quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Filmes - Não Tenha Medo do Escuro


Eu gosto de filmes de terror.
Assim sendo, costumo dar chances a filmes menos conhecidos, procurando histórias originais ou, ao menos, contadas de maneira original. Foi assim que encontrei 'Não Tenha Medo do Escuro'. Vi o trailer, pesquisei algumas cenas, críticas e afins, enfim, achei digno assistir e, na primeira oportunidade, me lance em 100 minutos de um suspense cinzento, misturado a um roteiro bem trabalhado e com pitadas de terror que, tenho de admitir, não são grotescas e funcionais como deveriam, mas são agradáveis, sim. Não foi uma surpresa, infelizmente, não se tornará um dos meus filmes favoritos nem ganhará uma indicação extrema, mas ainda assim foi bom, certamente, e cumpriu o seu papel, ainda que faltassem alguns detalhes, aquele "quê" que faz as histórias se tornarem marcantes e magníficas, mas são faltas recompensadas por um bom enredo e por interpretações aceitáveis, oriundas de uma equipe talentosa de atores e atrizes. Nada que mereça o oscar, claro, mas algo bom.
Vamos conhecer mais sobre o filme?


Não Tenha Medo do Escuro tem como protagonista uma família imperfeita, o que por si só já consegue ganhar pontos para com as pessoas que buscam situações de cotidiano numa história carregada de fantasia e similares. Aquele velho arquétipo de 'família feliz em busca de sonhos que acaba se deparando com monstros' é trocado por 'família problemática que se envolve com problemas ainda maiores' quando Sally vai morar obrigatoriamente com o pai, Alex, divorciado e já residindo com a madrasta Kim, a qual Sally detesta, por mais que Kim não seja a madrasta má, e sim uma mulher jovem e cheia de sonhos, sempre no intento de ajudar a garota antissocial a se divertir e deixar para lá a situação de ter sido deixada pela mãe. Enquanto enche o ambiente de um clima desagradável pelas suas desfeitas, Sally explora a mansão que serve de morada ao pai e à madrasta e, assim, acaba encontrando um porão, onde escuta vozes que prometem uma amizade duvidosa, mas a qual ela enxerga como única chance de ser feliz naquele lugar. E é aí que tudo começa a dar errado...


Evitando spoilers e indicações sobre o desfecho, posso adiantar que os efeitos especiais são bons, na medida do possível, para um filme produzido em 2010, e não deixam aquela sensação artificial ao observarmos as criaturas fantasiosas da produção. O relacionamento de Sally com seu Alex e Kim é muito bem trabalhado, parecendo realmente um caso real, como aquele que vemos acontecer todos os dias nas ruas, e isso é agradável para o clima de realidade que o filme tenta passar. Eu, particularmente, não senti medo em parte alguma do filme, mas tenho costume de ser frio quanto a isso; ainda assim, as partes aterradoras desse filme são falhas, e ele é muito mais válido por seu enredo e seus personagens do que pelas cenas de "terror", como havia lido anteriormente na internet. Se você procura uma boa história, com suspense e lendas na medida do real, aqui está uma boa pedida; se quer testar sua frieza com sustos e aberrações inexplicáveis, não acho que seja um bom filme para você.
De qualquer forma, "Não Tenha Medo do Escuro" me agradou, sim, mas ficou devendo em alguns aspectos. Numa escala de 0 a 10, 7 talvez fosse uma boa nota, ou 8, caso eu não fosse exigente demais. Longe do 10, infelizmente, mas com um roteiro que merece uma nota maior, uma execução razoável e efeitos medianos, o que acaba por diminuir tal conceito.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Conto - Vazio




Vazio.
Talvez a palavra mais correta para descrever o que aquele homem sentia.
Ele chegava, ao término de mais uma madrugada, atirado às traças em seu apartamento. Subia os elevadores cantarolando músicas sem ritmo, sucessos de dimensões paralelas, talvez, e os moradores reclamariam no dia seguinte. Não era a primeira vez naquele mês, tampouco naquela semana; já se tornara rotina.
Ele sentia-se vazio, e o álcool era tudo o que tinha para se completar e, na medida do possível, transbordar.
Saindo do elevador, deixou-se escorar pelas paredes e abriu a porta de seu quarto com certa dificuldade no uso das chaves. Baforou o álcool de toda aquela noitada na privada de seu banheiro, impregnando a morada com o cheiro de sua repugnância, com o odor de sua incapacidade de recuperação. Vazio, outra vez, e o vazio ardia a garganta, queimava as narinas, aturdia a cabeça numa dor indizível.
E o vazio deixava de existir quando ela estava ali, ao seu lado.
Os braços mornos envolveram seu pescoço, um abraço manhoso e aconchegante, um abraço materno. Ela não era sua mãe, mas perdera as contas de quantas foram as vezes em que ela agiu como uma, ou melhor do que uma mãe poderia agir. Ela era carinhosa, cuidadosa no cultivo angelical de sua existência, uma pessoa nascida para tocar o mundo e marcar a todos os que a conheciam, como certamente marcara aquela rapaz.
Foi ela quem o ajudou a se postar em pé, ainda tonto, e a caminhar até o banheiro, apoiando-se nas paredes de azulejos azulados; foi ela, também, quem o ajudou a se livrar das roupas manchadas pelo vómito, quem o carregou alegremente até o box e, sorrindo, deixou-o sob a água fria que curaria o porre que tomara naquela noite, o mesmo porre que tomara em várias noites anteriores.
Foi ela quem o assistiu se banhar, como uma mãe preocupada com seu filho irresponsável, e se despiu para acompanhá-lo na limpeza, esfregando suas costas, abraçando-o com sabão por todas as curvas, deixando que a maciez de seu corpo contagiasse a rigidez daquele ser, daquele animal ousado, e que ambos se tornassem apenas um, como deveria ter sido desde o início.
A madrugada se extinguiu, e ele dormia como um anjo em seu colo, roncando de leve, agraciado por mãos delicadas e por beijos apaixonantes, e os sonhos foram felizes e risonhos.
Quando despertou, tudo estava em caos.
Ele se levantou entristecido. A ressaca tornava tudo mais difícil, a cabeça parecia prestes a explodir. Com os lábios secos e rachados, ele se pôs em pé, urinou para fora da privada na dificuldade da manhã, sentiu o cheiro de seu orgasmo manchando o vidro do box, sentiu-se enojado de si mesmo.
Até quando aquilo teria de durar?
Sentado na mesa do café que ele mesmo preparou, o homem não chorava pelos olhos, mas sim pela alma. Ela não estava lá para preparar o seu café, que nunca mais ficara tão saboroso.
Sozinho, ele não era ninguém, e nunca, naqueles seis meses desde a morte da esposa, fora algo além de lixo.
Vazio.
Era assim que se sentia, e era assim que tinha de ser.
Um vazio que somente o álcool poderia preencher.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Conto - Tequila



Tequila


Chuva.
Serena e pavorosa, silenciosa, ainda que estridente nos telhados onde os felinos ronronavam, fugindo de suas casa, de seus confortos, apenas para desbravar a escuridão da noite, encharcados pelo toque da natureza.
Chuva, e mais chuva.
Quando todos se escondiam, lá estava ele, postado nas gotas de uma noite sombria. O frio frívolo poderia ferir, mas ferida alguma se comparava ao que já residia naquele coração, uma estaca fincada num travesseiro inutilizado, uma cicatriz que rasgava o mais singelo dos músculos pulsantes, dispersa por trilhas de veias, carregada no sangue e no vento. Quando todos deleitavam-se no conforto de suas casas, lá estava ele, sentado numa escadaria qualquer, os braços envolvendo as pernas, cabisbaixo, de olhos fixos no chão, pois o chão agora era sua realidade.
Um dia, muito antes, ele acreditou que não. Acreditou que havia mais do que o chão, mais do que o nada. Talvez pudesse voar, perder-se nas nuvens, e talvez o tenha feito quando ao lado dela, quando ela lhe permitiu ser feliz, lhe ensinou o caminho para aquele sentimento explosivo e, agora, repugnante. Difícil foi entender o quão veloz é um trovão, e o amor, certas vezes, é tão forte quanto um. Estrondoso, ríspido e instantâneo, como um clarão na mais escura tempestade, um lampejo que irradia de maneira admirável, para então se dissipar no breu, sumir e nunca mais voltar.
Dizem que raios não caem duas vezes no mesmo lugar e, naquele momento, ele achou melhor que fosse assim.
Chuva, e cada vez mais chuva.
Uma chuva que escorria por seu rosto, que se misturava às lágrimas. Eram uma coisa só, ou coisa alguma. Coisa nenhuma, talvez, ou todas as coisas. Indiferente quanto a isso, ele não era nada, não era ninguém. Era ele, mas isso não importava. Na chuva, ele bem poderia ser um obstáculo, um outro degrau daquela escadaria na qual se sentava, e isso seria o suficiente para o mundo, ou mais do que o necessário. Ele poderia deixar de existir, e o mundo se esqueceria dele, por mais que em dia algum ele tivesse sido lembrado.
A cabeça doía, girava. Os olhos abertos se desfocavam, turvos, e a ânsia queimava a garganta por dentro. Que sensação era aquela? Que vontade era aquela que ele desconhecia?
Aquela vontade compulsiva, impulsiva e destrutiva de não estar ali, de não estar em lugar algum.
Aquela vontade imensa de morrer.
Os pulsos lhe pareceram tentadores, convidando-o a ver o sangue jorrar, prometendo um espetáculo fabuloso, uma glória sem tamanho e, ainda melhor, uma solução para todos os problemas. A garganta fez o mesmo, implorou por uma corda, por um fim.
E o gosto fervoroso lhe umedecia os lábios.
Foi quando ela surgiu. Na chuva, mais quente do que qualquer cômodo de qualquer morada, mais bela do que a lua que se escondia no algodão doce do céu, mais qualquer coisa do que tudo. Ela desfilava ao invés de andar, pé à frente de pé, num rebolar agradável aos olhos e às mentes, e ele achou que ela apaixonaria mesmo às mulheres, que faria todas elas se ajoelharem e implorarem por sua beleza, rezassem a Deus para obter aqueles olhos cobreados, aqueles fios sedosos e brilhantes, aquelas curvas alucinógenas e atrativas.
Ele se apaixonou, coisa que jurou não mais fazer, num único olhar, num único ato de respirar. Ele se apaixonou, como acreditou ser incapaz de repetir, como o mais infinito dos finitos, e todo aquele amor estava atrás dos lábios avermelhados daquela dama de vestido bronzeado, com adornos em prata e ouro nos braços e tornozelos, um salto alto demais para suas longas pernas e um colar que brilhava muito, mas não se equiparava ao seu sorriso.
Chuva.
A chuva o encharcava, mas não molhava aquela mulher. Nada a tocaria.
Somente ele.
Ele a desejou, como julgou impossível desejar alguém que não se conhece, que acabara de encontrar no acaso de uma noite chuvosa. Ela desfilou, sem medo, sem receio de se exibir, aproximou-se dele com baques agradáveis dos saltos que trajava. Ele sentiu a saliva nos lábios, a fome e a sede que comida e bebida não saciariam, e ela notou tal sensação, notou o rosto ruborizar, mesmo no escuro da noite, mesmo no toque da chuva, e sorriu, por excitação, por provocação, ou talvez somente pela imaginação abstrata daquele rapaz desesperado.
Passos mais tarde, ela estava ali, à sua frente, e o que se seguiu fora um beijo.
Seu beijo tinha gosto de álcool. Era forte, de início salgado e árido, bem quente, então gélido e aquoso, com sabor picante e admirável, e era quase o sulco do paraíso, trespassando os lábios dele como um jorro de perfeição, escorrendo por seu rosto, misturando-se à água que já residia em sua camisa aberta, gelando seu torso e sua alma; por último, tornou-se amargo num desfecho indescritível, e levou consigo todos os problemas, todas as indagações, todos os sim ou não, deixando apenas o que lhe importava e, como nada lhe importava, nada deixou.
Levou até mesmo seu nome, suas vontades e seus martírios.
Ele era um saco vazio, um recipiente oco e onipresente, com espaço para o tudo que seria ocupado por nada.
Chuva.
A chuva continuava, mas o beijo parou. Chegou ao fim, e por um momento tudo voltou a si, e ele se recordou das dores e dos temores, e então chorou outra vez. A mulher o acariciou, afagou seus cabelos com as mãos delicadas, deixou que ele afundasse o rosto entre os seios, onde encontrou um perfume do Éden, que teria de ser a primeira maravilha do mundo, ou todas elas. A fragrância era forte demais, causou náuseas, mas ele a desejava mais e mais, e então ergueu o rosto, fechou os olhos e esperou, sem pressa, ainda que ansioso.
Outro beijo ocorreu.
Salgado, então vibrante e infernal, então amargo e perfeito, então o fim, e o beijo se foi, e ele se lembrou de tudo outra vez. Beijou-a mais e mais, sem parar, sem ter medo, sentindo-se o melhor homem do mundo, ou o único, ou o pior, mas sentindo-se.
E os beijos eram sempre assim, salgado, quentes, amargos.
Como sal, tequila e limão.

Ele abriu os olhos em seu apartamento, mas ainda via a rua, a chuva, o que sempre via quando nada desejava ver. Jogou outra dose de tequila no copo, perdera a conta de quantas já se foram, de quantos beijos suculentos saciaram sua perda naquela noite. As roupas, encharcadas pela água sanitária que se revoltava a cada nova onda de vómito, fediam o suor de uma semana sem banho, de uma semana sem vida. O rosto, cuja barba não era aparada há dias, guardava olheiras de depressões, lacunas de um vazio indizível, tristezas que o melhor ou o pior homem do mundo não seriam capazes de entender.
Desde sua perda, aquela era sua rotina, e talvez fosse agradável. Jogado no apartamento, sozinho no silêncio e no escuro, para ele tudo estava bem. Ali, ainda que atirado às traças, como um mendigo sem esperança alguma e de futuro duvidoso, ele não mais vivia, mas sobrevivia, e estava feliz com tal situação. Não feliz, talvez, mas que outra opção tinha? Problemas e dúvidas retardavam seus pensamentos, queimavam neurônios como o álcool queimava sua língua e seu fígado, como a perda queimara seus pensamentos.
Vomitou, e ali estava o vazio de sempre, o vazio da solidão, sua única companheira nos momentos difíceis.
Precisava de uma solução. Precisava esquecer os problemas, resolvê-los.
Precisava de um beijo daquela dama de vestido bronze, por mais que seus beijos ali, na chuva da alucinação, fossem maravilhas e, ao longe, na realidade, apenas a mistura inconsequente de sal, tequila e limão.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Filmes - Paranorman


Hoje falamos de uma animação que, desde os trailers, me chamou atençaõ. Trata-se de Paranorman, uma stop-motion criada pelo mesmo estúdio responsável por Coraline que, cá entre nós, é um dos melhores trabalhos que já vi do estilo. Assim como seu antecessor, Paranorman é carregado de uma temática sombria, ainda que abuse do humor (certas vezes negro) e garanta algumas lições de moral, bem como apresente os arquétipos mais conhecidos da nossa sociedade atual.


O filme conta a história de Norman, um garoto tido como "estranhão" pelo mau hábito de falar que vê fantasmas. Mas Norman realmente os vê, em todos os lugares, algo que sua família e todos os integrantes de sua escola acham bizarro e revoltoso. Mesmo a avó, com quem ele tinha uma forte ligação, ainda fica ali, no sofá, por mais que o pai e a irmã desacreditem. No roteiro de Paranorman, os fantasmas mantém-se no mundo dos vivos até que cumpram sua verdadeira função, ou se aprisionam devido a uma ira muito grande. Prossigamos.


Antes de Norman, outro integrante da família já havia apresentado habilidades similares, e é ele quem entra em cena. Antes de morrer, o tio Prenderghast passa a Norman a missão de impedir que a bruxa do passado da cidade cause o holocausto outra vez, e é essa a trama do filme, misturada a situações cômicas, personagens carismáticos e cenas que vão te fazer pensar.


O filme é agradável demais, diferente do clima sombrio e incômodo de Coraline. Apesar de ter suas situações tensas, grande parte dos momentos mais marcantes são risonhos ou bobos, o que torna a animação mais infantil do que a anterior. Infantil, no entanto, não afasta adultos que procurem por uma animação de qualidade e uma história envolvente, ainda que em clichê. A maneira como o roteiro apresenta os arquétipos e mostra como eles reagiriam em situações extremas é bastante correta, algo que todo mundo deveria ter em mente. Fora isso, também podemos ver a união dos rejeitados, as cantadas atiradas da patricinha de festas e uma revelação inesperada no fim do filme sobre um dos personagens até então menos interessantes, haha.


Enfim, fica aí minha recomendação sobre um trabalho muito bacana dentre as animações americanas. Nada comparado a um roteiro de Neil Gaiman, claro, mas é bastante agradável e garante um bom tempo de diversão, bem como apresenta uma história carismática o suficiente para se tornar favorita de alguns, arrisco.
Até a próxima!

domingo, 16 de setembro de 2012

Cinco Lendas Urbanas


I

Ela sonhava em ter filhos.
Assim sendo, arrumou dois amantes. Um deles era bonito, o outro, inteligente. Eles não gostaram da ideia, mas ela não se importou. Pediu para que ficassem ao lado dela para sempre. Eles negaram. Pareciam ter medo. Pareciam querer fugir.
Então ela os matou e guardou seus pedaços num baú, o qual acorrentou na sua lápide.
Dessa forma, nenhum dos dois amantes poderia abandoná-la.

II

Ele sempre gostou de tocar gaita.
A música era agradável. Quando ele tocava, todo mundo parava para ouvir. Muita gente dançava. Ele tinha talento. Tinha dinheiro. Tinha amigos, fama, renome.
Quando morreu, seu enterro foi feito no completo silêncio, e ele não gostou disso. Sentou-se nas proximidades, tirou a gaita do bolso, assistiu enquanto era sepultado soprando a mais bela de suas melodias.
Ninguém o ouviu.
E só então ele se deu conta de que, quando não o escutavam, ele nada tinha.

III

A menina terminou o seu namoro.
Ela conheceu um garoto legal depois disso. Ele não tinha uma história, não tinha um passado para contar, mas era divertido e amigável. Estava lá sempre que ela precisava, seja pra rir ou pra chorar. Ele sempre estava lá.
Ela se apaixonou por esse garoto, mas ele não pareceu notar ou se importar. Ainda estava lá, mas não da forma que ela esperava.
Tempos depois, ela se apaixonou por outro rapaz. O garoto então desapareceu. Sumiu, do nada, mas ela não sentiu sua falta. Ela tinha outro alguém. Ela tinha alguém especial, alguém para amar.
Assim, ela aprendeu a sustentar o próprio vazio, a superar as perdas, a enfrentar as dores.
Quando ela terminou seu novo namoro, o garoto não mais apareceu.

IV

Ele riu quando o amigo contou sobre a carta que recebera.
Quem acredita em correntes? Fantasmas não perdem tempo digitando mensagens no facebook. Eles têm mais o que fazer, era isso o que o garoto pensava. Então riu, zombou de seu amigo, fez piada.
Mas chorou quando ele morreu.
Coincidência, talvez, mas ele ficou abalado. Ainda não acreditava em correntes. Ainda não acreditava em fantasmas. Ainda não acreditava que estava sozinho.
Foi quando recebeu uma carta.

V

A plantação sempre dera bons frutos.
E o espantalho estava lá, inerte.
Um dia, os corvos o destruíram. O fazendeiro o consertou, prestativo. Na segunda vez, ele não se importou. Deixou que o espantalho ficasse ali, ferido.
No dia seguinte, a plantação estava destruída.
O fazendeiro não entendeu. O espantalho estava lá, partido ao meio.
Sorria.

sábado, 8 de setembro de 2012

Light Novel - Delirium - Punho e Espada

Vamos ao final de mais uma Light Novel?


Punho e Espada

Sentados sobre o Arco de Gael, Âmbar e Ioritz observavam Ylenia. Havia muita destruição desde a chegada do Pranto da Lua, o caos ainda estava espalhado por todas as ruas, empilhando destroços e ruínas de construções fabulosas.
“É impressionante como Juno pode mudar o mundo, não é?” Âmbar filosofava com os olhos perdidos no céu. “Sua aparição foi suficiente para marcar Ylenia desta maneira, seus Guardiões são poderosos, capazes de matar Vongeist com facilidade. Ela é realmente incrível, Ioritz. Temos que encontrá-la, ou nunca vamos recuperá-la.”
“Ela será nossa, Âmbar. Nada poderá nos impedir.”
A manhã começava a nascer.
“O que sabe sobre aquele garoto?”
“Não me importo com ele, tampouco com Altair. Eles não podem nos impedir, Âmbar. São fracos, são tolos. Nós temos um motivo de verdade, um motivo que nenhum deles têm. Nunca nos entenderão, nunca aceitarão nosso desejo. Mas Juno será nossa. Vamos mostrar a eles quão justa é a nossa causa.”
Âmbar sorriu, contente pela companhia de Ioritz. Esticou um dos braços em suas costas, deixou-o cair com leveza. Hesitou, recuou o membro, esqueceu o afeto daquele momento.
O sol surgia manhoso, crescendo no céu como uma esfera radiante.
“Ainda temos chance. Podemos encontrar Juno na próxima vez que ela aparecer, capturá-la rapidamente antes que qualquer outro saiba. Vamos ficar atentos, Ioritz, e ninguém mais saberá que ela foi encontrada. Caso contrário, teremos concorrência, cada dia mais.”
“Não deixarei que nos impeçam.”
“Sei que não. Você é o melhor, o mais valente. E eu estarei aqui a todo instante, para tudo o que for preciso. Mas você entende o que estou dizendo, não entende? Os Vongeist são inexperientes, não podem nos fazer mal, mas logo entenderão a Seiren, serão empecilhos. A herança, Altair, Vergess, todos serão obstáculos. Se pudéssemos encontrar Juno antes que as coisas piorassem, seria uma vitória perfeita.”
“Teremos a nossa vitória, quando chegar a hora. Eles não podem nos vencer, Âmbar. Nós temos tudo planejado. Falta apenas Juno aparecer, e assim a teremos em nossas mãos.”
De súbito, Âmbar se espantou. Arregalou os olhos, procurou ao redor, respirou com dificuldade. Sentia-se observada, sentia-se alvejada por um veneno sem igual, por um sentimento sem tamanho.
“Ioritz.”
“Eu o senti.”
Puxou o sobretudo, deixou que a cauda de escorpião desbravasse os ares, iluminada pelos primeiros raios de sol da manhã.
“É ele, aquele cara! Aquela cobra!”
“Kilian.”
Ouviram um sibilar, e então silêncio. Estavam sozinhos outra vez.
“Ele já se foi, Âmbar.” Baixou a arma natural, escondeu-a outra vez nas vestes. “Estava aqui, eu o senti! Maldito Kilian.”
“O que ele queria?”
“Ele é nosso inimigo, não importa quais os seus planos. Estava espionando, escutando nossa conversa. Ele sabe sobre nós. Sabe que viemos para vencer, dessa vez. Sabe que faremos de tudo por Juno.”
“Acha que ele pode nos atrapalhar?”
“Muito provavelmente.”
“O que faremos agora?”
Ioritz deu as costas para o sol.
“Vamos partir. Temos que acelerar as coisas.”
“Acelerar?”
“Exato. Não podemos mais esperar que Juno apareça, Âmbar. Vamos chamar a sua atenção.”

***

Allana estava em um lugar estranho.
Levada por Luna e Coral, encontrou-se sozinha numa sala acolchoada, onde tudo era branco e macio. Havia uma porta, mas ela estava fechada, nenhuma outra saída se mostrava útil. Esperou por uma eternidade até que alguém aparecesse, um velho corcunda e de bigode aparado, trazia chá.
“Onde eu estou?”
“Esperando por sua audiência com o Senhor Razvan, senhorita.”
“E quanto tempo vai demorar?”
“Ora, ele é um grande comandante, peço que não tenha pressa. Após os assuntos de maior prioridade, você será chamada. Agora coma, ou morrerá de fome antes de falar com ele.”
O velho sorriu, encheu uma xícara com a bebida fumegante, ofereceu torradas. Allana aceitou, comeu. Fez uma mesura para sua Gier, o velho estranhou.
“Fique à vontade, senhorita.”
E se retirou. Era difícil ficar à vontade, praticamente impossível. Não havia o que fazer, não havia nada para observar. Allana comeu, bebeu o chá, se alimentou como há muito não fazia. Reparou que a comida e a bebida se preenchiam a cada instante, efeito de uma Seiren estocada naqueles instrumentos. Parecia bobagem, mas ela admirou aquele poder por algum tempo. Bebia o chá, virava o restante no chão, assistia à garrafa se encher outra vez. Era fabuloso.
Logo perdeu a graça, entretanto. Allana caminhou de um lado para o outro, chutou o vento, brincou com sua lança. Não era a melhor lutadora, sequer conseguia usar a sua própria arma com precisão. O cabo era maior que seus braços, tornava o manejo algo complexo, mas a Gier era eficiente, além de bela.
“Obrigada, Liam.”
“Pelo quê?”
“Por se tornar uma arma tão bonita. Assim, não estarei apenas derrotando meus adversários. Farei com que eles tenham inveja também.”
O Uberein riu.
“Que seja. Não me faz diferença. O importante é que você vença esse jogo.”
“Será que podemos realmente chamar isso de jogo?”
“Depende do ponto de vista.”
“Já ouviu falar do Jogo da Vida?”
“Não.”
“Era algo famoso no passado.”
“Nunca ouvi falar, irmãzinha.”
“Eu gostava. Jogava com meus pais. Lá a gente vivia, ganhava dinheiro, comprava as coisas. Morria. Mas tudo era uma brincadeira. Tudo era um teatro, terminava em risadas. Ninguém morria de verdade. Aquilo era um jogo, Liam.”
“Nosso jogo é um pouco diferente. Você tem medo de morrer, irmãzinha?”
“Não. Mas tenho medo de perder o jogo.”
Allana bocejou, tinha sono. Deitou-se em algum canto, deixou-se adormecer. O velho a visitou outra vez, trocou a refeição, ela não se levantou. Acordou horas mais tarde, não sabia se era noite ou dia. Aproximou-se da comida, tinha agora achocolatado e pão adocicado.
“Esqueceram da geleia.”
Mas comeu, de qualquer forma. Comeu, brincou com a Seiren infinita, riu sozinha, como criança. Levantou-se, praticou com sua lança, fez pequenos truques com sua Seiren. Então se deitou outra vez, cansada.
Não saber se era noite ou se era dia era algo cansativo.
Dormiu, acordou, comeu, treinou. Tudo outra vez. Estava entediada.
“Será que eu posso explodir esse lugar?”
“Não acredito que seria uma boa coisa a ser feita, irmãzinha. Poderia se machucar, ou chamar atenção de quem não seria uma boa companhia.”
“Eu estou presa, Liam. Estou presa aqui, como uma criminosa. Pior do que isso: como uma louca.”
“E você não é louca, irmãzinha?”
Allana riu alto.
“Não diga isso alto, as paredes têm ouvidos!”
“Me desculpe.”
A porta se abriu, Luna e Coral passaram por ela.
“Como você está?”, perguntou Luna.
“Estou bem, mesmo que tratada como prisioneira. Já viram isso?” Allana despejou toda comida no chão, fez sinal para que as gêmeas observassem. Os restos desapareceram, a bandeja se preencheu outra vez por pães e torradas. “É incrível, não acham?”
“Vai precisar esperar mais um pouco”, continuou Coral. “Razvan ainda não está aqui. Está resolvendo alguns assuntos em outra cidade-nação.”
“E onde precisamente nós estamos?”
As irmãs alternavam os diálogos.
“Ainda é Ylenia.”
“Não a tiramos de seu lar.”
“Razvan logo estará aqui para encontrá-la.”
“Que homem é capaz de deixar uma dama esperando?” Allana riu sozinha. “Tudo bem, eu posso esperar. Tenho companhia.” Agitou a lança. Derrubou o chocolate quente no chão, viu o recipiente se encher novamente. “E chocolate para toda a eternidade.”
Luna e Coral a cumprimentaram, saíram sem olhar para trás. Allana bebeu outro gole, deitou-se, dormiu. Sonhou com uma sala branca e estofada, respirou, viu que não era um sonho. Praguejou, riu sozinha. Então dormiu outra vez.

***

Derek e Dylan treinaram por três dias.
Conseguiram alguns feitos, mas nada glorioso. Derek foi capaz de criar seu fogo, chamas verdes e minúsculas, e uma delas quase incinerou suas roupas. Dylan tinha mais facilidade com a vontade e o pensamento, mas sua execução ainda era imprecisa, saía de controle a todo momento, rajadas de ar e vácuo disparavam para todas as direções sem aviso. Mas mostravam progresso, e isso era o importante.
Altair os ensinava a farejar, ao mesmo tempo em que tentava colocar algum juízo em suas mentes.
“A Seiren é importante, mas igualmente importante é saber encontrar Juno. Ela é a verdadeira razão dessa batalha, se me permitem dizer. Sem ela, não adianta lutar. Juno é aquela que realizará seus desejos. Se não soubermos farejá-la, de que adianta saber lutar?”
Juno não estava por perto, portanto Altair optou por usar um cheiro diferente. Usou o cheiro de um Guardião, criado por sua própria Seiren para servir de treinamento aos Vongeist. Farejar era algo tão difícil quanto usar a Seiren com precisão, mas Derek e Dylan faziam o seu melhor.
“Vocês não devem se concentrar nas narinas, como cães”, repetia Altair. “Farejar a Seiren é diferente. Precisamos entender uma criatura, sua essência, seu interior, e só então seremos capazes de apontá-la. Se ela estiver próxima, saberemos dizer. Se estiver se aproximando, poderemos pressentir. Um bom talento em farejar permitiria chegar a um local antes mesmo de Juno, para que fosse possível preparar o terreno para uma armadilha ou coisa parecida. Me escutem, mas continuem praticando!”
Num momento inoportuno, Dylan farejou algo. Não era o Guardião, nem mesmo os odores dos Abrigos. Era uma essência diferente, um cheiro peculiar, ardente. Era familiar, já a sentira antes, mesmo que não soubesse diferenciar aquele tipo de sensação antes de conhecer Altair e seus ensinamentos.
“Altair, acho que encontrei algo.”
Altair se aproximou de Dylan.
“É o Guardião?”
“Não. É diferente. Parece mais distante.”
“Mais distante? Acho difícil, Dylan. Estamos num Abrigo, se lembra? Não podemos farejar a superfície com precisão.”
“Não estou tentando, apenas senti essa coisa e... Não sei. Parece familiar. Talvez eu já tenha visto o dono dessa essência.”
“E com o quê se parece?”
Dylan refletiu e, para sua surpresa, disse a primeira palavra que lhe surgiu à mente:
“Veneno.”
Derek ergueu a sobrancelha.
“Eu só sinto cheiro de mofo e ferrugem.”
“Porque está farejando como um cachorro!”, zombou Altair. Voltou-se para Dylan. “Veneno?”
“É o que me parece.”
Altair fechou os olhos. Aquela não era uma opinião enfadonha, uma resposta de um aluno que não sabe o que deve responder. Dylan não parecia mentir, inventar ou algo do tipo. Decidiu verificar por si mesmo.
Encontrou veneno.
“Há algo errado.”
Derek não entendia.
“O que está acontecendo?”
“Tem alguma coisa na cidade!”
Dylan se assustou com a agitação súbita de Altair.
“É Juno?”, perguntou ele.
“Antes fosse. Não me parece Juno. Sinto algo maligno.”
“Um monstro?”
“Vamos descobrir. Preparem suas Gier, concentrem-se na Seiren, se necessário. Desta vez não é um treinamento, garotos. É real.”

***

Carregados pela névoa de Altair, Derek e Dylan sentiram-se enjoados pelo transporte súbito, mas não se deixaram abalar. Por dentro, estavam excitados. Num primeiro momento, tiveram medo das criaturas, das batalhas, por não entender o que estava acontecendo. Agora, tinham noção, poderiam se defender. Tinham suas armas, tinham vontade e poder. Estavam ansiosos para encontrar algum Guardião ou coisa do tipo, para testar os ensinamentos de Altair.
O que encontraram no centro de Ylenia, entretanto, os assustou. O medo que aboliram de seus corpos voltou como um trovão, impregnou como o odor de um esgoto aberto. Enquanto esperavam por um adversário, por um monstro, encontraram algo grotesco, inesperado. Recuaram, as pernas trêmulas, os olhos incrédulos.
Não era um monstro: era um escorpião.
Altair praguejou.
“Ioritz.”
Ioritz estava lá, mesmo Derek pôde sentir. Acima daquela criatura colossal, o homem-escorpião distribuía ordens, comandava aquele ser medonho e asqueroso. A criatura era maior do que o Estádio Central de Ylenia fora, suas pinças pareciam capazes de agarrar casas e prédios. A cauda movia-se desajeitada acima de seu corpo, sacudia de um lado para o outro, despejava uma gosma fétida que, ao tocar no solo, fumegava de maneira ácida e assustadora.
“O que ele pretende com isso?”, perguntou Derek.
“Não é óbvio?”
A voz de Âmbar surpreendeu a todos. A dama de sorriso brilhoso caminhava com elegância, desfilava. Sequer parecia se importar com a monstruosidade que destruía partes de Ylenia com seu corpanzil.
“O quê em um escorpião gigante pode ser óbvio?”
“Ele está chamando atenção, crianças. Está trazendo Juno até nós.”
“Juno não virá!”, tentou Altair, mas Âmbar não acreditou em suas palavras.
“O que sabe sobre ela, seu pássaro maldito? Não sabe nada nem mesmo sobre sua própria família!”
As palavras feriam.
“Não vou deixar que Ioritz use inocentes em sua estratégia insana!”
Âmbar gargalhou.
“Tarde demais.”
E era. O escorpião cerrou as pinças contra o prédio de uma empresa televisiva, as vidraças estouraram ante a atrocidade de sua existência. Dylan assistiu, sem nada poder fazer, enquanto aquela imensa construção desmoronava, como se feita de cartas de baralho. Ver aquilo ruir, do mesmo modo que o local que tirou a vida de sua esposa e seu treinador, fez com que Dylan se enfurecesse.
“Mande-o parar!”
Âmbar achava graça.
“Quem vai fazer isso, garoto? Você? Um simples Vongeist, dependente destas criaturinhas impuras que se chamam de Uberein? Vai parar Ioritz, seu moleque?”
Dylan deu as costas a Âmbar, correu na direção do escorpião.
“Espere por mim!”
Derek o seguiu.
“Não façam isso!”
Altair tentou alcançá-los, Âmbar o impediu. Um círculo de espinhos amarelos circundou-os, formando uma prisão de estacas e lâminas.
“Você não é um garoto, Altair. Não vou deixar que interfira no plano de Ioritz. Não vai nos atrapalhar outra vez.”
“Ainda se lembra?”
“E como poderia esquecer?”
Altair sorriu. Parte de si estava preocupada com Derek e Dylan. Eram jovens, tolos e destemidos, mas não estavam preparados para enfrentar aquela monstruosidade. A outra parte estava ansiosa para vê-los lutar, pois somente assim saberia se seus ensinamentos estavam servindo de alguma coisa.
Uma terceira parte queria derrotar Âmbar, para relembras os velhos tempos.
“Tenho uma sugestão, Âmbar. Vamos recordar nossos dias passados. Você finge ser capaz de me enfrentar, novamente. Eu finjo que não posso derrotá-la. Fazemos um teatro, brincamos um pouco, então acabamos com isso como fizemos aquela vez. O que acha?”
Âmbar esticou os braços, cada uma de suas unhas se tornou uma lâmina dourada e cintilante. As garras riscavam o asfalto conforme a mulher se movia.
“Tenho uma sugestão ainda melhor, Altair. Já dissecou alguém?”
Dylan não diminuía o ritmo de seus passos.
“Dylan, me espere!”
“Não podemos esperar, Derek, aquela coisa está matando gente inocente!”
“E como pretende enfrentar aquilo?”
“Não sei, mas não pretendo assisti-lo enquanto destrói a minha cidade!”
“Gosto da sua determinação, sabia? Por que não formamos um grupo? Sei lá, tipo uma dupla de super-heróis para defender a justiça, para proteger o mundo dos vilões. Vamos nos unir, Dylan! Podemos ser o Punho e a Espada!”
Dylan não estava escutando. Seus olhos estavam focados no escorpião e, muito distante do solo, em Ioritz. Tinha de alcançá-lo, tirá-lo de cima daquele monstro, evitar que aquele insano trouxesse mais destruição para Ylenia. Queria pensar em algo, mas tudo acontecia muito rápido, de maneira descontrolada e estrondosa. A voz de Derek, o estrondo da criatura, os gritos apavorados das pessoas que fugiam pelas ruas, tudo atordoava Dylan, transformava seus pensamentos em migalhas.
Então, de súbito, parou. Havia silêncio, calmaria e tranquilidade. Tudo se movia devagar, mesmo Derek e os fugitivos, mesmo aquele monstro tenebroso e suas pinças furiosas. Dylan conseguia enxergar com perfeição, pensar com facilidade. Viu a cauda despejar veneno, viu uma casa soterrar seus moradores, viu um casal de namorados se atirar na Praia de Lluvia para se afastar do conflito. Viu as pinças se abrirem, viu no céu as nuvens se moverem vagarosas, viu uma multidão correr apavorada, pensavam se tratar do fim do mundo. Não sabia como, mas o dom que usara durante toda a sua vida para vencer seus oponentes no Armor Boxing estava funcionando ali, com aquela monstruosidade. Decidiu não questionar, mas sim aproveitar aquela oportunidade para alcançar Ioritz.
Estudou a paisagem: um brinquedo metálico para crianças, um telhado destruído sobre uma casa, um poste de iluminação, um prédio desmoronando, um enorme bloco de concreto suspenso pela pancada do escorpião. Montou sua escada, visualizou seu trajeto, firmou os pés. Acelerou e, junto de sua respiração, o tempo voltou a correr normalmente.
“O que você vai fazer?!”
A voz de Derek foi esquecida na confusão. Por um momento, Dylan se esqueceu do mundo, se concentrou em seus movimentos, confiou em sua destreza, em sua força, em seus reflexos. Saltou como um felino, ganhou impulso no metal, então no telhado, rodopiou no poste com as mãos, correu por sobre a construção em queda, rolou na direção de uma rocha dispersa e, num último saltou, alcançou uma das pinças com suas mãos enluvadas.
“Mas que merda foi essa?” Derek estava abobado no chão, os olhos confusos pela agilidade de Dylan. Aquelas eram as habilidades de um campeão?
Decidiu que não ficaria para trás. Preparou sua espada.
Dylan escalou, usando o peso do corpo para se impulsionar para cima até que alcançasse as costas do escorpião, onde estava Ioritz.
“O que está fazendo aqui?”
“Estou acabando com essa loucura!”
E saltou na direção do vilão, os punhos preparados para se defender. Ioritz se livrou das vestes, deixou que sua cauda venenosa se movesse livremente, golpeou com velocidade, atingiu o ar. Dylan enxergava-o devagar, os olhos preparados para a esquiva e o contra-ataque. Sentia um urso dentro de si, urrava junto da Seiren. Deixou-o escapar.
A cauda de peçonha se agitou no ar, Dylan a evitou com um dos braços, o outro alcançou a garganta de Ioritz. Tirou-o do chão, jogando-o para trás, imobilizou seu corpo com peso de um campeão. Sobre ele, Dylan socou de maneira impiedosa, os punhos rutilavam a cada pancada. Ioritz se livrou do oponente com as pernas, ergueu-se em frenesi.
“Quem você pensa que é, garoto? Acha que pode me impedir? Eu tenho um desejo para fazer! Ninguém vai entrar em meu caminho!”
“Quero que se dane o seu desejo, escorpião. Todos temos algo pelo quê lutar. Nada justifica abusar de inocentes para isso. Não vou permitir que você destrua a minha cidade dessa maneira!”
“Sua cidade?”
Ioritz fingiu uma investida, Dylan se defendeu, enganado. O ataque viria de cima, do próprio monstro que era aquele escorpião gigantesco. A cauda de Ioritz se ergueu, mas era miúda se comparada ao membro nauseante que desabava na direção de Dylan. Tentou se concentrar, evitar aquele golpe, mas não sabia o que fazer. Não havia esquiva, contra-ataque, nada.
Fechou os olhos, cobriu o rosto com os punhos, esperando pelo nocaute que nunca vira nos ringues.
Naquele dia, Ylenia viu chover veneno.
O ferrão despencou da criatura, decepado de maneira imperceptível. O monstro guinchava, sacudindo o membro incompleto enquanto seu veneno escorria por seu corpo. Ioritz praguejou, Dylan não entendeu. À frente, Derek sorria, confiante. A espada brilhava em Seiren.
“Qual é, Dylan? Já se esqueceu? Punho e Espada!”
Dylan percebeu que devia sua vida àquele cara.
“Maldita herança!”, Ioritz lembrou-os da situação, avançou na direção de Derek, Dylan o impediu. Agarrou sua cauda com ambos os braços, imobilizando o homem-escorpião de um modo humilhante.
“Sempre vi programas na televisão sobre animais e insetos, sabia? Eles ensinam a pegar escorpiões pela cauda e, assim, eles se tornam indefesos. Nunca pensei que faria uso desse conhecimento. Chega a ser hilário, não concorda?”
Ioritz se debateu, mas não poderia se livrar dos braços de Dylan. Ele era forte, valente e, acima de tudo, justo. Depois de todas aquelas mortes sem sentido, Ioritz tinha de pagar, e preço algum seria o suficiente.
“Morra, garoto!”
“Tenho uma ideia diferente.”
Sem hesitar, Dylan arrancou a cauda de Ioritz.
O escorpião gigantesco desmoronou.
Ioritz urrava. O sangue se misturava ao veneno que escapava de seu corpo mutilado, despencando junto do corpo da aberração que ele próprio criou. Derek e Dylan se equilibraram, pousando como guerreiros preparados. Cumprimentaram-se: tinham vencido aquela batalha.

***

Ao longe, Âmbar ofegava.
“Desista, Âmbar”, Altair continuava a provocar. Estava ferido, arfava, mas não se deixava abalar. Vencia suas batalhas pela atuação, muito antes de derrotar seus oponentes numa luta verdadeira. “Você não pode me vencer assim.”
“Está nervoso por causa dessa sua aparência, Altair? Vai se ajoelhar outra vez implorando para voltar ao normal?”
Altair avançou, mas Âmbar fugiu. Os espinhos que os cercavam desintegraram por sua vontade, incendiando o solo abaixo dos pés de seu adversário, o que retardou a perseguição. No fundo, Âmbar sabia que fora derrotada, mas não fazia diferença. O plano falhara, de qualquer modo.
Olhando para o alto, Altair viu a monstruosidade de Ioritz ruir. Sentiu orgulho de si mesmo, mas não antes de se preocupar com seus aprendizes. Correu até eles.
Ioritz se ergueu.
“Âmbar!”
Gritava.
“O que aconteceu?!”
“Esses cretinos! Esses garotos insolentes! Eles estragaram tudo, Âmbar!”
“Vamos embora, Ioritz.”
“Vocês vão me pagar, crianças! Vou arrancar os seus olhos enquanto dormirem! Aprendam uma coisa: não há veneno algum que se compare com o meu.”
E desapareceu junto da mulher de unhas amarelas.
Dylan caiu de joelhos.
“Cara, você foi incrível!”, elogiava Derek, também ofegante. “Mas, da próxima vez, não saia correndo como um abestado! Nós somos uma dupla, cara! Estamos juntos nessa.”
Dylan agradeceu, mas não pôde evitar as palavras.
“Até quando?”
“Até quando for possível. Não se preocupe com isso. Temos muitas outras coisas para enfrentar antes de encontrar Juno. Nessa hora, vamos descobrir quem merece ficar com ela.”
“Eu te devo uma, amigo.”
“Relaxa. Vai me esperar da próxima vez?”
“Prometo que vou tentar.”
“Então está tudo certo.”
Apertaram as mãos, como homens. Como amigos.
Altair surgiu.
“Vocês estão bem?”
“Ah, que isso, brincadeira de criança!”, começou Derek. “Derrubar monstrengos desse tipo era minha especialidade na infância. Minha mãe sempre dizia que eu tinha um talento nato para livrar o mundo daquilo que o envenena.”
“Nenhum de vocês foi atingido por aquele veneno?”
“Estamos bem, Altair, obrigado pela preocupação.” Dylan observou o homem-pássaro. Estava ferido. “E você, está bem? Parece que aquela mulher conseguiu mesmo te machucar.”
“Estou ótimo. Já a derrotei uma vez antes, não seria diferente agora.”
Derek se impressionou com o comentário.
“Você tem muitas histórias, não é? Precisa nos contar algumas quando tiver oportunidade.”
“Claro, mas antes disso, quero ouvir uma história melhor. A história que explica o motivo de vocês dois saírem correndo para longe de mim, sem que eu permitisse, para enfrentar uma criatura que sequer sabiam como derrotar. Quem vai me contar esta?”
Dylan tomou a frente:
“A culpa é minha, Altair. Eu perdi a noção ao ver aquele monstro matar gente inocente. Não poderia deixar que isso acontecesse, de jeito nenhum. Muita gente morreu no Estádio Central naquela noite da final do mundial. Eu estava lá, e muitos daqueles que eu amava também. Vê-lo fazer aquilo sem hesitar me fez perder a cabeça.”
“É, a culpa é dele! Eu só o acompanhei para evitar que causasse mais problemas ou que se machucasse demais!”
Dylan se mostrou indignado, enquanto Derek apenas deu de ombros.
“A atitude de vocês foi correta, mas arriscada. Não se deve lutar sem saber o que está enfrentando. Se tivessem me ajudado, poderíamos ter derrotado aquela mulher rapidamente, então enfrentaríamos aquele monstro juntos. Não estou subestimando-os, vi que são capazes de lutar por si mesmos. Apenas deixo esta experiência como aprendizado: todas as ações têm rotas mais seguras. Precisamos sempre enxergá-las, escolher o melhor caminho, proteger a todos enquanto protegemos a nós mesmos. De que adiantaria correr até o escorpião se morressem enfrentando Ioritz? Pensem nisso.”
“Eu sinto muito. Mas, no final, tudo deu certo. Conseguimos derrotar aquele monstro e, cá entre nós, acho que ferrei a vida daquele escorpião. Não creio que ele vá envenenar mais ninguém durante um bom tempo.”
“Mas ele vai voltar, Dylan, e isso é ruim. Agora, você é um inimigo. Ioritz é vingativo, não mede esforços para machucar aqueles que odeia. Ele vai se recuperar, e então virá atrás de você.”
“E, quando ele vier, eu vou saber usar a Seiren como ninguém, e estarei esperando. Na próxima vez, não vou arrancar apenas a sua cauda.”
Altair sorriu.
“Vocês foram ótimos, ainda que agindo como loucos. Estou orgulhoso de tê-los ensinado algumas coisas e ver que isso surtiu algum efeito. O trabalho em equipe foi muito bom.”
“Somos o Punho e a Espada, sabia?” Derek parecia realmente feliz com a ideia.
“Admiro esse sentimento de amizade. Infelizmente, não pode durar para sempre. Deixemos isso para mais tarde. Vocês estão de parabéns.”
“E o que será de Ylenia?”, perguntou Dylan. “Acho improvável que ninguém tenha visto esse escorpião gigante.”
“Já lhes disse uma vez que a Seiren engana aqueles que não a utilizam. Nenhum homem comum é capaz de enxergar os poderes criados por essa energia. Vão entender isso como uma explosão, um terremoto ou algo do tipo. Assistam aos telejornais e terão ideia do que estou falando.”
“Essa cidade está sofrendo demais”, refletiu Derek. “A chegada de Juno, e agora isso! Sinto que as coisas ainda vão piorar muito.”
“Ylenia foi escolhida como palco para a caçada de Juno, Derek. Não há o que possamos fazer, a não ser torcer para que essa cidade-nação suporte a batalha que está por vir. Certamente as coisas vão piorar. Viram hoje o potencial que puderam atingir, não viram? Há diversos outros Vongeist por aí, evoluindo suas habilidades deste mesmo modo. Conseguem imaginar o que aconteceria se todos eles se enfrentassem na busca por Juno?”
Ambos negaram com as cabeças. Imaginar tamanha destruição não seria algo agradável, portanto dispensaram a oportunidade.
Derek quebrou o silêncio.
“O que faremos agora?”
“Vamos voltar para o Abrigo, onde vou instruí-los um pouco mais sobre Seiren e sobre Juno. Precisam estar aptos quando a hora chegar. Logo ela aparecerá mais uma vez, e as coisas serão diferentes. Hoje não havia concorrência. Ninguém se importaria em assistir Ioritz destruir a cidade, contanto que isso não afastasse o Pranto da Lua.”
“Não consigo acreditar que as pessoas sejam assim.”
“Mas elas são, Dylan. E são muito piores do que isso. Você ainda vai entender.”
“Espero que não entenda jamais. Altair, posso te fazer uma pergunta?”
“Além dessa?”
“Obviamente.”
Sorriram.
“Faça.”
Dylan hesitou. Queria perguntar sobre Eva, sobre a criatura trancada no Abrigo, sobre o passado de Altair. Conhecia tão pouco sobre aquele homem-pássaro, ainda que sentisse que poderia confiar sua vida a ele.
“Acho que ele vai te pedir em namoro”, zombou Derek.
“Cale a boca. Eu só queria saber se... Bom.” Encontrou os olhos de Altair, e eles pareciam saber de tudo. Talvez soubesse até mesmo que Dylan estava lá, escondido nas sombras, quando a criatura estrondou a porta que a trancava. Dylan achou melhor esquecer. “Ah, deixa pra lá. Teremos muito tempo para perguntas depois.”
“Como preferir.” Abriu os braços, deixando a névoa cobrir ambos os garotos. “Prendam a respiração! Dessa vez vocês vão vomitar, tenho certeza!”

***

Allana estava cansada de esperar.
Estava cansada de dormir, acordar, comer, beber, brincar e treinar, e então dormir outra vez. Estava cansada daquelas paredes brancas, daquela porta macia, daquela sensação de manicômio. Estava começando a se cansar até mesmo de Liam.
Então, a porta se abriu mais uma vez.
“Veio trocar a comida de novo?”
Não era o velho. Eram as gêmeas.
Luna falou:
“Chegou o momento de sua visita. Razvan está aguardando por sua presença.”
Allana hesitou. Durante todo aquele tempo, se esquecera de que estava prestes a encontrar aquele homem que tanto odiava, que nunca mais desejava encontrar. Recebera um convite que não poderia negar, e agora estava lá, uma prisioneira sendo tratada com cordialidade e carícias, mas ainda uma prisioneira. Esperara por tanto tempo que chegara a desistir, mas agora chegara a sua vez. Todas as coisas importantes de Razvan tinham acabado. Sobrara algum tempo para ela.
“Então ele realmente quer me ver?”
“Não estava acreditando em nós?”
“Não é isso. Não estava acreditando em mim. E continuo não acreditando nele. É um pouco irreal, se querem saber.”
Coral interrompeu:
“Razvan está esperando, Allana. Não podemos nos atrasar.”
Allana foi retirada de seu quarto-cela e guiada por uma série de corredores claros, sempre iluminados por lâmpadas de altíssima tecnologia. As paredes tinham adornos simbólicos, decorados com escudos e falcões de asas abertas, o emblema da Elizei, a milícia de Ylenia e de todas as cidades-nações.
Enquanto passava pelos corredores, Allana viu o velho que serviu chá para ela uma vez, e então outra, e logo havia dezenas deles, trabalhando ao mesmo tempo, servindo infindáveis salas de oficiais daquela organização militar. Sargentos e soldados passavam próximo a Allana, todos vestidos com o mesmo tipo de uniforme, estampado pelo prata e o cobre sombrio da Elizei. Nenhum deles parecia se importar com Allana, a maioria sequer olhava a garota, mas todos cumprimentavam as gêmeas com continências e acenos. Allana acreditou que ambas eram importantes.
“Chegamos”, anunciou Luna.
Era uma porta dupla, o escudo e o falcão predominavam no metal. À frente daquela entrada, seis soldados montavam guarda, um sargento os verificava. Uma oficial assistia aquela falsa exibição de poder, mas se retirou de prontidão quando as gêmeas surgiram.
Allana reparou que a oficial tinha uma cicatriz enorme no rosto, mas não fazia questão de escondê-la com seu cabelo curto.
“Tenente Chloe se apresentando, minhas senhoras”, disse a mulher, em sentido. “O Coronel Razvan aguarda a garota. Ordenou que eu a levasse até ele, capitãs.”
“Seja educada, Allana”, disse Coral. “É apenas uma visita. Converse com ele, seja uma mulher de verdade.”
“Eu sei o que devo fazer, Coral. Agradeço pela preocupação. Posso me virar agora.”
“Que assim seja.”
As gêmeas se afastaram, deixando Allana nos braços de Chloe.
“Siga-me.”
A tenente abriu a porta com as mãos, a escuridão atormentou Allana. Seus passos foram vagarosos, amedrontados por aquela presença odiosa. Sentia-se uma criança, pois assim seria tratada. Mas não estava sozinha. Tinha sua lança em mãos, ninguém se preocupou em desarmá-la. Tinha Liam, seu irmãozinho, seu eterno companheiro. Ficaria bem.
“Com licença, Coronel. A garota está aqui, como ordenou.”
“Está dispensada, Chloe.”
A voz era macabra, parecia fazer parte da escuridão. Dois olhos faiscaram na escuridão.
“Permissão para me retirar.”
“Vá.”
E Chloe desapareceu na porta, fechando-a atrás de si.
Allana estava na completa escuridão. Sentia as pernas tremerem. Cerrou os punhos na lança, esqueceu a visão. Confiou nos ouvidos.
“O que quer de mim, Razvan?”
As sombras riram de maneira fria e assustadora.
“Por que não começamos as coisas corretamente, Allana? Por que não fazemos tudo da maneira que a vida nos obriga?”
“O que quer de mim?”
O sorriso desapareceu.
“Quero que me respeite, antes de mais nada. Que se ponha em seu devido lugar, que entenda sua posição.”
Algo se moveu na escuridão.
“Quero que me chame de pai.”