Relato 002 – Irmãs
Schoneborn
Recorte da Matéria no
Jornal
O caso das irmãs Schoneborn
chega ao fim, mas nem de perto está solucionado.
Dias atrás, Katrina e
Selena Schoneborn (gêmeas, 17) desapareceram de sua residência sem que os pais
notassem. Num primeiro momento, a hipótese de um possível sequestro foi deixada
de lado, incitando a mídia a acreditar na fuga das filhas, cujas idades
apresentam o típico estado de rebeldia, ainda que os pais insistissem em
afirmar que não havia qualquer sinal de insatisfação quanto ao método de
criação e ao tratamento oferecido.
Agora, no entanto, a
polícia ganhou credibilidade nas palavras dos pais, encontrando o corpo das
duas irmãs atirado sobre túmulos do cemitério municipal de Wyrestown, Maine.
Não foi comentado com a imprensa sobre o estado dos corpos, e também foi
impossibilitada a aproximação para que fossem providenciadas fotos dos mesmos,
mas é dito que elas foram encontradas em estados deploráveis e aterradores.
O caso está longe de chegar
a uma solução pois, junto dos corpos das vítimas, foi encontrado um pequeno
livreto de bolso, no qual anotações feitas por Selena, uma das gêmeas, fizeram
com que os policiais se indagassem da veracidade daquele caso.
#1
Nós conseguimos tudo.
Os ingredientes, os preparativos,
o lugar escolhido.
Eu preparei uma carta de
despedida para mamãe, mas acabei optando por não deixá-la em casa. É melhor que
isso não seja um adeus. Eu posso vê-la outra vez quando tudo acabar. A vida
será melhor assim, eu acho.
#2
Katrina acha que eu deixei
a carta em casa. Tudo bem, eu menti, mas ela não precisa saber disso. Quando
descobrir, já vai ser tarde demais, e despedidas não serão mais necessárias.
Ele vai voltar, e vai nos agradecer, e nós seremos heroínas, para ele e para o
mundo. Só precisamos acertar os últimos detalhes e, ainda esta noite, vamos
partir.
#3
Nossa casa ficou pra trás.
As despedidas são sempre
tão tristonhas. Eu nunca entendo o sentimentalismo existente em tais atos. Na
realidade, pouco entendo do sentimentalismo e das falsas emoções carregadas por
nós na maioria dos atos. Um sorriso no desejo de boa sorte quando o que se tem
verdadeiramente é a inveja, tão medíocre quanto as lágrimas de quem se despede
desejando que a pessoa realmente se vá, para nunca mais voltar. Nunca vou
entender.
É por isso que preciso
dele. Nós precisamos dele.
Ele vai curar todas as
feridas.
#4
Escolhemos o lugar mais
apropriado para que tudo ocorresse.
Obviamente, optamos pela
escolha mais silenciosa, com menos interrupções e com o clima mais macabro que
pudéssemos encontrar, e este era o cemitério municipal. Ninguém o visitava
durante as madrugadas. Para ser sincera, ninguém em sã consciência visitaria um
cemitério qualquer na madrugada. Sabe como é, todos têm medo e tal. Eu não
tenho. Nunca tive. Os mortos não podem nos machucar.
Quem faz isso são os vivos.
#5
Eu optei por escrever tudo
isso para que, um dia, ficássemos famosas. As garotas que trouxeram de volta a
esperança. As irmãs que fecharam a caixa de Pandora. Qualquer coisa assim. Mas você
que está lendo nem deve saber o que está acontecendo, então eu vou explicar.
A nossa avó tinha uma
crença que muita gente julgava bizarra, mas todos eles não compreendiam o que
estava acontecendo. Nem mesmo a nossa mãe acreditava nisso. Mas nós encontramos
um livro que ela mesma escreveu, contando tudo sobre essas criaturas, esses
outros deuses, as divindades verdadeiras e esquecidas. Elas não foram
esquecidas intencionalmente: o homem o fez de propósito. Criando um falso Deus
sem nome, um Deus à sua própria imagem, o homem fez a igreja alienar e deixar
as divindades verdadeiras para trás, e elas então perderam as forças e
morreram.
Mas Deuses não morrem, e é
isso o que viemos provar.
Desde que encontramos esse
livro, vovó tem nos visitado em sonhos. Ela nos ensinou o ritual, nos ensinou o
que fazer.
Ela nos disse para trazer Yamhaak
de volta.
#6
Nós começamos os
preparativos.
Jogamos as coroas de flores
sobre dois túmulos, espalhando as essências e os incensos pelo chão. O
cemitério municipal não tem um guarda para vigiar as lápides (o que eu acho
totalmente bizarro, mas enfim), e isso facilita muito nosso trabalho. Com
gravetos, desenhamos na terra barrosa os símbolos que nos foram ensinados pelo
material do livro, enquanto proferíamos as orações em latim. Foi difícil
aprender os fonemas, mas eu acabei me destacando mais do que Katrina. Ela tem
ciúmes, eu sei. Mas é tudo para um bem maior.
Agora ela está recolhendo o
pó de estrela e jogando sobre as coroas.
Nós vamos coroar um novo
rei.
#7
É hora de fazer o ritual de
verdade.
Katrina já está sentada no
meio das duas coroas, coberta por essências e despida. Seu corpo iluminado pela
lua fica tão bonito. Ela está cantando em latim, e a minha parte agora é
somente deixar fumegar na sua direção as cores que tenho em mãos, do norte para
o sul, soprando quando o vento não ajuda.
#8
Ela falou, e não era latim.
Katrina falou comigo, mas a
voz não era a dela. Era masculina, grave e assustadora. Eu quis fugir, mas não
o fiz. Eu sabia que precisava ficar, que fazia parte do ritual.
Ela falou e falou, mas eu
não entendi.
Agora eu estou continuando.
Tirei minhas roupas também.
É hora de fazer a oferenda.
#9
Eu fui até Katrina, e
deveria tê-la abraçado, mas ela não permitiu. Resolvi fazer o sacrifício
sozinha, assassinando um cão e um gato que sequestramos nas casas vizinhas.
Eles sangraram em minhas mãos.
Deveria ter acontecido
algo, mas nada aconteceu.
Será que eu realmente
precisava estar abraçada a ela?
#10
Katrina não me responde.
Ela está ali, sentada, nua
e quieta, mas mexendo-se sem parar. Ela não me responde, só fica falando as
suas coisas estranhas e sem sentido.
Os corpos dos animais ainda
estão ali, ao seu lado. Nós fizemos alguma coisa errada?
#11
Eu não acredito no que
estou vendo: minha irmã está mastigando os corpos dos animais. O sangue deles
está nos seus lábios e dentes, misturado à terra e à sujeira do cemitério. Eu
quero vomitar. É isso mesmo o que deveria acontecer?
#12
Eu tive que correr.
Quando eu tentei me
aproximar de Katrina outra vez, ela grunhiu como um demônio. Não sei se essa é
a melhor palavra, mas foi a primeira coisa que pensei na hora que ouvi aquele
urro. Eu me assustei, me desesperei, corri sem pensar em mais nada. Ela me
seguia, a boca toda tomada pela morte dos animais, era horrível!
Acho que ela me perdeu de
vista, mas eu não consegui escapar do cemitério. Estou escondida num mausoléu.
Espero que ela volte logo ao normal.
#13
Eu posso vê-la.
Ela está lá fora, e eu
consigo ver pela fresta da porta. Faz frio, e eu não estou protegida, mas ela
não parece se incomodar. Caminha de um lado para o outro falando de maneira
desconexa, gritando coisas que eu não entendo. Eu não sei se ela está me
procurando, ou se está perdida.
Acho que eu vou até lá.
#14
Merda.
Eu estou com medo.
Eu saí do mausoléu, e ela
não me escutou. Saltou sobre mim como um monstro, gritou e me arranhou sem
hesitar. Eu estou machucada, sangrando por todo o corpo; ela é forte demais! Eu
corri de novo, me escondi agora atrás de um túmulo. Não aguento mais correr.
Sou eu, um papel, uma caneta e uma lanterna. Ela não é mais minha irmã. Ela não
é mais uma pessoa.
Eu acho que ela é Yamhaak.
#15
Ela me viu.
Eu não tenho mais fôlego ou
forças.
Estou escrevendo, e ela
está vindo aqui, está chegando perto.
Eu quero que saibam que nós
conseguimos. O ritual deu certo, eu acho.
Mas eu não sei se isso
realmente é uma coisa boa.
#16
Ela está aqui, parada na
minha frente.
Eu posso sentir a sua
respiração.
Eu posso sentir a sua fome.
Eu posso sentir a sua
raiva.
Eu acho que nós erramos com
o mundo, então gostaria de me desculpar.
Ela me parece fraca,
também. Talvez o seu corpo não suporte essa coisa. Talvez ela escape. Isso
seria ainda pior.
Eu sei que nós erramos.
Mas tudo o que posso fazer
é
Fim do Relato.
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