Punho
e Espada
Sentados
sobre o Arco de Gael, Âmbar e Ioritz observavam Ylenia. Havia muita destruição
desde a chegada do Pranto da Lua, o caos ainda estava espalhado por todas as
ruas, empilhando destroços e ruínas de construções fabulosas.
“É
impressionante como Juno pode mudar o mundo, não é?” Âmbar filosofava com os
olhos perdidos no céu. “Sua aparição foi suficiente para marcar Ylenia desta
maneira, seus Guardiões são poderosos, capazes de matar Vongeist com
facilidade. Ela é realmente incrível, Ioritz. Temos que encontrá-la, ou nunca
vamos recuperá-la.”
“Ela
será nossa, Âmbar. Nada poderá nos impedir.”
A
manhã começava a nascer.
“O
que sabe sobre aquele garoto?”
“Não
me importo com ele, tampouco com Altair. Eles não podem nos impedir, Âmbar. São
fracos, são tolos. Nós temos um motivo de verdade, um motivo que nenhum deles
têm. Nunca nos entenderão, nunca aceitarão nosso desejo. Mas Juno será nossa.
Vamos mostrar a eles quão justa é a nossa causa.”
Âmbar
sorriu, contente pela companhia de Ioritz. Esticou um dos braços em suas
costas, deixou-o cair com leveza. Hesitou, recuou o membro, esqueceu o afeto
daquele momento.
O
sol surgia manhoso, crescendo no céu como uma esfera radiante.
“Ainda
temos chance. Podemos encontrar Juno na próxima vez que ela aparecer,
capturá-la rapidamente antes que qualquer outro saiba. Vamos ficar atentos,
Ioritz, e ninguém mais saberá que ela foi encontrada. Caso contrário, teremos
concorrência, cada dia mais.”
“Não
deixarei que nos impeçam.”
“Sei
que não. Você é o melhor, o mais valente. E eu estarei aqui a todo instante,
para tudo o que for preciso. Mas você entende o que estou dizendo, não entende?
Os Vongeist são inexperientes, não podem nos fazer mal, mas logo entenderão a
Seiren, serão empecilhos. A herança, Altair, Vergess, todos serão obstáculos.
Se pudéssemos encontrar Juno antes que as coisas piorassem, seria uma vitória
perfeita.”
“Teremos
a nossa vitória, quando chegar a hora. Eles não podem nos vencer, Âmbar. Nós
temos tudo planejado. Falta apenas Juno aparecer, e assim a teremos em nossas
mãos.”
De
súbito, Âmbar se espantou. Arregalou os olhos, procurou ao redor, respirou com
dificuldade. Sentia-se observada, sentia-se alvejada por um veneno sem igual,
por um sentimento sem tamanho.
“Ioritz.”
“Eu
o senti.”
Puxou
o sobretudo, deixou que a cauda de escorpião desbravasse os ares, iluminada
pelos primeiros raios de sol da manhã.
“É
ele, aquele cara! Aquela cobra!”
“Kilian.”
Ouviram
um sibilar, e então silêncio. Estavam sozinhos outra vez.
“Ele
já se foi, Âmbar.” Baixou a arma natural, escondeu-a outra vez nas vestes.
“Estava aqui, eu o senti! Maldito Kilian.”
“O
que ele queria?”
“Ele
é nosso inimigo, não importa quais os seus planos. Estava espionando, escutando
nossa conversa. Ele sabe sobre nós. Sabe que viemos para vencer, dessa vez. Sabe
que faremos de tudo por Juno.”
“Acha
que ele pode nos atrapalhar?”
“Muito
provavelmente.”
“O
que faremos agora?”
Ioritz
deu as costas para o sol.
“Vamos
partir. Temos que acelerar as coisas.”
“Acelerar?”
“Exato.
Não podemos mais esperar que Juno apareça, Âmbar. Vamos chamar a sua atenção.”
***
Allana
estava em um lugar estranho.
Levada
por Luna e Coral, encontrou-se sozinha numa sala acolchoada, onde tudo era
branco e macio. Havia uma porta, mas ela estava fechada, nenhuma outra saída se
mostrava útil. Esperou por uma eternidade até que alguém aparecesse, um velho
corcunda e de bigode aparado, trazia chá.
“Onde
eu estou?”
“Esperando
por sua audiência com o Senhor Razvan, senhorita.”
“E
quanto tempo vai demorar?”
“Ora,
ele é um grande comandante, peço que não tenha pressa. Após os assuntos de
maior prioridade, você será chamada. Agora coma, ou morrerá de fome antes de
falar com ele.”
O
velho sorriu, encheu uma xícara com a bebida fumegante, ofereceu torradas.
Allana aceitou, comeu. Fez uma mesura para sua Gier, o velho estranhou.
“Fique
à vontade, senhorita.”
E
se retirou. Era difícil ficar à vontade, praticamente impossível. Não havia o
que fazer, não havia nada para observar. Allana comeu, bebeu o chá, se
alimentou como há muito não fazia. Reparou que a comida e a bebida se
preenchiam a cada instante, efeito de uma Seiren estocada naqueles
instrumentos. Parecia bobagem, mas ela admirou aquele poder por algum tempo.
Bebia o chá, virava o restante no chão, assistia à garrafa se encher outra vez.
Era fabuloso.
Logo
perdeu a graça, entretanto. Allana caminhou de um lado para o outro, chutou o
vento, brincou com sua lança. Não era a melhor lutadora, sequer conseguia usar
a sua própria arma com precisão. O cabo era maior que seus braços, tornava o
manejo algo complexo, mas a Gier era eficiente, além de bela.
“Obrigada,
Liam.”
“Pelo
quê?”
“Por
se tornar uma arma tão bonita. Assim, não estarei apenas derrotando meus
adversários. Farei com que eles tenham inveja também.”
O
Uberein riu.
“Que
seja. Não me faz diferença. O importante é que você vença esse jogo.”
“Será
que podemos realmente chamar isso de jogo?”
“Depende
do ponto de vista.”
“Já
ouviu falar do Jogo da Vida?”
“Não.”
“Era
algo famoso no passado.”
“Nunca
ouvi falar, irmãzinha.”
“Eu
gostava. Jogava com meus pais. Lá a gente vivia, ganhava dinheiro, comprava as
coisas. Morria. Mas tudo era uma brincadeira. Tudo era um teatro, terminava em
risadas. Ninguém morria de verdade. Aquilo era um jogo, Liam.”
“Nosso
jogo é um pouco diferente. Você tem medo de morrer, irmãzinha?”
“Não.
Mas tenho medo de perder o jogo.”
Allana
bocejou, tinha sono. Deitou-se em algum canto, deixou-se adormecer. O velho a
visitou outra vez, trocou a refeição, ela não se levantou. Acordou horas mais
tarde, não sabia se era noite ou dia. Aproximou-se da comida, tinha agora
achocolatado e pão adocicado.
“Esqueceram
da geleia.”
Mas
comeu, de qualquer forma. Comeu, brincou com a Seiren infinita, riu sozinha,
como criança. Levantou-se, praticou com sua lança, fez pequenos truques com sua
Seiren. Então se deitou outra vez, cansada.
Não
saber se era noite ou se era dia era algo cansativo.
Dormiu,
acordou, comeu, treinou. Tudo outra vez. Estava entediada.
“Será
que eu posso explodir esse lugar?”
“Não
acredito que seria uma boa coisa a ser feita, irmãzinha. Poderia se machucar,
ou chamar atenção de quem não seria uma boa companhia.”
“Eu
estou presa, Liam. Estou presa aqui, como uma criminosa. Pior do que isso: como
uma louca.”
“E
você não é louca, irmãzinha?”
Allana
riu alto.
“Não
diga isso alto, as paredes têm ouvidos!”
“Me
desculpe.”
A
porta se abriu, Luna e Coral passaram por ela.
“Como
você está?”, perguntou Luna.
“Estou
bem, mesmo que tratada como prisioneira. Já viram isso?” Allana despejou toda
comida no chão, fez sinal para que as gêmeas observassem. Os restos
desapareceram, a bandeja se preencheu outra vez por pães e torradas. “É
incrível, não acham?”
“Vai
precisar esperar mais um pouco”, continuou Coral. “Razvan ainda não está aqui.
Está resolvendo alguns assuntos em outra cidade-nação.”
“E
onde precisamente nós estamos?”
As
irmãs alternavam os diálogos.
“Ainda
é Ylenia.”
“Não
a tiramos de seu lar.”
“Razvan
logo estará aqui para encontrá-la.”
“Que
homem é capaz de deixar uma dama esperando?” Allana riu sozinha. “Tudo bem, eu
posso esperar. Tenho companhia.” Agitou a lança. Derrubou o chocolate quente no
chão, viu o recipiente se encher novamente. “E chocolate para toda a
eternidade.”
Luna
e Coral a cumprimentaram, saíram sem olhar para trás. Allana bebeu outro gole,
deitou-se, dormiu. Sonhou com uma sala branca e estofada, respirou, viu que não
era um sonho. Praguejou, riu sozinha. Então dormiu outra vez.
***
Derek
e Dylan treinaram por três dias.
Conseguiram
alguns feitos, mas nada glorioso. Derek foi capaz de criar seu fogo, chamas
verdes e minúsculas, e uma delas quase incinerou suas roupas. Dylan tinha mais
facilidade com a vontade e o pensamento, mas sua execução ainda era imprecisa,
saía de controle a todo momento, rajadas de ar e vácuo disparavam para todas as
direções sem aviso. Mas mostravam progresso, e isso era o importante.
Altair
os ensinava a farejar, ao mesmo tempo em que tentava colocar algum juízo em
suas mentes.
“A
Seiren é importante, mas igualmente importante é saber encontrar Juno. Ela é a
verdadeira razão dessa batalha, se me permitem dizer. Sem ela, não adianta
lutar. Juno é aquela que realizará seus desejos. Se não soubermos farejá-la, de
que adianta saber lutar?”
Juno
não estava por perto, portanto Altair optou por usar um cheiro diferente. Usou
o cheiro de um Guardião, criado por sua própria Seiren para servir de
treinamento aos Vongeist. Farejar era algo tão difícil quanto usar a Seiren com
precisão, mas Derek e Dylan faziam o seu melhor.
“Vocês
não devem se concentrar nas narinas, como cães”, repetia Altair. “Farejar a
Seiren é diferente. Precisamos entender uma criatura, sua essência, seu
interior, e só então seremos capazes de apontá-la. Se ela estiver próxima,
saberemos dizer. Se estiver se aproximando, poderemos pressentir. Um bom
talento em farejar permitiria chegar a um local antes mesmo de Juno, para que
fosse possível preparar o terreno para uma armadilha ou coisa parecida. Me
escutem, mas continuem praticando!”
Num
momento inoportuno, Dylan farejou algo. Não era o Guardião, nem mesmo os odores
dos Abrigos. Era uma essência diferente, um cheiro peculiar, ardente. Era
familiar, já a sentira antes, mesmo que não soubesse diferenciar aquele tipo de
sensação antes de conhecer Altair e seus ensinamentos.
“Altair,
acho que encontrei algo.”
Altair
se aproximou de Dylan.
“É
o Guardião?”
“Não.
É diferente. Parece mais distante.”
“Mais
distante? Acho difícil, Dylan. Estamos num Abrigo, se lembra? Não podemos
farejar a superfície com precisão.”
“Não
estou tentando, apenas senti essa coisa e... Não sei. Parece familiar. Talvez
eu já tenha visto o dono dessa essência.”
“E
com o quê se parece?”
Dylan
refletiu e, para sua surpresa, disse a primeira palavra que lhe surgiu à mente:
“Veneno.”
Derek
ergueu a sobrancelha.
“Eu
só sinto cheiro de mofo e ferrugem.”
“Porque
está farejando como um cachorro!”, zombou Altair. Voltou-se para Dylan.
“Veneno?”
“É
o que me parece.”
Altair
fechou os olhos. Aquela não era uma opinião enfadonha, uma resposta de um aluno
que não sabe o que deve responder. Dylan não parecia mentir, inventar ou algo
do tipo. Decidiu verificar por si mesmo.
Encontrou
veneno.
“Há
algo errado.”
Derek
não entendia.
“O
que está acontecendo?”
“Tem
alguma coisa na cidade!”
Dylan
se assustou com a agitação súbita de Altair.
“É
Juno?”, perguntou ele.
“Antes
fosse. Não me parece Juno. Sinto algo maligno.”
“Um
monstro?”
“Vamos
descobrir. Preparem suas Gier, concentrem-se na Seiren, se necessário. Desta
vez não é um treinamento, garotos. É real.”
***
Carregados
pela névoa de Altair, Derek e Dylan sentiram-se enjoados pelo transporte súbito,
mas não se deixaram abalar. Por dentro, estavam excitados. Num primeiro
momento, tiveram medo das criaturas, das batalhas, por não entender o que
estava acontecendo. Agora, tinham noção, poderiam se defender. Tinham suas
armas, tinham vontade e poder. Estavam ansiosos para encontrar algum Guardião
ou coisa do tipo, para testar os ensinamentos de Altair.
O
que encontraram no centro de Ylenia, entretanto, os assustou. O medo que
aboliram de seus corpos voltou como um trovão, impregnou como o odor de um esgoto
aberto. Enquanto esperavam por um adversário, por um monstro, encontraram algo
grotesco, inesperado. Recuaram, as pernas trêmulas, os olhos incrédulos.
Não
era um monstro: era um escorpião.
Altair
praguejou.
“Ioritz.”
Ioritz
estava lá, mesmo Derek pôde sentir. Acima daquela criatura colossal, o
homem-escorpião distribuía ordens, comandava aquele ser medonho e asqueroso. A
criatura era maior do que o Estádio Central de Ylenia fora, suas pinças
pareciam capazes de agarrar casas e prédios. A cauda movia-se desajeitada acima
de seu corpo, sacudia de um lado para o outro, despejava uma gosma fétida que,
ao tocar no solo, fumegava de maneira ácida e assustadora.
“O
que ele pretende com isso?”, perguntou Derek.
“Não
é óbvio?”
A
voz de Âmbar surpreendeu a todos. A dama de sorriso brilhoso caminhava com
elegância, desfilava. Sequer parecia se importar com a monstruosidade que
destruía partes de Ylenia com seu corpanzil.
“O
quê em um escorpião gigante pode ser óbvio?”
“Ele
está chamando atenção, crianças. Está trazendo Juno até nós.”
“Juno
não virá!”, tentou Altair, mas Âmbar não acreditou em suas palavras.
“O
que sabe sobre ela, seu pássaro maldito? Não sabe nada nem mesmo sobre sua
própria família!”
As
palavras feriam.
“Não
vou deixar que Ioritz use inocentes em sua estratégia insana!”
Âmbar
gargalhou.
“Tarde
demais.”
E
era. O escorpião cerrou as pinças contra o prédio de uma empresa televisiva, as
vidraças estouraram ante a atrocidade de sua existência. Dylan assistiu, sem
nada poder fazer, enquanto aquela imensa construção desmoronava, como se feita
de cartas de baralho. Ver aquilo ruir, do mesmo modo que o local que tirou a vida
de sua esposa e seu treinador, fez com que Dylan se enfurecesse.
“Mande-o
parar!”
Âmbar
achava graça.
“Quem
vai fazer isso, garoto? Você? Um simples Vongeist, dependente destas
criaturinhas impuras que se chamam de Uberein? Vai parar Ioritz, seu moleque?”
Dylan
deu as costas a Âmbar, correu na direção do escorpião.
“Espere
por mim!”
Derek
o seguiu.
“Não
façam isso!”
Altair
tentou alcançá-los, Âmbar o impediu. Um círculo de espinhos amarelos
circundou-os, formando uma prisão de estacas e lâminas.
“Você
não é um garoto, Altair. Não vou deixar que interfira no plano de Ioritz. Não
vai nos atrapalhar outra vez.”
“Ainda
se lembra?”
“E
como poderia esquecer?”
Altair
sorriu. Parte de si estava preocupada com Derek e Dylan. Eram jovens, tolos e
destemidos, mas não estavam preparados para enfrentar aquela monstruosidade. A
outra parte estava ansiosa para vê-los lutar, pois somente assim saberia se seus
ensinamentos estavam servindo de alguma coisa.
Uma
terceira parte queria derrotar Âmbar, para relembras os velhos tempos.
“Tenho
uma sugestão, Âmbar. Vamos recordar nossos dias passados. Você finge ser capaz
de me enfrentar, novamente. Eu finjo que não posso derrotá-la. Fazemos um
teatro, brincamos um pouco, então acabamos com isso como fizemos aquela vez. O
que acha?”
Âmbar
esticou os braços, cada uma de suas unhas se tornou uma lâmina dourada e
cintilante. As garras riscavam o asfalto conforme a mulher se movia.
“Tenho
uma sugestão ainda melhor, Altair. Já dissecou alguém?”
Dylan
não diminuía o ritmo de seus passos.
“Dylan,
me espere!”
“Não
podemos esperar, Derek, aquela coisa está matando gente inocente!”
“E
como pretende enfrentar aquilo?”
“Não
sei, mas não pretendo assisti-lo enquanto destrói a minha cidade!”
“Gosto
da sua determinação, sabia? Por que não formamos um grupo? Sei lá, tipo uma
dupla de super-heróis para defender a justiça, para proteger o mundo dos
vilões. Vamos nos unir, Dylan! Podemos ser o Punho e a Espada!”
Dylan
não estava escutando. Seus olhos estavam focados no escorpião e, muito distante
do solo, em Ioritz. Tinha de alcançá-lo, tirá-lo de cima daquele monstro,
evitar que aquele insano trouxesse mais destruição para Ylenia. Queria pensar
em algo, mas tudo acontecia muito rápido, de maneira descontrolada e
estrondosa. A voz de Derek, o estrondo da criatura, os gritos apavorados das
pessoas que fugiam pelas ruas, tudo atordoava Dylan, transformava seus
pensamentos em migalhas.
Então,
de súbito, parou. Havia silêncio, calmaria e tranquilidade. Tudo se movia
devagar, mesmo Derek e os fugitivos, mesmo aquele monstro tenebroso e suas
pinças furiosas. Dylan conseguia enxergar com perfeição, pensar com facilidade.
Viu a cauda despejar veneno, viu uma casa soterrar seus moradores, viu um casal
de namorados se atirar na Praia de Lluvia para se afastar do conflito. Viu as
pinças se abrirem, viu no céu as nuvens se moverem vagarosas, viu uma multidão
correr apavorada, pensavam se tratar do fim do mundo. Não sabia como, mas o dom
que usara durante toda a sua vida para vencer seus oponentes no Armor Boxing
estava funcionando ali, com aquela monstruosidade. Decidiu não questionar, mas
sim aproveitar aquela oportunidade para alcançar Ioritz.
Estudou
a paisagem: um brinquedo metálico para crianças, um telhado destruído sobre uma
casa, um poste de iluminação, um prédio desmoronando, um enorme bloco de
concreto suspenso pela pancada do escorpião. Montou sua escada, visualizou seu
trajeto, firmou os pés. Acelerou e, junto de sua respiração, o tempo voltou a
correr normalmente.
“O
que você vai fazer?!”
A
voz de Derek foi esquecida na confusão. Por um momento, Dylan se esqueceu do
mundo, se concentrou em seus movimentos, confiou em sua destreza, em sua força,
em seus reflexos. Saltou como um felino, ganhou impulso no metal, então no
telhado, rodopiou no poste com as mãos, correu por sobre a construção em queda,
rolou na direção de uma rocha dispersa e, num último saltou, alcançou uma das
pinças com suas mãos enluvadas.
“Mas
que merda foi essa?” Derek estava abobado no chão, os olhos confusos pela
agilidade de Dylan. Aquelas eram as habilidades de um campeão?
Decidiu
que não ficaria para trás. Preparou sua espada.
Dylan
escalou, usando o peso do corpo para se impulsionar para cima até que
alcançasse as costas do escorpião, onde estava Ioritz.
“O
que está fazendo aqui?”
“Estou
acabando com essa loucura!”
E
saltou na direção do vilão, os punhos preparados para se defender. Ioritz se
livrou das vestes, deixou que sua cauda venenosa se movesse livremente, golpeou
com velocidade, atingiu o ar. Dylan enxergava-o devagar, os olhos preparados
para a esquiva e o contra-ataque. Sentia um urso dentro de si, urrava junto da
Seiren. Deixou-o escapar.
A
cauda de peçonha se agitou no ar, Dylan a evitou com um dos braços, o outro
alcançou a garganta de Ioritz. Tirou-o do chão, jogando-o para trás, imobilizou
seu corpo com peso de um campeão. Sobre ele, Dylan socou de maneira impiedosa,
os punhos rutilavam a cada pancada. Ioritz se livrou do oponente com as pernas,
ergueu-se em frenesi.
“Quem
você pensa que é, garoto? Acha que pode me impedir? Eu tenho um desejo para
fazer! Ninguém vai entrar em meu caminho!”
“Quero
que se dane o seu desejo, escorpião. Todos temos algo pelo quê lutar. Nada
justifica abusar de inocentes para isso. Não vou permitir que você destrua a
minha cidade dessa maneira!”
“Sua
cidade?”
Ioritz
fingiu uma investida, Dylan se defendeu, enganado. O ataque viria de cima, do
próprio monstro que era aquele escorpião gigantesco. A cauda de Ioritz se
ergueu, mas era miúda se comparada ao membro nauseante que desabava na direção
de Dylan. Tentou se concentrar, evitar aquele golpe, mas não sabia o que fazer.
Não havia esquiva, contra-ataque, nada.
Fechou
os olhos, cobriu o rosto com os punhos, esperando pelo nocaute que nunca vira
nos ringues.
Naquele
dia, Ylenia viu chover veneno.
O
ferrão despencou da criatura, decepado de maneira imperceptível. O monstro
guinchava, sacudindo o membro incompleto enquanto seu veneno escorria por seu
corpo. Ioritz praguejou, Dylan não entendeu. À frente, Derek sorria, confiante.
A espada brilhava em Seiren.
“Qual
é, Dylan? Já se esqueceu? Punho e Espada!”
Dylan
percebeu que devia sua vida àquele cara.
“Maldita
herança!”, Ioritz lembrou-os da situação, avançou na direção de Derek, Dylan o
impediu. Agarrou sua cauda com ambos os braços, imobilizando o homem-escorpião
de um modo humilhante.
“Sempre
vi programas na televisão sobre animais e insetos, sabia? Eles ensinam a pegar
escorpiões pela cauda e, assim, eles se tornam indefesos. Nunca pensei que
faria uso desse conhecimento. Chega a ser hilário, não concorda?”
Ioritz
se debateu, mas não poderia se livrar dos braços de Dylan. Ele era forte,
valente e, acima de tudo, justo. Depois de todas aquelas mortes sem sentido,
Ioritz tinha de pagar, e preço algum seria o suficiente.
“Morra,
garoto!”
“Tenho
uma ideia diferente.”
Sem
hesitar, Dylan arrancou a cauda de Ioritz.
O
escorpião gigantesco desmoronou.
Ioritz
urrava. O sangue se misturava ao veneno que escapava de seu corpo mutilado,
despencando junto do corpo da aberração que ele próprio criou. Derek e Dylan se
equilibraram, pousando como guerreiros preparados. Cumprimentaram-se: tinham
vencido aquela batalha.
***
Ao
longe, Âmbar ofegava.
“Desista,
Âmbar”, Altair continuava a provocar. Estava ferido, arfava, mas não se deixava
abalar. Vencia suas batalhas pela atuação, muito antes de derrotar seus
oponentes numa luta verdadeira. “Você não pode me vencer assim.”
“Está
nervoso por causa dessa sua aparência, Altair? Vai se ajoelhar outra vez
implorando para voltar ao normal?”
Altair
avançou, mas Âmbar fugiu. Os espinhos que os cercavam desintegraram por sua
vontade, incendiando o solo abaixo dos pés de seu adversário, o que retardou a
perseguição. No fundo, Âmbar sabia que fora derrotada, mas não fazia diferença.
O plano falhara, de qualquer modo.
Olhando
para o alto, Altair viu a monstruosidade de Ioritz ruir. Sentiu orgulho de si
mesmo, mas não antes de se preocupar com seus aprendizes. Correu até eles.
Ioritz
se ergueu.
“Âmbar!”
Gritava.
“O
que aconteceu?!”
“Esses
cretinos! Esses garotos insolentes! Eles estragaram tudo, Âmbar!”
“Vamos
embora, Ioritz.”
“Vocês
vão me pagar, crianças! Vou arrancar os seus olhos enquanto dormirem! Aprendam
uma coisa: não há veneno algum que se compare com o meu.”
E
desapareceu junto da mulher de unhas amarelas.
Dylan
caiu de joelhos.
“Cara,
você foi incrível!”, elogiava Derek, também ofegante. “Mas, da próxima vez, não
saia correndo como um abestado! Nós somos uma dupla, cara! Estamos juntos
nessa.”
Dylan
agradeceu, mas não pôde evitar as palavras.
“Até
quando?”
“Até
quando for possível. Não se preocupe com isso. Temos muitas outras coisas para
enfrentar antes de encontrar Juno. Nessa hora, vamos descobrir quem merece ficar
com ela.”
“Eu
te devo uma, amigo.”
“Relaxa.
Vai me esperar da próxima vez?”
“Prometo
que vou tentar.”
“Então
está tudo certo.”
Apertaram
as mãos, como homens. Como amigos.
Altair
surgiu.
“Vocês
estão bem?”
“Ah,
que isso, brincadeira de criança!”, começou Derek. “Derrubar monstrengos desse
tipo era minha especialidade na infância. Minha mãe sempre dizia que eu tinha
um talento nato para livrar o mundo daquilo que o envenena.”
“Nenhum
de vocês foi atingido por aquele veneno?”
“Estamos
bem, Altair, obrigado pela preocupação.” Dylan observou o homem-pássaro. Estava
ferido. “E você, está bem? Parece que aquela mulher conseguiu mesmo te
machucar.”
“Estou
ótimo. Já a derrotei uma vez antes, não seria diferente agora.”
Derek
se impressionou com o comentário.
“Você
tem muitas histórias, não é? Precisa nos contar algumas quando tiver
oportunidade.”
“Claro,
mas antes disso, quero ouvir uma história melhor. A história que explica o
motivo de vocês dois saírem correndo para longe de mim, sem que eu permitisse,
para enfrentar uma criatura que sequer sabiam como derrotar. Quem vai me contar
esta?”
Dylan
tomou a frente:
“A
culpa é minha, Altair. Eu perdi a noção ao ver aquele monstro matar gente
inocente. Não poderia deixar que isso acontecesse, de jeito nenhum. Muita gente
morreu no Estádio Central naquela noite da final do mundial. Eu estava lá, e
muitos daqueles que eu amava também. Vê-lo fazer aquilo sem hesitar me fez
perder a cabeça.”
“É,
a culpa é dele! Eu só o acompanhei para evitar que causasse mais problemas ou que
se machucasse demais!”
Dylan
se mostrou indignado, enquanto Derek apenas deu de ombros.
“A
atitude de vocês foi correta, mas arriscada. Não se deve lutar sem saber o que
está enfrentando. Se tivessem me ajudado, poderíamos ter derrotado aquela
mulher rapidamente, então enfrentaríamos aquele monstro juntos. Não estou
subestimando-os, vi que são capazes de lutar por si mesmos. Apenas deixo esta
experiência como aprendizado: todas as ações têm rotas mais seguras. Precisamos
sempre enxergá-las, escolher o melhor caminho, proteger a todos enquanto
protegemos a nós mesmos. De que adiantaria correr até o escorpião se morressem
enfrentando Ioritz? Pensem nisso.”
“Eu
sinto muito. Mas, no final, tudo deu certo. Conseguimos derrotar aquele monstro
e, cá entre nós, acho que ferrei a vida daquele escorpião. Não creio que ele vá
envenenar mais ninguém durante um bom tempo.”
“Mas
ele vai voltar, Dylan, e isso é ruim. Agora, você é um inimigo. Ioritz é
vingativo, não mede esforços para machucar aqueles que odeia. Ele vai se
recuperar, e então virá atrás de você.”
“E,
quando ele vier, eu vou saber usar a Seiren como ninguém, e estarei esperando.
Na próxima vez, não vou arrancar apenas a sua cauda.”
Altair
sorriu.
“Vocês
foram ótimos, ainda que agindo como loucos. Estou orgulhoso de tê-los ensinado
algumas coisas e ver que isso surtiu algum efeito. O trabalho em equipe foi
muito bom.”
“Somos
o Punho e a Espada, sabia?” Derek parecia realmente feliz com a ideia.
“Admiro
esse sentimento de amizade. Infelizmente, não pode durar para sempre. Deixemos
isso para mais tarde. Vocês estão de parabéns.”
“E
o que será de Ylenia?”, perguntou Dylan. “Acho improvável que ninguém tenha
visto esse escorpião gigante.”
“Já
lhes disse uma vez que a Seiren engana aqueles que não a utilizam. Nenhum homem
comum é capaz de enxergar os poderes criados por essa energia. Vão entender
isso como uma explosão, um terremoto ou algo do tipo. Assistam aos telejornais
e terão ideia do que estou falando.”
“Essa
cidade está sofrendo demais”, refletiu Derek. “A chegada de Juno, e agora isso!
Sinto que as coisas ainda vão piorar muito.”
“Ylenia
foi escolhida como palco para a caçada de Juno, Derek. Não há o que possamos
fazer, a não ser torcer para que essa cidade-nação suporte a batalha que está
por vir. Certamente as coisas vão piorar. Viram hoje o potencial que puderam
atingir, não viram? Há diversos outros Vongeist por aí, evoluindo suas
habilidades deste mesmo modo. Conseguem imaginar o que aconteceria se todos
eles se enfrentassem na busca por Juno?”
Ambos
negaram com as cabeças. Imaginar tamanha destruição não seria algo agradável,
portanto dispensaram a oportunidade.
Derek
quebrou o silêncio.
“O
que faremos agora?”
“Vamos
voltar para o Abrigo, onde vou instruí-los um pouco mais sobre Seiren e sobre
Juno. Precisam estar aptos quando a hora chegar. Logo ela aparecerá mais uma
vez, e as coisas serão diferentes. Hoje não havia concorrência. Ninguém se
importaria em assistir Ioritz destruir a cidade, contanto que isso não
afastasse o Pranto da Lua.”
“Não
consigo acreditar que as pessoas sejam assim.”
“Mas
elas são, Dylan. E são muito piores do que isso. Você ainda vai entender.”
“Espero
que não entenda jamais. Altair, posso te fazer uma pergunta?”
“Além
dessa?”
“Obviamente.”
Sorriram.
“Faça.”
Dylan
hesitou. Queria perguntar sobre Eva, sobre a criatura trancada no Abrigo, sobre
o passado de Altair. Conhecia tão pouco sobre aquele homem-pássaro, ainda que
sentisse que poderia confiar sua vida a ele.
“Acho
que ele vai te pedir em namoro”, zombou Derek.
“Cale
a boca. Eu só queria saber se... Bom.” Encontrou os olhos de Altair, e eles
pareciam saber de tudo. Talvez soubesse até mesmo que Dylan estava lá,
escondido nas sombras, quando a criatura estrondou a porta que a trancava.
Dylan achou melhor esquecer. “Ah, deixa pra lá. Teremos muito tempo para
perguntas depois.”
“Como
preferir.” Abriu os braços, deixando a névoa cobrir ambos os garotos. “Prendam
a respiração! Dessa vez vocês vão vomitar, tenho certeza!”
***
Allana
estava cansada de esperar.
Estava
cansada de dormir, acordar, comer, beber, brincar e treinar, e então dormir
outra vez. Estava cansada daquelas paredes brancas, daquela porta macia,
daquela sensação de manicômio. Estava começando a se cansar até mesmo de Liam.
Então,
a porta se abriu mais uma vez.
“Veio
trocar a comida de novo?”
Não
era o velho. Eram as gêmeas.
Luna
falou:
“Chegou
o momento de sua visita. Razvan está aguardando por sua presença.”
Allana
hesitou. Durante todo aquele tempo, se esquecera de que estava prestes a
encontrar aquele homem que tanto odiava, que nunca mais desejava encontrar.
Recebera um convite que não poderia negar, e agora estava lá, uma prisioneira
sendo tratada com cordialidade e carícias, mas ainda uma prisioneira. Esperara
por tanto tempo que chegara a desistir, mas agora chegara a sua vez. Todas as
coisas importantes de Razvan tinham acabado. Sobrara algum tempo para ela.
“Então
ele realmente quer me ver?”
“Não
estava acreditando em nós?”
“Não
é isso. Não estava acreditando em mim. E continuo não acreditando nele. É um
pouco irreal, se querem saber.”
Coral
interrompeu:
“Razvan
está esperando, Allana. Não podemos nos atrasar.”
Allana
foi retirada de seu quarto-cela e guiada por uma série de corredores claros,
sempre iluminados por lâmpadas de altíssima tecnologia. As paredes tinham
adornos simbólicos, decorados com escudos e falcões de asas abertas, o emblema
da Elizei, a milícia de Ylenia e de todas as cidades-nações.
Enquanto
passava pelos corredores, Allana viu o velho que serviu chá para ela uma vez, e
então outra, e logo havia dezenas deles, trabalhando ao mesmo tempo, servindo
infindáveis salas de oficiais daquela organização militar. Sargentos e soldados
passavam próximo a Allana, todos vestidos com o mesmo tipo de uniforme,
estampado pelo prata e o cobre sombrio da Elizei. Nenhum deles parecia se
importar com Allana, a maioria sequer olhava a garota, mas todos cumprimentavam
as gêmeas com continências e acenos. Allana acreditou que ambas eram
importantes.
“Chegamos”,
anunciou Luna.
Era
uma porta dupla, o escudo e o falcão predominavam no metal. À frente daquela
entrada, seis soldados montavam guarda, um sargento os verificava. Uma oficial
assistia aquela falsa exibição de poder, mas se retirou de prontidão quando as
gêmeas surgiram.
Allana
reparou que a oficial tinha uma cicatriz enorme no rosto, mas não fazia questão
de escondê-la com seu cabelo curto.
“Tenente
Chloe se apresentando, minhas senhoras”, disse a mulher, em sentido. “O Coronel
Razvan aguarda a garota. Ordenou que eu a levasse até ele, capitãs.”
“Seja
educada, Allana”, disse Coral. “É apenas uma visita. Converse com ele, seja uma
mulher de verdade.”
“Eu
sei o que devo fazer, Coral. Agradeço pela preocupação. Posso me virar agora.”
“Que
assim seja.”
As
gêmeas se afastaram, deixando Allana nos braços de Chloe.
“Siga-me.”
A
tenente abriu a porta com as mãos, a escuridão atormentou Allana. Seus passos
foram vagarosos, amedrontados por aquela presença odiosa. Sentia-se uma
criança, pois assim seria tratada. Mas não estava sozinha. Tinha sua lança em
mãos, ninguém se preocupou em desarmá-la. Tinha Liam, seu irmãozinho, seu
eterno companheiro. Ficaria bem.
“Com
licença, Coronel. A garota está aqui, como ordenou.”
“Está
dispensada, Chloe.”
A
voz era macabra, parecia fazer parte da escuridão. Dois olhos faiscaram na
escuridão.
“Permissão
para me retirar.”
“Vá.”
E
Chloe desapareceu na porta, fechando-a atrás de si.
Allana
estava na completa escuridão. Sentia as pernas tremerem. Cerrou os punhos na
lança, esqueceu a visão. Confiou nos ouvidos.
“O
que quer de mim, Razvan?”
As
sombras riram de maneira fria e assustadora.
“Por
que não começamos as coisas corretamente, Allana? Por que não fazemos tudo da
maneira que a vida nos obriga?”
“O
que quer de mim?”
O
sorriso desapareceu.
“Quero
que me respeite, antes de mais nada. Que se ponha em seu devido lugar, que
entenda sua posição.”
Algo
se moveu na escuridão.
“Quero
que me chame de pai.”
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