor lutador de Armor Boxing do mundo. Não perderia, de modo algum.
“É uma herança sua, mestre.”
Victor riu alto.
“Ora, não me chame de mestre, seu garoto insolente! Não te ensine metade do que sabe. Você tem talento, não podemos negar. Resta saber se tem força para derrotar o oponente de hoje?”
“Acha mesmo que eu vou perder? Rachel estará aí, Victor. Não posso levar nem mesmo um soco hoje.”
Rachel era a namorada de Dylan, sua prometida. Não gostava de suas lutas, mas apoiava suas escolhas. Ainda assim, nunca assistia nenhuma das apresentações, pois odiava ver o namorado ser esmurrado, mesmo que vitorioso. Já era ruim ter de ajudá-lo a se medicar depois. Aquela luta, porém, era diferente. Era especial, única, a maior chance da carreira de Dylan. Rachel relutou, mas concordou em assistir. Estaria lá, numa das principais cadeiras, bem próxima ao ringue. Torceria por Dylan, vibraria com seus golpes, com sua vitória.
“Vai pedi-la em casamento após a luta?”
Dylan corou.
“É o plano. Por isso não posso levar nenhum soco. Seria estranho um pedido de casamento feito por um cara com o rosto inchado.”
“Não fique tão confiante, Dylan. Seu oponente não é nenhum homem milagroso, mas está disputando o mesmo título que você. Pode não ter renome, mas tem vontade, e deseja tanto quanto você, senão mais, a vitória.”
“Eu sei, eu sei, pode ficar tranquilo, Victor. Não vou me atirar de guarda aberta em cima daquele cara. Não vou mentir, estou nervoso.”
“Está com medo?”
“Fala sério, jamais! Levar alguns golpes não é problema para mim, nunca foi. Não vou cair esta noite, mestre, pode ter certeza. Fez alguma aposta hoje?”
“Preferi ficar longe dos apostadores. Sabe, para dar sorte.”
“Não gosto de superstições.”
“Nem eu.”
Riram juntos.
“Boa sorte.”
O treinador se levantou, preparou-se para partir.
“Ei, Victor.”
“Pois não?”
“Obrigado por tudo. Sinto que tenho uma fera dentro de mim, pronta para derrotar qualquer um que me desafiar. E devo isto a você, cara.”
Victor acenou, sem se virar.
“Tome cuidado para esta mesma fera não te devorar, Dylan. Esta já seria uma boa recompensa.” Parou, voltando-se com um sorriso. “E vença hoje, maldito, ou vou te jogar num rio esta madrugada.”

***

Ao longe, a noite surgia soturna, engolindo a claridade do fim de tarde. Os prédios de Ylenia se camuflavam na escuridão, a lua minguante não brilhava com fulgor. Luzes artificiais se estendiam por todas as ruas, espalhadas em postes e outdoors, faziam seguro o caminho dos automóveis, muitos destinados ao mesmo lugar. O Estádio Central de Ylenia seria palco de um espetáculo grandioso, e a população da cidade, famosa por honrar sua simbologia e seus costumes, não deixaria de apoiar aquele jovem lutador.
Havia aqueles, entretanto, com interesses atípicos.
Uma mulher sedutora aguardava, pacientemente, no terraço de um arranha-céu. Usava um óculos estreito e escuro, similar a seu cabelo escorrido. As vestes valorizavam os seios e as pernas, o salto alto a fazia parecer enorme. Soprava a fumaça de um cigarro para o ar, enquanto examinava um aparelho eletrônico peculiar com a outra mão.
“Vai me vigiar até quando, Kilian?”
Sua voz provocante deu lugar a um sibilar grotesco. O espaço e o tempo se rasgaram num corte, e deste surgiu uma víbora larga e desajeitada. Desabou sobre o teto da construção, e lá vomitou um homem de maneira nojenta. Ele se ergueu, limpou as roupas estranhas, ajeitou as ombreiras. Tinha olhos de serpente.
“Esqueço-me de sua percepção, Davinia.”
“E eu de seus hábitos asquerosos. O que deseja aqui?”
“Acredito que o mesmo que você. Também notou sua aproximação, não é?”
Davinia praguejou.
“Não há como negar.” Virou-se para a cidade, observando o fluxo de carros. “Está perto, podemos sentir. Todos aqueles que já a viram uma vez podem.”
“Quem sabe agora não teremos resultados melhores.”
“Estou preocupada.”
“Com o quê?”
“Com tudo isso. Com você, com eles. Com ela.”
“Faça como eu, entenda tudo isto como um jogo. Um simples jogo, onde o vitorioso pode escolher o seu prêmio. Vai ver como as coisas vão parecer mais simples.”
“Nada é simples quando mexemos com a vida de outras pessoas, Kilian. Você é nojento.”
“Sou uma cobra, Davinia. É inevitável ser traiçoeiro.”
A mulher deu um último trago, jogou seu cigarro para a cidade, assistiu até que ele desaparecesse.
“Talvez você tenha razão.”

***

A hora se aproximava.
Os lutadores começavam a se preparara em seus vestiários. O Armor Boxing era um pouco diferente das modalidades tradicionais do boxe, o que o tornava um esporte mais bruto. Ao invés das roupas desprotegidas das brigas convencionais, os lutadores se protegiam com resistentes placas metálicas, ainda que leves. Não eram incômodas, e cumpriam bem suas finalidades. Dispersas nas juntas e em demais peças do corpo, lembravam a plateia dos guerreiros de épocas remotas, medievais, o que instigava os torcedores. Cobertos daquela maneira, os desafiantes tinham de apostar muito alto em seus golpes, pois o impacto era muito menor do que ao se atingir o próprio corpo.
As armaduras carregavam as cores e símbolos de cada equipe de treinamento, geralmente honrando a cidade de origem, ou um ginásio específico. Dylan trajava suas proteções convencionais, adornadas com o emblema de sua cidade, Ylenia, um cavalo de ouro postado em duas patas, desbravando um vulcão em chamas. As cores típicas da região também estavam lá, sendo vermelho mais valorizado que o dourado.
Victor fez os últimos ajustes na armadura de Dylan.
“Como está se sentindo?”
“Campeão mundial.”
“Pare de dizer asneiras.”
“Mas é sério! O cavalo de Ylenia vai esmagar aquela fuinha de Abigail! Vamos mostrar a eles como um vulcão pode derreter o gelo de seus corações!”
Victor ergueu uma das sobrancelhas.
“Brincadeira, só estou um pouco nervoso.”
“Imaginei. Sua noiva já está em seu assento, Dylan.”
“Você a viu?”
“Sim, e se me permite, ela está radiante. Não sei para quê se arrumar tanto, sabendo que você vai sair daqui estourado.”
Riram, mas Dylan estava trêmulo.
“Eu não posso perder hoje, Victor.”
“E não vai. Confio em você. Vou te deixar sozinho. Faltam alguns minutos, aproveite para relaxar.”
Victor se levantou, bateu contra o elmo de Dylan, apertou sua mão. Saiu, deixando o lutador sozinho com seu nervosismo.
Dylan ergueu os punhos à frente do rosto.
“Vamos lá, vocês podem ser os melhores do mundo. Vamos derrotar aquele cara, mostrar para aquela cidade quem é que manda. Sei que posso vencer, sei que posso ser o campeão. Só preciso ganhar mais esta luta. Rachel vai se orgulhar de mim, tenho certeza!”
Fechou os olhos, se concentrou. A mente girava, distante daquele momento, daquele lugar.
Tinha um mau pressentimento.
Os alto-falantes estrondaram com a voz do juiz.
“Boa noite, torcedores! Sejam bem-vindos ao Estádio Central de Ylenia, onde teremos a luta mais aguardada do Armor Boxing deste ano! O povo de Abigail vibra, juntamente da torcida de Ylenia, quando dois de seus maiores guerreiros pisam no mesmo ringue, em lados opostos! Vamos conhecê-los?”
Dylan suspirou.
Bateu as luvas e se levantou.

***

Ylenia tinha uma construção fenomenal que interligava duas áreas da cidade, o Subúrbio e a Terra da Realeza. Essa ponte gloriosa era chamada de Arco de Gael, em homenagem a um nobre trabalhador de tempos remotos, responsável pela arquitetura e pelo planejamento desta obra magnífica.
Naquela noite, havia poucos carros passando pela extensão da ponte, o que a deixava sombria. Alguns casais de namorados se sentavam nos bancos de madeira espalhados pelas amuradas, de onde observavam as águas tranquilas da Praia de Lluvia, o que era um hábito comum.
Estranhas eram as garotas que se postavam acima da ponte. Não havia um meio de chegar àquele lugar. Não havia escadarias, elevadores, cabos de aço, nada. Ninguém alcançaria àquela altura, exceto pilotos de helicópteros ou suicidas. Naquela noite, entretanto, havia duas garotas. Lembravam adolescentes, inexpressivas e belas, usando roupas garbosas com adornos de penas e de aço. Uma tinha cabelo azulado, manhoso ante a presença da lua. A outra tinha fios avermelhados, dividindo espaço com mechas rosadas. Exceto por este detalhe, eram idênticas.
“Está ouvindo, Luna?”
A garota de cabelos azuis assentiu.
“Mais que ouvindo, Coral. Posso sentir a Seiren. É tão forte quanto na Malícia.”
“Mas é diferente.”
“Certamente.”
“É algo bom.”
“Será mesmo?”
“Parece, ao menos. Diferente da Malícia, esta Seiren não parece capaz de matar. O que acontecerá dessa vez, irmã?”
“Não sei lhe responder, Coral, mas torço para que a história seja diferente. Aquelas pessoas já sentiram também, tenho certeza. Temos que tomar cuidado. Logo os Uberein começarão a se mover. Teremos mais Vongeist envolvidos desta vez. Só nos resta torcer para que o curso das ações leve a um resultado diferente do passado.”
A lua minguante estava fosca, brilhava sem forças no céu sombrio. Então, de súbito, irradiou.
“Está começando.”

***

Dylan se encostou ao canto do ringue. Do outro lado, seu oponente vestia a armadura cinzenta e azulada de Abigail, representando a fuinha na neve que simbolizava a cidade-nação. Lançou um último olhar à plateia, encontrou Rachel, seu sorriso, seus olhos preocupados. Sentiu-se forte.
“Preparados?”
O juiz postou-se ao centro do ringue, encostou as mãos nas luvas de cada lutador. Sussurrou:
“Sabem as regras, meus caros, não queremos uma luta marcada negativamente. São novos, e esta é a oportunidade para que se tornem famosos, campeões mundiais. Honrem esta noite, qualquer que seja o resultado.”
Ambos assentiram.
“Cumprimentem-se.”
Obedeceram, trocaram acenos, os olhos mostravam a vontade de cada um. O juiz se afastou e soou o gongo, dando início àquela luta tão esperada.
Finalmente havia começado.
Victor sentou-se ao lado de Rachel, que estava apreensiva.
“Acha que ele pode vencer, Victor?”
Rachel era uma garota bonita, pronta para se tornar uma linda mulher. Sua preocupação retratava o amor incondicional que sentia por Dylan, o que encantou o treinador. Seu pupilo era um jovem de sorte, tinha de admitir.
“Estou certo de que Dylan será o campeão esta noite, Rachel. Mas temos que fazer nosso papel e torcer, sabe? Ou as pessoas vão pensar que foi uma armação.”
Rachel sorriu, e então acompanhou o treinador com seus gritos e sua empolgação.
Dylan se esquivou de um golpe veloz, estudou os movimentos de seu oponente. Sua vida se resumia a nocautes estratégicos, golpes colocados de maneira talentosa, como se ele sempre soubesse qual o próximo passo de seu adversário. Na realidade, Dylan sempre sabia. Desde aquele dia em sua infância, quando uma voz misteriosa ofereceu a possibilidade de se vingar do valentão que tanto o humilhara, Dylan tinha olhos precisos. Estudava seu oponente, e o via em câmera lenta, entendendo assim cada movimento, precipitando, preparando sua defesa e seu contra-ataque com facilidade. Nunca contou isso a seu treinador, pois ele jamais acreditaria. Usava aquele dom a seu favor, o que sempre era bem-vindo, assim como seria naquele momento.
Sabendo de seu talento, Dylan sabia que sempre venceria. Ninguém era capaz de lutar contra aquele poder.
O lutador de Abigail golpeava, tinham um bom trabalho de pernas, movia-se com agilidade, socava com maestria. Não acertava. Dylan girou o corpo, atingiu-o no estômago, viu-o recuar incrédulo. Um novo golpe, um soco leve e delicado, apenas para provocar, para deixar clara a diferença. Atingiu o nariz de seu adversário, tonteou-o, viu-o se enfurecer pelo resultado iminente. Desesperado, o lutador avançou sobre Dylan, golpeou como uma criança apavorada. O treinador gritava seu nome, ele não escutava.
Dylan preparou o golpe final.

***

Lá fora, a lua chorou.
Uma lágrima escorreu do satélite brilhoso, carregada de todo seu brilho. A lua minguante voltou a seu estado fosco, e a gotícula de sua imensidão cruzou o céu, como um relâmpago, silvou de maneira aguda e estridente.
Luna e Coral saltaram. Ao longe, Davinia e Kilian se protegeram. Muitos outros que assistiam também se esconderam, pois sabiam o que aconteceria a seguir.
A lágrima da lua ganhou velocidade, caiu de encontro ao chão. Vivia.
Ylenia sofreu.

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