terça-feira, 27 de novembro de 2012

Conto - Par ou Ímpar


Par ou Ímpar

—Par.
Rosa sempre escolhia par. Não era de se surpreender que, na última vez em que jogasse aquilo com Thomas, fizesse o mesmo.
—Ímpar.
Ele não tinha outras opções, na verdade. Sua vida sempre fora assim, sem escolhas. Ficava com o que sobrava e, como de costume, tinha de se contentar com isso, aproveitar o que conseguia e viver da melhor maneira possível.
Jogaram, confiando na sorte. Rosa deixou quatro de seus dedos em riste; Thomas, um.
—Eu ganhei —disse ele.
—Não é justo!
—Não mesmo! É sorte. A sorte nem sempre é justa.
Ela não parecia feliz, mas acabou por aceitar o resultado. Olhava para o relógio a cada quinze segundos, como instruída por seus pais. Não podia se atrasar de maneira alguma.
—E então? —perguntou ela.
—Então o quê?
—O que você escolhe?
—Como assim escolher?
—Ah, Thomas, presta atenção no jogo! Nós acabamos de combinar que quem ganhasse poderia escolher uma coisa do outro, lembra?
Ele se lembrava, sim, e essa era a pior parte.
—Vamos lá, não tem nada que você queira me pedir?
Na verdade, havia sim. Várias coisas, inclusive, mas algumas delas eram impossíveis. Talvez todas fossem. Que diferença faria? Ele não diria nada, como sempre, e a oportunidade passaria diante de seus olhos. Costume. Rotina. Nada de diferente.
—Eu vou pensar em algo, prometo.
Enquanto pensava, Thomas pegou um pedaço de papel e rabiscou algo, depois o amassou e colocou no bolso.
—Você é muito chato, sabia? —disse Rosa. —É só um pedido, qual é! Você pode pedir para ficar com os meus jogos de Super Nintendo, se quiser. É claro que eu não me livraria de todos eles, mas poderia pensar em te presentear com alguns e —
—Rosa, eu não tenho um Super Nintendo. E, sinceramente, não me importo com fita alguma.
Me importo com outra coisa.
—O que disse?
Ele percebeu que havia sussurrado algo sem significado, e achou melhor assim.
—Nada. Que horas são?
—Tenho vinte minutos.
SÓ VINTE?!
—Então vamos indo.
—Mas ainda é cedo!
—Não para quem tem que caminhar até o aeroporto.
Ambiente-se na situação, companheiro: vivenciamos a despedida de dois amigos de infância. Após anos convivendo nas mesmas escolas, sempre nas mesmas salas, Rosa e Thomas teriam de separar. Os pais dela se preparavam para uma viagem de negócios e, possivelmente, partiriam para o exterior em alguns meses. Ela, menor de idade, os acompanharia, obviamente. Não que fosse essa sua vontade, claro, mas seria bom. O inglês que ela sempre estudou seria posto a prova, enfim, e ela teria grandes oportunidades  de se destacar em outro país.
E ele?
Thomas, por sua vez, ficaria ali, sozinho. Ele nunca iria ao exterior. Nunca teve vontade, muito menos oportunidade. Não tinha inveja dela, no entanto. Torcia para o seu sucesso. Torcia para que ela conseguisse realizar todos os seus sonhos, porque ela não conseguiria.
Tinha inveja dos pais dela, pois eles sempre estariam ao lado daquela garota incrível.
—Tem certeza que não quer me pedir alguma coisa?
Rosa insistia naquilo. Era óbvio que Thomas queria pedir algo, mas as suas vontades não importavam. Eram impossíveis. Não havia escolhas, como sempre.
—Tenho —mentiu, e ela se deixou cabisbaixa até o fim do percurso.
O aeroporto estava bem movimentado, mas nunca é difícil encontrar um casal de pais esperando por sua filha. A mãe de Rosa acenava para ela, as malas ao seu lado. O pai dela vestia um terno elegante, provavelmente preparado para pousar numa mesa de reunião ou similar.
—Olá, Thomas —cumprimentou o senhor Marcos, sorridente.
Thomas acenou, entristecido.
—Rosa, nosso voo sai em alguns minutos —disse sua esposa, Nádia. —Vamos até os assentos de espera para reservar os tickets. Nos encontre lá assim que terminar de se despedir, tá bem?
—Ok, mamãe.
Rosa assistiu enquanto seus pais se afastavam, e só então percebeu que estava ali, mesmo. Não havia mais volta. Não havia mais nada.
—Eu... eu vou sentir sua falta, Thomas.
Ele tinha uma lágrima no canto dos olhos. Fazia um esforço imenso para não permitir que ela escapasse.
—Eu também, Rosa.
Ríspido, seco, frio. Mascarado.
Rosa se aproximou, abraçando Thomas com todas as suas forças, e ali ela chorou, tristonha. Aquele pesadelo poderia durar dias, semanas, meses. Anos.
Poderia nunca mais acabar.
—Eu vou voltar um dia, você sabe.
—Eu vou estar esperando.
—O que disse?
Thomas ruborizou. Desviou o olhar, pigarreou.
—Eu disse que sei. Tomara que possamos nos ver novamente.
—Temos a internet para matar a saudade, bobinho.
Ela forçou um sorriso, mas não estava feliz. Não havia remédio para aquela distância.
—Não é o suficiente.
Thomas se virou, dando as costas a Rosa. Ele chorava, mas ela nunca viu lágrima alguma em seu rosto. Antes de soluçar, antes de deixar-se desabar em tristeza, Thomas tirou o papel de seu bolso e o jogou no chão, ainda amassado.
—Adeus, Rosa.
Com passos firmes, mas nada decididos, o garoto se afastou, deixando-a para trás, sozinha.
É claro que ela também chorou, mas não foi naquele momento. Naquele instante, Rosa sentiu raiva. Ela viu o seu melhor amigo, seu companheiro de anos, se afastar sem olhar nos seus olhos. Ela viu o garoto que tanto gostava se despedir sem nem mesmo beijar seu rosto. Ela o viu partir, e partiu também, sem que pudesse provar o gosto de seu beijo.
Somente mais tarde, quando Rosa já estava no avião, ela teve coragem de abrir o papel que Thomas deixara cair ao chão.
Ali, naquele garrancho que ela aprendera a amar durante os anos, estava o pedido que ele não teve coragem de fazer.
Fica do meu lado para sempre.
Só então ela chorou, e chorou pra valer. Chorou como criancinha, acolhida nos braços da mãe. Pensava em como Thomas estaria, em como ele ficaria lá, sozinho. Sem ela.
Chorou, chorou mais e mais, e quando se achou cansada de chorar, quando seus olhos já pareciam inchados demais, ela se levantou, limpou o rosto, borrando sua maquiagem, e respirou fundo.
—Fique calma, minha filha —disse Nádia, visivelmente aborrecida com a situação. —Há algo que eu possa fazer para te ajudar?
Rosa fechou a mão e apontou para sua mãe que, num primeiro momento, pensou naquilo como uma ameaça, um soco, mas só depois entendeu o que verdadeiramente significava.
—Par ou ímpar? —perguntou Rosa.
—Escolha você —sorriu a mãe, mas era um sorriso sem alegria.
—Par.
Ela sempre escolhia par.
—Ímpar.
—Se eu ganhar, terei minha vida de volta. Terei Thomas de volta.
A mãe não disse nada.
Jogaram.
Dois e cinco, respectivamente.
Rosa perdeu.
Naquele dia, Rosa não chorou mais. Choraria em vários outros dias, sim, mas não naquele.
De frente para o espelho do hotel que os acolheu, Rosa ergueu a mão direita.
—Da próxima vez que jogar, vou escolher ímpar —disse para si mesma. —E eu vou vencer, Thomas. Eu prometo.
Havia um papel em sua outra mão e, nele, havia escrito um desejo de dois jovens.

domingo, 25 de novembro de 2012

Conto - Passos na Neblina


PASSOS NA NEBLINA

           Uma brisa suave balançava calmamente a bandeira que simbolizava o estado de Nova Servias, item este que marcava o grande portão de entrada para a prefeitura da pequena cidadela de Ingrid, ao extremo sul da região. Uma cidade porteira e pacata, onde a maior movimentação eram os navios de carga que paravam todos os dias nos portos, e as ondas em noites tempestuosas. Só. Nada de aventuras, nada de adrenalina, nada de emoções, nada. Apenas isso.
            Felizmente, apenas isso bastava para grande parte dos moradores da cidade. Assim como o habitat, o povo de Ingrid era pacato, misterioso e quieto. Vizinhos mal conversavam, não havia muitas festas ou casas noturnas para se visitar, não havia muitos bares e baladas, nada muito grandioso. Ainda havia alguns pontos de encontro para os mais aventurados, mas geralmente estes eram usados como bocas para troca de drogas e outros supérfluos de uma vida desgarrada, ou simplesmente um local para encher a cara e cair na sarjeta, nada de anormal por entre aquele lugar.
            Mas, estranhamente, a rotina das pessoas mudou. Ingrid sempre teve seus tempos ruins: havia os dias em que o sol estalava no céu, em que se podia fritar ovos nas calçadas; havia os dias em que as chuvas inundavam ruas e casas, em que a água chegava a níveis inacreditáveis; havia dias em que a neve surpreendia a todos, e preenchia as ruas com seu tom de branco-nuvem, alegrando as crianças entediadas e arteiras.
            E, recentemente, havia a neblina.
            A neblina surgiu sem explicação. Tomou conta pouco a pouco de várias regiões da cidade, e se espalhava todos os dias. Alguns diziam que era um mau agouro, um presságio de algo que estava por vir ao local, mas a maioria encarou apenas como um sinal da rápida evolução do aquecimento global. O tempo está louco, diziam os mais calmos. O fim do mundo está chegando, era o que diziam os mais religiosos. A situação era estranha, isso era impossível negar, mas era logo aceitada pelos moradores de Ingrid. Em três semanas, a neblina já tinha tomado conta de grande parte da cidade, mas muitos já haviam se acostumado a conviver com ela.
            O que realmente assustava não era a neblina em si; junto dela, começaram as mortes. E mortes assustavam.
            Na primeira semana, parecia algo normal. As pessoas não se assustaram ao ler nos jornais uma notícia sobre a morte de uma jornalista que investigava os mistérios da neblina recente, encontrada fria e dependurada em um dos postes da região central. Um caso peculiar, admitiram, mas nenhum alarde foi feito. Em seguida, mais um corpo: um velho relojoeiro da zona sul da cidadela, encontrado aprisionado em ferrugens dentro de um carro, com marcas de cortes pelo corpo todo. As matérias eram dramatizadas ao máximo pela mídia, e o povo se assustou, mas só. Nenhum alarde.
Na segunda semana, mais quatro casos de assassinatos foram relatados, todos com modos estranhos: vítimas encontradas sob bueiros, presas a árvores com arames farpados, enforcadas com tripas suínas. Nesse momento, as pessoas da cidade começavam a acreditar no surgimento de um assassino em série, o que nunca acontecera em Ingrid. Alguns até ficaram felizes, pensando que isso poderia elevar a fama da cidade. Em vão.
Na terceira semana, sete mortes, todas estranhas como as anteriores. As autoridades ainda não haviam encontrado o culpado pelas mortes da primeira semana quando surgiram esses outros casos, e endoideceram. Os poucos lugares para se freqüentar nas noites frias que a neblina garantia eram fechados por policiais, assim como algumas lojas. Tudo virava um caos em Ingrid, um caos que aquele povo pacato nunca sonhou em ver.
Estranho. Muito estranho.
O caso chamou atenção das autoridades das cidades ao redor, e alguns deles enviaram homens para o auxílio no caso. Era o caso de David Jones, um detetive enviado da cidade vizinha de Laranes.
 David estava na sala do prefeito de Ingrid, um velho de baixa estatura chamado de Matheus Vaan. Matheus estava em sua cadeira giratória, atrás da escrivaninha repleta de papéis não organizados e sujos, onde um monitor antigo e de cores fracas tentava fazer o trabalho que o prefeito atrasava.
—E o que você pretende fazer sobre essa situação? —perguntou David. Era um homem sério, dedicado ao trabalho como nenhum outro. Fora mandado a dois dias e chegara nessa manhã. Arrumou sua estadia em um pequeno hotel e partiu para as investigações, começando as perguntas pelo grande e importante Matheus. Vira pessoalmente que ele não era tão grande e importante como um prefeito deveria ser.
—Não sei —respondeu o prefeito. Coçou os bigodes maltratados e a cabeça calva, e tirou um charuto importado de uma das gavetas da escrivaninha, onde David jurou ter visto uma arma de fogo. Acendeu o charuto e tragou. —A polícia de Ingrid já está investigando esses assassinatos.
—Disso eu sei. Mas. pelo que eu vi, a polícia de Ingrid não obteve nenhum avanço desde a primeira semana de investigações, não é?
—Infelizmente. Provavelmente trata-se de um caso de assassinatos em série. Não há problemas quanto a isso.
—Não há problemas? Tem gente inocente morrendo? —David se controlava. A alguns anos, já estaria alterado e partiria para cima do prefeito, mas não agora. O novo David tinha auto-controle, e isso era o que ele mais utilizava naquele momento.
—Temos tudo sobre controle. Assassinos em série querem fama. Uma hora ou outra ele irá aparecer, revelando sua identidade e seus planos macabros. Vai tentar mostrar à mídia um motivo grandioso pelas mortes, como uma seita satânica ou a salvação do mundo, ou sei lá o quê, e vai ser preso ou linchado. É sempre assim nas cidades grandes. Não vai ser diferente aqui.
David suspirou. Limpou o suor do rosto.
—Não vai fazer nada quanto a isso? —perguntou o detetive. Olhou ao redor para ver com o que poderia atingir a cabeça do prefeito e causar mais estragos: viu um taco de baseball, o monitor do computador e uma gaveta de metal semicerrada no armário de arquivos. Voltou sua atenção para Matheus, ignorando o pensamento.
—Não tenho muito o que fazer. Vou esperar avanços na investigação.
—Ótimo. Então eu estou autorizado a investigar esse caso da maneira que eu quiser? —Apoiou os braços na escrivaninha de Matheus e lançou-lhe um olhar intimidador.
—Vá com calma, detetive. —O prefeito deu uma tragada maior em seu charuto e soprou a fumaça na direção de David, que fechou os olhos e afastou a face da fumaça. —Temos todas essas mortes, e essa neblina estranha. Ingrid é uma cidade pequena. As coisas não são como em Laranes. Se você botar fogo numa bomba, ela VAI estourar, se é que entende o que eu digo.
—Pode ficar tranqüilo quanto a isso —David, sorrindo maliciosamente para o prefeito. —Não tenho o costume de andar com isqueiros. Não vou acender bomba nenhuma. Se é que entende o que eu digo.
E deixou a sala, sem se importar com a expressão de desentendimento na face de Matheus.
 Saindo da prefeitura, David caminhou um pouco pelas redondezas, perguntando coisas óbvias aos moradores, mas a maioria destes mal parecia se importar com os casos de assassinatos, ou fingiam isso. A grande preocupação deles era a tal neblina, que, David presenciou, se alastrava pelas ruas e avenidas da cidadela como o próprio oxigênio. Ainda era clara, o que possibilitava que as pessoas enxergassem com pouca dificuldade através dela, mas não era preciso ser um grande cientista para saber que essa situação ia piorar cada vez mais.
O detetive andou por entre as lojas e construções da cidade para coletar informações, mas não conseguiu nada de útil. Parou pouco depois das dezessete horas em uma lanchonete para tomar um copo de café e recomeçar as buscas.
Observou o balcão, onde havia três pessoas: a atendente, que seria bela se tivesse recebido um pouco mais de cuidado em sua infância; um policial com seus trajes, que parecia fazer questão de mostrar a arma que carregava na cintura, e polia o símbolo dourado das autoridades de Ingrid todos os dias, pois o objeto brilhava; e uma velha estranha, coberta por um xale violeta e um chapéu cumprido de mesma cor.
Sentou-se em um banco entre o policial e a velha e chamou a atendente.
—Por favor, um pingado bem quente —pediu com educação.
—Você não é daqui, certo? —perguntou ela enquanto preparava a bebida.
—Como sabe?
—A educação. Não é muito comum. —A moça sorriu para David e serviu o café.
—Sou de Laranes —disse o homem, provando a bebida. Adoçou um pouco mais. —Vim aqui por causa desses assassinatos misteriosos. Sou um detetive.
O policial soltou uma risada curta e abafada entre um gole de sua bebida clara. A velha olhou David com outros olhos. Sua expressão parecia de loucura misturada a esperança.
—Então você é um detetive? —perguntou ela, a voz soando como um guincho de um morcego. —Quem sabe sozinho não faz o trabalho que todos aqueles homens inúteis não conseguiram fazer!
O policial olhou com desprezo para a mulher, mas continuou a beber.
—Senhora Donuts! —exclamou a garçonete. —Você tem que aprender a abaixar o tom de voz em certos momentos!
—Ah, mas eu estou mentindo? —disse a velha. David bebia em silêncio. Esse tipo de pessoa são os que mais soltam informações, muitas vezes sem saber. Prestava atenção a todas as palavras da mulher. —A polícia daqui não fez nada quanto a esses casos! Nem mesmo descobriram nada sobre a primeira das mortes! Que inútil!
—Minha senhora —começou o policial, se intrometendo na conversa após um longo e calmo gole de sua bebida. —Você não deve falar sobre o que não sabe.
—Ah, então agora eu não sei? —A velha parecia exaltada. A garçonete temia o que essa situação poderia causar, mas voltou sua atenção para um outro homem de uma das mesas da lanchonete que pediu alguma coisa e saiu. —Eu não sei sobre o que está acontecendo, não é? Ninguém sabe! Nem eu, nem vocês, nem ninguém! Mas vocês deveriam investigar isso direito.
—Não temos nenhuma base ou prova até agora, senhora —disse o policial. Bebeu o último gole de seu copo. —Mas estamos tentando providenciar isso rapidamente.
—Sim, sim, eu percebo. Ignorando a neblina e investigando isso como se fosse um caso normal, não é? Sei... Vocês vão muito longe assim...
O policial riu devagar.
—Então esse não é um caso normal? —David. Após beber mais um gole de seu café, que já estava pela metade, sua experiência de detetive disse que deveria entrar na conversa. —O que quer dizer?
—Essas autoridades podem dizer o que quiserem! —exclamou a mulher, agora ainda mais exaltada. Não tirava os olhos do policial, que agora a ignorava. —Esses assassinatos não são normais! Eles surgiram depois dessa neblina, que por sinal também não é normal! E essa neblina maldita, essa neblina começou em algum lugar, por algum motivo! Era isso o que eles deveriam investigar, ao invés de procurar um assassino, um inocente em quem colocar a culpa quando a situação fugir de controle.
—A neblina? —David estava cada vez mais interessado. Poderia ser...
—Não dê ouvidos a esta velha —disse o policial. —Ela não sabe o que diz. Já está gagá e...
—É, talvez eu seja uma velha gagá mesmo, mas e se não? —A velha disse em tom desafiador. Nessa hora, todos do local já tinham os olhos voltados para ela, inclusive a garçonete, que limpava uma das mesas. —E se aquele homem que vocês prenderam estivesse falando a verdade?
O policial se levantou.
—E se ele realmente viu o que disse? —continuou ela. —E se aquela escola realmente foi o ponto de início da neblina? E se...
—Já chega —disse o policial. Pegou a velha pelo braço, e a mulher se contorceu e gritou, mas o homem era mais forte e a carregou para fora da lanchonete. David pôde ouvir o barulho da viatura se afastando pela rua.
—Ai, ai, eu sempre aviso ela, mas ela sempre acaba sendo levada desse jeito —disse a garçonete. Forçou um sorriso simpático para David. —Vá se acostumando. Ingrid está uma loucura esses tempos.
—Eu percebo —disse o detetive. Tomou mais um gole de café. —Do que ela estava falando? Digo, esse homem que ela citou, e essa escola...
—Ah, são rumores que se espalharam pela cidade quando isso tudo começou. Sabe como é, o povo precisa de alguma coisa para fofocar. Dessa vez foi um bêbado que disse ter visto alguma coisa se mover na neblina na noite de uma das mortes, algo não-humano e tudo mais... E depois ele veio falando que a escola da zona leste foi o início da neblina, e que era lá que eles deveriam investigar. Nada sério, óbvio. A polícia investigou o local várias e várias vezes, e não encontrou nada.
—E o homem?
—Foi levado para a área de saúde mental da cidade. Cá entre nós, ele realmente precisava, e muito.
—Que coisa. Estranho... Laranes parecia ter todas as informações sobre estes casos, mas não havia nada falando sobre estes tais rumores.
—Talvez as autoridades não tenham levado a sério. Eu não levaria.
Ou talvez tenham abafado estes comentários, pensou o detetive.
—Que escola é essa? —perguntou David, terminando o café.
—Uma escola colegial, a maior da cidade —respondeu a garçonete. —Santa Edwiges. Fica a algumas quadras daqui. —Ela olhou por sobre os ombros de David e viu um homem chamando por seus serviços. —Tenho que ir.
—Eu também. —David tirou da carteira o dinheiro do café e uma gorjeta adicional para a mulher. —Obrigado pelos serviços e desculpe qualquer coisa.
—Imagina —disse ela, sorrindo.
David deixou o local.
Partiu no mesmo instante para a escola colegial Santa Edwiges.
 Realmente, o local era próximo da lanchonete. Após caminhar por alguns minutos, David encontrou a placa que apontava a escola, e logo chegou à frente dos portões de entrada. Perguntou para alguém na rua a que horas os alunos da tarde eram dispensados: dezoito horas, respondeu a mulher. Olhou no relógio e viu o digital marcar 17:48. Esperaria.
Ao som do sinal, poucos minutos depois da chegada do detetive, vários alunos começaram a deixar a escola. David aproveitou a grande massa de estudantes que saía da escola para entrar. Caminhou pelo campo gramado da entrada, passando por um parque de diversões para crianças, e adentrou o local.
Era uma escola grande, mesmo para uma cidade pequena. Dois andares, várias salas, uma escadaria comprida, e salas em todos os cantos. Sob a escadaria que levava ao segundo andar, havia uma porta com a placa Diretoria e Secretaria. David bateu.
—Pois não? —perguntou uma mulher bem vestida e formosa, aparentando seus quarenta anos.
—Desculpe a intromissão sem aviso prévio —disse David. Mostrou o distintivo na carteira. —Sou o detetive David Jones. Estou na cidade para a investigação sobre esses assassinatos misteriosos e tudo mais.
—Ah, sim, entre —disse a mulher, abrindo a porta para que David passasse. Guardou o distintivo e entrou, encontrando uma sala confortável, apesar de pequena. Havia três mesas com documentos e computadores, cada uma ocupada por uma pessoa diferente: duas mulheres, pouco mais novas e atraentes que a senhora que abriu a porta para David, e um homem jovem, de seus vinte e poucos. Mais ao lado, encostadas nas paredes, havia quatro cadeiras, cada uma ocupada por um estudante colegial, dois homens e duas mulheres, todos com as faces entediadas e estressadas.
—Com licença —disse o detetive. —E você seria...
—Sou Jill Fernandes —respondeu a mulher. —Sou a diretora desta escola, responsável por todas estas pestes. —Sorriu enquanto apontava os quatro alunos ali presentes. —Casos perdidos esses. Atentados e arteiros.
Os alunos bufaram, mas mantiveram o silêncio. Apenas um dos garotos falou.
—Podemos ir embora agora? —perguntou o garoto de cabelos castanhos.
—Mas é claro que não, Raul —respondeu a diretora. —Não é a presença de um detetive que vai livrar vocês de alguns sermões.
O garoto suspirou.
—Se você quiser eu posso esperar lá fora —sugeriu David.
—Ah, se não for muito incômodo, é de minha preferência.
—Pode resolver com ele primeiro! —disse a garota ruiva.
—Nada disso, Alice. —Jill lançou um olhar de desconfiança sobre a garota. —Nenhum de vocês sai daqui hoje antes que eu descubra quem pichou aquelas paredes.
—Não foi nenhum de nós! —bradou o garoto de cabelos loiros.
A jovem de cabelos negros jogados sobre a face apenas suspirou.
—Alice, Raul, Alexander e Juliet —disse a diretora, como se apresentasse cada um deles a David. —Os principais suspeitos de um ato de vandalismo nas paredes da nossa escola. Se me permite, vou conversar com eles rapidinho e já falo com você, apesar de não ter idéia do que um detetive pode querer em nossa escola.
—Talvez ele pense que é um monstro que está por trás disso tudo —disse Raul. —A primeira opção foi você.
Jill lançou um olhar furioso para Raul. David deixou a sala no mesmo instante.
Saindo da diretoria, David caminhou pelos corredores vazios para inspecionar o local. Não era muito diferente de uma escola de Laranes, com exceção do tamanho. As salas eram quase da mesma maneira.
Um pouco mais à frente, pichado com uma tinta vermelha borrada, viu a parede à esquerda do banheiro masculino, onde havia escrito com letras enormes: Pedido Atendido. A caligrafia era péssima, malfeita e desalinhada, mas a leitura era fácil. David pensou o que a mensagem poderia dizer: talvez um desafio dos estudantes, ou uma declaração de amor peculiar. Mas isso não era importante.
Virou-se para inspecionar mais salas, e se deparou com o homem que a pouco estava na diretoria.
—A diretora está com problemas hoje —disse ele. —Aqueles alunos são realmente demônios! Não sei como ela agüenta. Ah, me desculpe. —O homem estendeu a mão para David, que retribuiu o ato. —Sou Rafael Schneider, um dos responsáveis pela organização dessa escola.
As outras duas mulheres vinham caminhando para perto dos dois.
—Essas são Márcia e Rosane —disse Rafael. —Elas trabalham junto comigo.
—Prazer —disse David, sorrindo. —Desculpe incomodar a todos.
—Imagine —disse Rosane, a mais velha, de cabelos curtos e negros. —Não dá pra ficar naquela sala quando Jill está xingando alguém, é trágico só de olhar. Parece que ela vai comer os olhos deles!
—E comeria se eles deixassem —brincou Rafael.
—Pare com isso, Rafael —disse Márcia. Jogou sua franja loira para trás. —Eu estou com um mau pressentimento.
—Ah, eu também —disse Rosane. —Acho que a minha menstruação está um pouco atrasada e...
—Não é disso que eu estou falando!
Rafael e David riram.
—Rosane, indelicada como sempre —riu Márcia. —Eu vou até o armazém comprar algumas coisas. Quer ir comigo?
—Ah, eu também preciso comprar algumas coisinhas... —disse a morena. —Melhor nem comentar o quê —sorriu ela. —Vamos logo então, daqui a pouco temos outro período de estudantes para agüentar.
—Ai, nem me fale...
Ambas deixaram a escola.
—Doidas —riu Rafael. —Só o que eu posso dizer. —Virou-se para David. —Mas, se me permite a dúvida, o que quer aqui?
—Investigar —respondeu o detetive. —Só isso. Algumas fontes me disseram que a neblina começou nessa área.
—E o que a neblina tem a ver com os assassinatos?
—Não sei. Mas sinto como se precisasse investigar a fonte da neblina para chegar à conclusão desse caso.
—Se você diz. Realmente, a neblina começou a se espalhar por essa região, mas não vejo no que isso vai te ajudar.
—Por enquanto, em nada. Eu só preciso de algumas respostas. Já faz mais de três semanas que essa neblina surgiu, não é?
—Exato.
—E ela começou próxima a essa escola, nessa região?
—Sim.
—Tem alguma opinião sobre isso?
—Assustador. E inútil. Nada que a doideira do aquecimento global não possa ter causado.
—Bem lembrado. Mas não é dessa opinião que eu falo. Eu digo, alguma opinião sobre o motivo dessa neblina surgir subitamente?
—Aquecimento global, como já disse. Não vejo outro motivo.
—Hmm... E os assassinatos começaram logo depois dessa neblina, não é?
—Tecnicamente. Uma grande coincidência, se me permite dizer.
—Talvez. Sabe algo sobre estas mortes?
—Bizarras. Perdi um conhecido um dia desses. Encontraram partes do seu corpo em vasos de planta de uma floricultura abandonada. Esse assassino é bem retardado, é o que eu acho.
—Eu soube. Meus pêsames.
A conversa seguia fria e ríspida. Assim como David perguntava profissionalmente, Rafael respondia sem dar brechas.
—Nada mais que isso —disse o secretário. —Para que tantas perguntas? Eu sou um suspeito?
—Não tem nenhum suspeito —respondeu David. Era horrível ter de admitir isso, mas era a mais pura verdade. Não havia nenhum suspeito sequer.
David sentiu um calafrio inoportuno. Alguma sensação estranha tomou conta de seu corpo. Olhou para as janelas e viu que a noite caía lá fora, e a neblina aumentava. Era possível vê-la em meio às luzes dos postes e o brilho da lua.
—Mais alguma coisa? —perguntou Rafael, notando que o detetive viajava olhando para fora da escola.
—Sempre anoitece tão rápido assim aqui? —perguntou o detetive.
Rafael riu.
—Geralmente, mas...
Um tremor. Inicialmente, pequeno, abalando apenas as pernas dos homens, mas logo o tremor aumentou. A construção toda tremia. David gritou:
—Se abaixe!
Rafael obedeceu, ainda atordoado pelo tremor repentino. A porta da diretoria se abriu rapidamente e os quatro alunos saíram, seguidos pela diretora, todos andando cambaleantes para fora da sala. Tudo tremia.
—Temos que sair daqui! —gritou Alice. —Isso aqui vai cair e...
Um pedaço do teto desmoronou, bloqueando a saída da escola. Outros pedaços caíram e bloquearam algumas portas de salas. Pedras caíram do teto e quase atingiram alguns dos alunos, que se aproximaram cautelosamente de David. Uma nuvem de poeira subia ao ar.
—Detetive —chamou Raul.
—Fiquem todos juntos —disse David, tentando reunir todas as pessoas. Olhou ao redor, e a visão que ainda tremia mostrou apenas uma das salas de aula sem carteiras. —Me sigam!
Todos obedeceram e correram para a sala de aula não utilizada. David sentou-se e se encostou em uma das paredes. Todos o imitaram. Alice derramava algumas lágrimas; Raul e Alexander estavam assustados; Rafael tentava acalmar Jill em vão, enquanto Juliet apenas se encostou, calma como David, e fechou os olhos.
O tremor parou.
—O que foi isso, MEU DEUS!? —Jill, parecendo desesperada.
—Calma —falou David. —É só um terremoto. —Tentava parecer calmo, mas era difícil naquela situação: não conhecia muito da geografia de Ingrid, mas sabia de coisas valiosas: nunca houvera terremotos naquele local.
Assim como nunca houvera neblina.
—Não tem terremotos por aqui! —Alice. —Que merda foi essa?!
—Não tinha neblina até um tempo atrás também —disse Raul. —Esse mundo está uma doideira!
—Aquecimento global também? —Alexander, olhos debochados fitando Rafael, que ficou quieto.
David se levantou. Caminhou até a porta da sala e olhou ao redor.
A poeira das pedras que caíram baixava lentamente, mas não havia sinal de diminuição da fumaça no ar. David investigou com os olhos e viu o por quê: por vários lugares, onde pouco da luz da lua entrava, entrava junto neblina, uma neblina cada vez mais densa e forte, que tomava conta pouco a pouco dos corredores da escola.
—Bosta de neblina —disse Raul, que já estava ao lado de David. O garoto deixou a sala, e Alexander o seguiu. Logo Alice saiu também.
—Fiquem todos juntos —disse o detetive.
—Você não é ninguém para mandar na gente! —Raul.
—Vocês o ouviram, fiquem todos juntos! —era Rafael, que aparecia na porta da sala, voz grave e imperativa. Viu a neblina que tomava os corredores lentamente e se surpreendeu, mas ignorou o fato. —Alice, Alex, Raul, fiquem aqui!
Alice e Alex pararam. Raul continuou a caminhar na direção oposta à porta, onde a neblina estava ainda mais densa. Logo metade de seu corpo estava coberto em névoa, mas o garoto não hesitava.
—Raul! —chamou David. —Isso pode ser perigoso, você não entende?!
—Perigoso? —Rafael, sem entender.
—Não discorde dele —disse Alice, enxugando as lágrimas.
—Relaxa —disse Raul. —Não tem do que ter medo. —Cada vez mais seu corpo desaparecia em meio à neblina. —Isso aqui não é nada mais que fumaça. —Só podia se ver sua cabeça e pouco de seu braço. —Só temos que vasculhar aqui e... —Desapareceu em meio à névoa.
—O que você está vendo? —perguntou o detetive.
—Nada demais. Muita neblina, isso sim. —Um barulho de uma pedra caindo. —Ainda tem pedras soltas! Viram? Aqui não tem nada demais. —Outro barulho, dessa vez maior. Em seguida, um estrondo.
—Raul? —chamou David. —Raul?!
Sem resposta.
—Merda. —Virou-se para Rafael, Alice e Alex. Todos tinham uma expressão de pavor, de medo. Alice chorava. —Vocês, voltem para a sala enquanto eu vou ver o que aconteceu com ele. —Ainda assustados, foi preciso que David repetisse a ordem para que os três a fizessem. Voltaram para a sala e sentaram-se junto da diretora, que ofegava em desespero, e de Juliet, que tentava acalmar Jill, em vão. —Esperem aqui!
David virou-se novamente para o corredor, que agora estava ainda mais tomado pela neblina, mais densa do que nunca. Colocou a mão direita para trás do corpo, onde sentiu a pistola calibre 38 que sempre carregava, e a segurou, mais por instinto do que pela situação. Com a outra mão, buscou uma micro-lanterna no bolso, e a usou para tentar enxergar alguma coisa na neblina. Caminhou.
Ao adentrar a névoa misteriosa, David sentiu uma sensação estranha, como se algo entrasse em seu corpo por todos os poros. Respirar era algo difícil em meio àquela fumaça, e logo o detetive ofegava. Andou poucos passos até pisar em algo escorregadio no chão. Uma inspeção melhor, com o auxílio da lanterna, relatou que suas suspeitas estavam corretas: sangue. Muito sangue.
O líquido ainda estava quente, e espalhado por grande parte do chão, sujo e borrado, como se algo fora arrastado pelo local. David, cauteloso com os passos, caminhou por mais algum tempo, mas logo se deparou com uma porta fechada e a parede, onde a tinta vermelha ainda dizia Pedido Atendido. Por sexto sentido, o detetive virou os olhos para a sala fechada, e pelo vidro viu uma cena nada admirável.
O quadrado era pequeno, e a neblina embaçava o vidro, mas, mesmo assim, David pôde ver o corpo de Raul. Havia sangue espalhado por toda sua roupa, e faltavam pedaços de sua face. O jovem estava dependurado no centro da sala, preso por algum tipo de corda metálica, ou algo do gênero. Balançava, e quando o fazia, arrastava os pés quebrados no chão. Os olhos ainda estavam abertos, esbugalhados de pavor, mas a expressão era fria e morta.
Recuou.
Conforme voltava para a sala, David ouviu passos. Não passos como os seus, cautelosos, mas passos pesados, estrondosos, de pés grandes e fortes. Deve ser um deles, pensou. Provavelmente era Rafael ou Alex. Pensou em xingar, advertir para que retornassem, mas alguma coisa o impediu.
Muita sorte.
Ainda que com dificuldade, David viu algo ser arrastado na neblina. Era uma espécie de corrente, um cordão metálico grosso e pesado, que fazia um barulho extremamente irritante ao passar. Junto dele, passos caminhavam, e David fez questão de apagar a lanterna e se encostar a uma parede para não ser notado. A arma saltou para as suas mãos, e as costas foram jogadas a uma parede; assim o detetive ficou, cauteloso, pronto para disparar se necessário, mas não foi preciso. O que quer que fosse aquilo, passou por ele sem percebê-lo, ou fingiu isso. Pela neblina, não pôde ver nada da pessoa, do ser, mas sabia que era grande. Viu apenas a corrente ser arrastada na direção da sala que acabara de inspecionar, a porta ser aberta com força, e fechada com a mesma intensidade.
Os pulmões de David se contraíram e uma dor terrível se seguiu durante sua respiração. Controlou-se e voltou, em passos ainda mais silenciosos.
Saindo da neblina, que agora se espalhava ainda mais pelos corredores, voltou à sala onde todos estavam. Guardou a arma.
—Temos um problema —disse ele ao entrar, assustando grande parte das pessoas. Rafael e Alex se levantaram, deixando Alice e Juliet a tomar conta de Jill. —Raul está morto —sussurrou o detetive, tomando cuidado para que as mulheres não escutassem. De nada adiantaria esconder isso, então repetiu, dessa vez mais alto. —Raul está morto. Vi o seu corpo em uma das salas, próxima à pichação.
Alice chorou. Alex socou o ar, inconformado, enquanto Rafael fitava David, inexpressivo. Jill ainda soluçava de medo. Juliet se levantou.
—Morto? —perguntou Rafael. —Mas como? O tremor já acabou, não é? Alguma pedra solta caiu sobre ele?
—Isso seria muito bem vindo nesse momento —suspirou David. —Ele não morreu por uma pedra. Raul foi assassinado.
—Como assim? —Alex. —Só tem a gente aqui dentro!
—Errado. Eu acabei de ver mais alguma pessoa na neblina, andando na direção da sala onde o corpo do seu amigo estava. —David pensou em falar algum ser, mas isso soaria muito estranho, então mediu suas palavras. —Carregava uma corrente. Temo que essa pessoa possa ser o responsável pelas demais mortes aqui na cidade, ou ter alguma ligação com isso.
—E o que vamos fazer? —Alice, ainda chorando. —Estamos presos, quase soterrados, e temos um assassino à solta! Vamos todos morrer!
—Temos que sair daqui! —disse Jill, enxugando as lágrimas com agressividade. Levantou-se. —Precisamos sair desse lugar!
—Relaxem —advertiu o detetive. Impossível. Nem mesmo ele estava relaxado nesse momento.
—Márcia e Rosane foram até o armazém e já retornariam —lembrou Rafael. —Quando elas virem o estado da escola, vão chamar a polícia, e eles virão nos salvar.
—Isso se o terremoto não atingiu elas também, não é? —Juliet.
—Poderia ser um pouco mais otimista, por favor?
—Otimismo... —Juliet soltou uma risada abafada.
—O que vamos fazer?! —Alice quase gritou.
—Não chamar atenção seria uma boa idéia —disse David. —Não tem por quê entrarmos em pânico.
—Não tem? —começou Alex. —Essa situação não é comum, isso é óbvio. A neblina está invadindo esse lugar como o fogo invade uma floresta! E só para piorar, temos um cadáver, um corpo, um estudante assassinado! E nem sabemos por quem!
Rafael apontou a porta da sala para David, que virou-se e, pelo quadrado de vidro, viu que a neblina estava ainda mais densa e espalhada.
—Será que vocês poderiam me escutar!? —Alex gritou. No mesmo instante, a porta foi derrubada e uma nuvem de névoa entrou no local, acabando com a visão de todos.
—Se escondam! —exclamou David, jogando-se ao chão e derrubando Rafael ao mesmo tempo. Rolou para uma das paredes e puxou a arma guardada, carregando-a.
A neblina invadiu a sala muito rápido, e logo era impossível enxergar muita coisa. Mesmo para David era difícil enxergar Rafael, que estava a dois passos dele. Sentiram a respiração ficar pesada, difícil, os pulmões a doer pelo ato. David ouviu soluços, prantos femininos. Jill ou Alice, provavelmente ambas. Então ouviu passos novamente. Passos, seguidos de perto por uma grossa corrente arrastada, e aquele barulho de metal cortar lentamente o piso. Viu quando duas pernas deformadas passaram ao seu lado, por pouco não o tocando: eram pernas humanas, ou ao menos lembravam-nas, mas tinham marcas de queimaduras e cicatrizes por toda sua superfície. Os pés eram mutantes, enormes, peludos e estrondosos. Aquilo caminhava sem a necessidade de ser discreto; seja o que for, não tinha medo de ser capturado; pelo contrário: queria capturar.David apenas observou enquanto a criatura caminhou pela sala, e desapareceu novamente na névoa. Rezou veloz para que o choro das mulheres desaparecesse, e milagrosamente não mais o ouviu. Via apenas pouco do corpo de Rafael, que estava inconformado pelo detetive não ter disparado.
Ouviram a corrente se arrastar pelo cômodo, derrubar algumas cadeiras, que caíram como meteoros no chão. O silêncio era cortado a cada segundo pelos passos absurdos do ser, e pelo metal a chocar-se com o chão.
Juliet estava parada em uma das paredes, as duas mãos a tapar a boca de Jill e Alice, que choravam em silêncio ao seu lado. Pouco mais a frente, Alex, deitado sobre algumas mesas, tremendo de medo, a cabeça encostada ao chão, os olhos fechados. Juliet tentava ver o que caminhava pela sala, mas a neblina não permitia, e sua mente fértil fazia deduções improváveis. Foi então que alguma coisa caiu próximo da diretora. A mulher respirou fundo e se virou vagarosamente na direção do que caíra, e seus olhos encontraram duas lacunas, onde a muito estavam os olhos de Raul. A cabeça do jovem estava caída no chão, banhada a sangue, olhos de órbitas negras a fitar Jill. A diretora mordeu a mão de Juliet, que a puxou rapidamente. Juliet gritou de dor, mas seu grito foi abafado pelo extremo berro de pavor solto por Jill.
No mesmo instante, Juliet empurrou o corpo de Alice para trás e se jogou sobre ela, debruçando-se sobre a garota e apertando sua boca com uma das mãos. Olhou o corte feito pelos dentes da diretora em sua mão, e os comentários de sua sala vieram à sua mente como um míssil (Ah, aquela mulher é um cão, e deve morder feito um!). Sentiu vontade de rir, mas risos não eram algo adequado para aquele momento.
Virou-se para a diretora, e não mais a viu. Os gritos pararam, e o único ruído agora era o de passos estrondosos, mais rápidos que anteriormente, e a porta a cair.
Seja o que quer que fosse aquilo, tinha deixado o local. David notou.
—Por que você não atirou? —Rafael, indignado, levantando-se rapidamente.
—Eu... —David pensaria em alguma coisa, mas alguém o cortou. Era Juliet.
—Aquilo levou Jill! —exclamou ela. —Aquela coisa... Ela pegou a diretora!
—Merda —David caminhou na direção da garota e viu Alice, e pouco distante Alex. Rafael o seguiu devagar. —Vocês estão bem?
—Tirando a minha mão —disse a garota, mostrando o ferimento.
David cortou um pedaço de sua camisa e deu a ela.
—Amarre. Pelo menos vai parar um pouco do sangramento. Depois você poderá tratar disso.
—Se sair viva daqui, claro.
—O que era aquilo?! —Alex, agora muito assustado. Levantou-se em um pulo e agarrou os braços do detetive. —Que porra era aquela?! Eu vi! Eu vi as pernas dele! Tinham muitos cortes e queimaduras e cicatrizes e... Sei lá! Era horrível! Parecia de outro mundo, aterrorizante, acho que...
—Fique calmo, garoto! —Rafael, empurrando Alex para trás. O secretário virou-se para David. —Ele levou a diretora. Agora, me responda, por que você não atirou?
—Eu preciso saber o que é isso antes de atirar na direção dele —David. —Cada bala aqui é contada. Não estamos jogando Resident Evil, e não temos um game shark presente. Sinto muito, mas as minhas balas não são infinitas, e nem podem ser desperdiçadas.
—Não seria um desperdício, ele estava do seu lado e...
—Tem outra saída aqui? —perguntou o detetive, ignorando os comentários de Rafael. —Exceto o portão de entrada, que está bloqueado pelas rochas, tem mais alguma saída?
A pergunta foi a todos, mas ninguém respondeu.
—Deve ter —Juliet. —Onde está aquela velha jararaca quando a gente precisa dela?
—Como pode ser tão fria assim? —Alice. Enxugou as lágrimas. —Rafael! Tem outra saída nessa escola?
—Precisamos subir —disse ele. —No segundo andar tem uma saída de emergência, para casos de incêndio. Podemos usá-la para sair e descer pelas escadas de emergência.
—Ótimo. —David empurrou Rafael para frente. —Você os guia. Eu vou atrás. Cobertura. —Engatilhou a arma.
Rafael abriu a porta da sala, e se deparou com um neblina que agora parecia uma parede branca.
—Está impossível de se enxergar —disse Alex.
—Segurem as roupas de quem estiver à frente —sugeriu o detetive. —Não se percam! Em hipótese alguma se separem!
—E Jill? —perguntou Rafael. —Não vamos tentar salvá-la?
—Tenho que salvar vocês todos. Depois que vi Raul, posso assegurar que, infelizmente, Jill já está morta.
Ninguém falou mais nada.
O grupo seguiu em forma de um trem e, guiados por Rafael, seguiram na direção da escadaria que levava ao segundo andar. Passaram em frente à diretoria, e Rafael lançou olhares à porta, mas seguiu caminho. Subiram as escadas com velocidade e viraram à esquerda.
Logo estavam em frente à saída de emergência: uma imensa porta vermelha e metálica, fechadas por trancas automáticas. Pareciam fáceis de quebrar se houvesse um pé de cabra ou algo do tipo.
—Como abrimos isso? —perguntou Alice.
—Ela abre quando o alarme é ativado —respondeu Rafael. —E o alarme só é ativado quando há fogo.
—Vamos ter que atear fogo à escola? —Juliet. Parecia esperançosa.
—Claro que não!
—Precisamos de alguma coisa para quebrar essas trancas —disse David. —Podemos encontrar algo aqui em cima?
—Tem o achados e perdidos na segunda sala à direita, e...
Passos. Subindo a escada. A grossa corrente batendo ao chão a cada degrau.
—Ele está subindo! —exclamou Alex.
—Rápido, se escondam! —disse David. —Eu vou até a sala dos achados e perdidos. Se encontrarem alguma coisa que possa abrir aquelas trancas, vão até ela e abram! Assim que tiverem uma chance, todos deverão fugir.
E todos se separaram. Rafael, Alex e Alice seguiram para a esquerda, e entraram em salas distintas. David viu Juliet esperar um pouco, mas logo a perdeu de vista graças à neblina.
O detetive seguiu à direita. Respirava com dificuldade graças à neblina, mas correu, tentando acalmar os passos e o coração. Ouvia ao longe o indivíduo se aproximar do segundo andar, com passos lentos e pesados. Sem nem perceber, passou rápido por uma porta de madeira onde estava escrito Achados e Perdidos. Seguiu adiante.
Virou a próxima direita e chegou a um corredor onde a neblina parecia mais pesada. David teve dificuldade para caminhar por ela, pois parecia realmente um muro, uma parede de fumaça, que o impedia de andar. Usando a força de suas pernas, caminhou vagaroso, e encontrou uma porta, a qual tentou abrir normalmente, mas estava trancada. Notou que havia sete trancas na porta, de cima a baixo. Era uma porta velha, suja, provavelmente de um depósito não usado a muito tempo. Tentou arrombar, mas apesar de velha, era uma porta resistente. Ao longe, ouviu os passos cada vez mais perto. Aquilo viera em sua direção.
Sem opção, pegou a pistola e atirou na fechadura principal. Chutou a porta em seguida e a abriu, entrando na sala e fechando a porta em seguida.
Não havia iluminação alguma naquela sala, e David pegou novamente sua micro-lanterna. Ao acendê-la, viu que estava em meio a muitos jornais antigos, grande parte colados às paredes, com reportagens variadas. Caminhou pela sala e viu velas antigas, gastas, e candelabros macabros. Havia algumas manchas de sangue pelas paredes e no chão, mas nada assustador, exceto por um pentagrama malfeito no centro da sala.
Fora da sala, David não ouvia mais passos.
Nem percebeu que a neblina não entrava naquele local.
Andou pelo local, inspecionando as coisas lá presentes: a maior parte eram apenas quinquilharias antigas, não utilizáveis; jornais e revistas velhas decoravam as paredes, e ervas apodrecidas entorpeciam o ar. O detetive aproximou a lanterna das paredes e leu algumas das reportagens:
Possessão, Invocação De Demônio e Culto Satânico – Casos marcantes de cultos ao diabo e seus devotos. O que o mundo pode esperar disso?Os segredos do pentagrama. Um símbolo pode ter um poder demoníaco?Caso de garota possessa em Baskervilles.O jovem que matou os pais em Leer Town, diz agora que estava em transe após ritual satânico. É improvável que alguém levante um carro sozinho e...Espírito conjurado em casa noturna causa pavor às pessoas, e risadas aos religiosos.David nunca gostou desses assuntos. Sempre teve curiosidade sobre isso, mas nunca sentiu vontade em procurar nada, nem pesquisar. Era agnóstico, e para ele pouca diferença fazia a existência de deus ou do demônio. Precisava apenas completar o seu serviço ali, e era o que faria.
Procurou por alguma coisa que pudesse arrebentar as trancas, mas não viu nada de útil. Encontrou uma bíblia queimada, pentagramas nas paredes, copos quebrados, compassos tortos, tabuleiros de madeira com letras cravadas em sua superfície, fotos de casos de exorcismo e possessão. Nada que quebrasse uma tranca, nem que chamasse a atenção do detetive.
Mas então uma coisa chamou a atenção de David. Sobre uma mesa velha, repleta de velas e papéis, David encontrou um livro enorme. De capa negra e manchada de sangue, com símbolos de ankhs e estrelas de seis pontas, o livro lembrava em muito à bíblia, com exceção do design assustador. David se aproximou do livro e o abriu:
Chaos Cultus – A Bíblia SatânicaA total responsabilidade por essa leitura é sua, e somente sua. Este livro vem com a vida, mas traz a morte. Leia por sua conta em risco.O detetive virou algumas páginas, mas muitos dos símbolos nas páginas eram desconhecidos, e havia uma escrita diferente em cada parte do objeto. David sentia o corpo ferver de emoção, de adrenalina, e de mil e uma sensações que ele não podia explicar. Virava as páginas, mesmo sem saber o que aqueles desenhos estranhos significavam, mesmo sem entender nada do que aquelas palavras desconhecidas queriam dizer. Alguma coisa o forçava a continuar a ler, ou tentar ler, e o fez.
—Chaos Cultus é uma obra interessante, não concorda? —perguntou uma voz feminina. David se virou e viu Juliet. O cabelo jogado em frente aos olhos, as roupas banhadas de sangue, os braços tremendo, o ferimento na mão jorrando.
—Oh meu deus! —exclamou o detetive. Largou o livro aberto e correu até a garota. —O que aconteceu com você?
—Eu descobri a verdade.
—Você está bem? Está tremendo, e o que é todo esse sangue? Não encontrou os outros? Nenhum deles conseguiu abrir a porta?
—A verdade é que todos vivemos em uma mentira —disse Juliet. Sua voz soava suave e calma, vagarosa, mas ao mesmo tempo confusa e louca. David correu os olhos pelo corpo da garota. Viu cortes espalhados por seus braços e pernas. Pedaços de suas roupas estavam cortados com marcas de facas, ou garras.
—Você não está falando coisa com coisa —disse o detetive. A mão pressionou o revólver. —O que aconteceu?
Juliet caminhou na direção do livro aberto sobre a mesa.
—Você tem fogo aí? —perguntou.
—Não tenho o costume de andar com isqueiros —disse o detetive. Sentia como se já tivesse dito isso no mesmo dia, mas não conseguia se lembrar onde e para quem.
—Que seja. —Juliet se virou para as velas apagadas e balançou a mão machucada, lançando sangue sobre a mesa, e as velas se acenderam. —Você quer saber o que aconteceu comigo? Ou quer saber o que aconteceu aqui?
David realmente estava preocupado com a garota. Ela não parecia bem. Mas a curiosidade falou mais alto.
—O que aconteceu aqui? —perguntou ele.
—Ah, suponho que um ritual macabro. Esse livro... —Juliet começou a mexer as páginas do Chaos Cultus. —Esse livro traz a verdade. A verdade que todos nós, humanos, nos recusamos a ver. A verdade absoluta. Chaos Cultus fala sobre demonologia. É a bíblia real, a história das verdadeiras divindades, do verdadeiro poder. Da verdade.
—O que você fez?! —David, alterado. Apontava a pistola para a estudante. —O que foi que vocês fizeram aqui?!
—Ninguém além de mim sabe sobre essa sala —disse a garota. —Além de mim e de você, agora. Eu apenas fiz um pedido. E esse pedido foi aceito. Você já devia saber disso.
A memória vaga de David mostrava uma parede, e uma mensagem em tinta vermelha: Pedido Atendido.
—E o que você pediu? —perguntou o detetive.
—Será que você poderia parar de apontar essa coisa para mim? —perguntou a garota. —Eu me sinto pressionada, se é que me entende.
—Eu gostaria que você respondesse logo o que eu perguntar. Se o meu dedo se sentir pressionado, não será bom para a sua cabeça.
Juliet riu.
—Que seja. —Mexeu novamente as páginas do livro. —Eu pedi algo simples. Algo fácil de ser atendido. Pedi paz.
—Paz?
—Sim. Apenas paz.
—O que quer dizer?
Juliet parou em uma das páginas do livro. Virou-se para David me sorriu.
—Ingrid estava um caos. Mortes, estupros, drogas, coisas que todos se recusavam a ver. As autoridades abafam todos os casos que podem. Esse povo não merece a vida que tem. Precisamos de paz.
—E esses assassinatos recentes? Isso é paz?—Você não entendeu. Acho que não estamos falando a mesma língua. —Juliet se virou para o livro. —Vou ler para você o que significa paz, tudo bem? —Leu. —Pazi. I pazi vien du tature di zuporit, quen mortis surnans en qwerit cono la vita dus quie no has desejian.
—Traduza.
—É fácil. Paz. A paz vem do estado de espírito, quando a morte vem e acaba com a vida dos que não a desejam. Sabe o que quer dizer? A paz só é alcançada, quando os que não a querem morrem. Não tem outro jeito.
—Nem tudo é tão fácil assim.
—Ah, é sim. Tudo é tão fácil. E tudo seria tão mais fácil se as pessoas aceitassem a verdade. Mas não. Algum infeliz inventou Deus. E agora, todos rezam para ele. Todos. Existem os que falam que não acreditam, e os que dizem que não faz diferença. —Juliet disse isso como se soubesse a opção de David. —Mas todos acreditam na história dele. Mentiras. Nosso mundo não passa de mentiras.
—E se a sua verdade for uma mentira? O que você acha que pode fazer?
—Ah, mas não é. A minha verdade não é uma mentira.
—Pode provar?
—Sim.
—Como?
—Deus é a verdade falsa. Você já viu Deus?
David negou. Juliet riu.
—A minha verdade é a verdade correta. A verdadeira verdade. Você pode vê-la.David riu. Aproximou-se dois passos, a arma a mirar a cabeça da garota.
—Você está louca.
—Todos estamos.
—Foi você que fez todos esses rituais masoquistas, não foi? —David apontou as paredes. —Foi você quem pesquisou todas essas baboseiras! Você é a responsável por isso tudo!
—Sim. Isso tudo é a verdade. Eu a trouxe para cá. Todos esses casos, abafados pela mídia como histórias paranormais desnecessárias, como loucuras... Todos esses casos mostram os que realmente sabiam sobre a verdade.
—Pare de falar sobre a verdade! Não existe uma verdade única! Cada pessoa é responsável por sua própria verdade, e que faça dela o que quiser! Enfie no rabo se desejar, não estou nem ligando! A minha verdade é apenas minha, e faço dela o que desejar.
Juliet riu.
—Por que está descontrolado?
—EU NÃO ESTOU DESCONTROLADO!
Silêncio.
—Detetive... A minha verdade trouxe a neblina, que a camufla. A minha verdade trouxe a morte, que traz a paz. O que a sua verdade trouxe?
—O que a minha verdade trouxe? —David riu. —O que a minha verdade trouxe? —Respirou fundo e atirou, atingindo a cabeça de Juliet, que explodiu em pedaços e jogou sangue para todos os lados. David riu, a face banhada pelo sangue da garota. —A minha verdade trouxe seis balas em uma roleta de um calibre 38. Foda-se a neblina e as mortes.
O detetive respirou. Ria ofegante, enxugava o sangue, e as lágrimas camufladas. Limpou a roupa com as mãos e foi até o livro, passando por cima do corpo da jovem. Fechou o livro e jogou a vela sobre ele, que começou a queimar e arder em chamas azuis. David recuou conforme o livro virava cinzas vagarosamente. Assistiu à cena como um filme.
—Game over —disse. Escutou então uma risada. E passos.
—Parabéns —disse a voz de Juliet. David olhou para seu corpo, que estava imóvel. Não sabia de onde aquela voz vinha. —Sua verdade é convincente, mas fraca. Agora, David... Está na hora de você ver a minha verdade. A verdade de todos.
O alarme de incêndio tocou. A porta de emergência deveria abrir sozinha agora. David deixou a sala, que queimava cada vez mais. A neblina dos corredores recuava cada vez mais, e ele viu então o sangue. Sangue espalhado por todos os cantos: Sangue no corpo de Alex, que estava no avesso, fincado em uma das paredes; sangue no corpo de Alice, que estava enforcado com seu próprio intestino delgado, de cabeça para baixo, presa ao teto do local; sangue no corpo de Rafael, que tinha a face amassada, os dentes próximos da testa, os braços quebrados em sete lugares diferentes, as pernas como um nó na cintura, o estômago à mostra pela recente lacuna em seu tronco. David ignorou o sangue, ignorou os corpos, ignorou tudo. Correu na direção da saída de emergência.
E, lá, viu a verdade.
A verdade tinha aproximadamente dois metros e meio de altura. Sem tanta neblina para atrapalhar a visão, era possível ver todo o corpo da imensa criatura: os braços e as pernas completamente tomados por queimaduras e cicatrizes; a pele em um tom claro de verde, as veias saltadas, os pelos tortos e desproporcionais. Vestia trapos surrados, cobrindo apenas o sexo e o peitoral. Dos dedos, ao invés de unhas, saíam correntes, e elas penetravam sua carne até os ombros, fazendo papel de sangue, e caíam pesadas ao chão, arrastadas conforme o movimento. Os pés eram cobertos por metal, mas havia pedaços de carne a mostra, dependurados nas canelas, fincados nas placas de ferro grosso. Na cabeça, um enorme capacete metálico cobria toda sua face, deixando apenas chifres negros à mostra, curvos, longos e assustadores. Sob o capacete, apenas os olhos vermelhos ficavam à mostra: olhos felinos, olhos de cobra, olhos de demônio.A verdade fitava David, que tremia. A arma disparou quatro vezes, e quatro furos novos surgiram no tronco da criatura, que começou a se mover. Ela caminhou na direção de David, que tentou correr, mas uma das correntes cravou-se em sua perna esquerda, derrubando-o. Era como se a corrente fosse viva, se agisse por conta própria. David, aprisionado, gritava, chorava, debatia-se, mas a verdade era forte, era única.
Virou-se para ela e aceitou sua morte.
—Essa, David, —começou a voz de Juliet —é a verdade. A minha verdade. A nossa verdade. A única verdade. A verdade verdadeira.E um grande riso macabro ecoou pelos corredores, enquanto o corpo de David era torturado sem piedade alguma.