terça-feira, 28 de maio de 2013

Conto - Bailes Eternos

BAILES ETERNOS

(Baseado no ilustre conto de fadas 'As Doze Princesas Dançarinas')


Havia, n'outros tempos, um empresário cujas doze filhas carregavam um mistério sem igual.
Elas dormiam, todas, no mesmo quarto. Seis beliches nada modestas, todas talhadas na madeira mais cara da região. Ostentavam riquezas, ouro e joias, heranças de uma família milionária na região. Mas eram criadas assim, como princesas numa torre: o pai as beijava, uma a uma, e então as fechava no quarto, com suas seis beliches, para destrancá-las somente no dia seguinte.
E, todas as manhãs, seus pés estavam doloridos, como se dançassem a noite toda.
O velho empresário estranhava tal situação. Tentou observá-las, muitas vezes, mas a porta do quarto jamais era aberta. Escutava-as, durante a noite, mas não havia som algum além do silêncio da madrugada. Abalado por um mistério que jamais seria capaz de resolver, achou por bem contratar um investigador, especializado em desvendar as histórias mais bizarras, e ele disse que o caso era fácil de se concluir.
O detetive, logo na primeira noite, quando já conhecia parcialmente a casa do empresário após uma visita matinal, instalou uma pequena câmera no quarto das garotas. Não avisou o pai, também, pois aquele abuso de privacidade não lhe seria permitido, mesmo que em investigação. Deixou que a noite seguisse e, no dia seguinte, quando as garotas amanheceram com os pés doloridos, viu que, sob uma das beliches, havia um exótico alçapão.
Estranhou que o empresário nada tivesse comentado sobre tal portinhola. Seria possível que o proprietário da casa sequer cogitasse a hipótese de uma passagem secreta como aquela? Sem entrar em contato com o velho ou qualquer das garotas, o investigador invadiu o quarto, quando elas lá não estavam, e abriu o tal alçapão, dando de encontro a uma escadaria espiralada que parecia não ter fim. Desceu e desceu, por um tempo que lhe pareceu exaustivo, até encontrar-se num lugar que, em termos de realidade, seria impossível de se existir sob uma casa.
Era uma caverna de cristais. Tudo ao seu redor era azulado e cristalino, coberto de estalactites e estalagmites, como um morada gélida dos polos do mundo. No centro, um imenso lago congelado jazia, fumegando por tamanha frieza que exibia. Uma plataforma de cobre se postava sobre o lago, levando quaisquer pessoas ao centro do complexo aquoso, onde uma superfície esférica aguardaria todos os convidados.
O investigador caminhou até lá, e então ouviu uma música. Era uma valsa, coisa de épocas antigas, parte animada, parte melódica. Sentiu-se bem, respirando aquele ar frio e pesado, sentindo a baixa temperatura do local. Moveu-se, friccionando os braços para se esquentar. Dançou, sem perceber. A música o empurrava, vez ou outra arriscava um passo diferenciado. Quando deu por si, abria os braços numa dança simétrica, girando no lugar, bailando. Seu corpo e seu sangue esquentavam conforme a valsa lhe impregnava de sentimentalismo, e ele dançou, sem perceber, e a dança fez a música se agitar, e a música fez algo incrível acontecer.
Do lago congelado, criaturas saltaram, em voo, em palmas. Eram pássaros d’água, polvos espelhados, peixes de nadadeiras plumadas, muitos outros. Todos eles tinham cores e formas que o mundo seria incapaz de retratar, e dançavam junto da música, animados, colorindo todo aquele ambiente que, até então, era azul e frígido.
Impressionado, o detetive se esqueceu das horas, do nome e até mesmo do que fazia ali. Dançou, dançou cada vez mais, até que seus pés doeram, seu estômago roncou, suas pernas reclamaram, mas ele não parou. Continuou, junto da música, pelo que lhe pareceram anos, décadas, séculos.
No dia seguinte, quando as filhas do empresário desceram até o mundo secreto, além do alçapão, encontraram o corpo sem vida do investigador. Elas o jogaram no lago congelado, como um modo de eternizá-lo no local que tanto o maravilhou. Nunca contaram nada daquilo a seu pai, mas toda noite, durante a vida toda, as doze filhas desciam e dançavam junto da mágica do alçapão.

E o velho empresário esperou por sua resposta, mas ela não veio. Depois daquele dia, por mais estranho que fosse, nunca mais viu o investigador que contratara.

domingo, 26 de maio de 2013

Subir (n)a vida


Hoje eu subi uma pedra altíssima.
Nesta mesma pedra, subi muito antes, quando criança. Quando criança, não tinha a mesma força que tenho hoje, certamente. Também não tinha os mesmos medos que hoje tenho, sim, mas não falo sobre medo de altura. Metros e mais metros não me impediram de escalar e, lá do topo, ver uma paisagem digna de filme. Não é sobre isso que falo. Ainda que hoje eu seja mais forte e mais resistente, a escalada foi mais árdua. Como disse, não por medo. Há outras coisas relacionadas, há outras coisas pendentes.
Quando crianças, não temos medo. Não temos, também, a noção do que é grave e do que é simples. Uma queda é somente uma queda, e nunca dói antes de acontecer. Ah, aquilo nem parece tão alto, mas se mostra muito alto quando você já está lá em cima. Poxa, uma escada sem proteções, parece perigoso depois que você já a subiu. Quando crianças, tudo é bonito demais, e difícil de menos. Ao crescer, abandonamos essa oportunidade de ter medo sem temer. É, mais ou menos assim: sabemos que pode dar errado, mas e se der? Tento de novo, não é? Sujar, cair, ralar, sangrar; coisas que um banho resolve.
Subir quando criança é mais fácil. Temos somente o nosso peso, mais nada. Adultos, por sua vez, carregam muito mais. Eles deixam a ingenuidade e a inocência no primeiro degrau da escada, assim que colocam seus pés sobre ele. Então, ao subir, carregam também suas responsabilidades. Sobem cada lance de escadas levando consigo pensamentos pesados demais: o que farei no dia seguinte caso eu me machuque? O que eu direi ao meu chefe, aos meus assistentes, à minha esposa ou aos meus filhos, caso algo aconteça? Como vou trabalhar se me atrasar? Como serei visto se marcado por hematomas de um dia de aventuras? É um peso grande demais, um peso que as crianças não conhecem. Elas estão sempre sujas, sempre machucadas, sempre 'acontecidas'. Sempre felizes.
Lá no topo, há metros e mais metros do chão, eu via muito. Via uma paisagem linda, sim, mas via além. Estudando a natureza, eu a fotografava, e ela me era uma modelo exemplar. As pessoas fazem pose para a foto, mas a pose se desfaz após o clique dos botões. A natureza não. Ela está sempre linda. Está sempre posando, sempre perfeita. Toda foto vai mostrá-la como ela realmente é, sem a necessidade da edição da imagem, da mentira digital. Estudando a natureza, eu via um mundo que era o meu, mesmo sem parecer. Dali, vendo todo aquele verde e aquele azul, eu tentava compreender como é possível que, lá embaixo, tudo fosse tão cinza. Com tantas cores, com tanta beleza, com tanta vida, eu buscava nos confins de meu falso entendimento o conhecimento que me explicasse como o homem pode deixar uma magnificência assim de lado. Eu subi aquela pedra, e muitos não a subiriam. Mas, mesmo sem subi-la, quantas coisas podemos ver assim, tão belas, do nível do solo? Perfumes, fragrâncias, a areia da praia, o mar, o oceano, os peixes de um aquário, as flores de um jardim, as folhas de uma floresta. Tudo no mesmo andar, mas o andar que os homens se preocupam é outro, o térreo ou o terraço, o pé ou o cume de um edifício lotado de trabalho. Não que estejam errados, mas, muito menos, que estejam certos.
De onde eu me sentei, das pedras, das folhas, eu me senti uma criança. Não tinha o mesmo vigor, mas tinha as mesmas vontades. A vida reprime adultos que crescem como crianças, mas quem está errado nessa história? Trabalhamos, somos responsáveis, sem esquecer do sorriso no rosto, da educação, das brincadeiras e dos sonhos. Qual o erro nessa história? É tudo tão trivial, tão pacato, que mesmo uma criança pode lidar com essa rotina repetitiva e desajeitada. Mesmo uma criança pode arcar com toda a responsabilidade de um adulto.
Mas, e um adulto, pode arcar com o sorriso sincero de uma criança?
Nem sempre. Adultos se esquecem de tentar, de almejar. Alguns se esquecem de sonhar. E, sem sonhos, nada são, nada somos. Sem sonhos, adultos são somente isso: adultos. Vazios, como adultos (dizem as normas) têm de ser. Responsáveis, fechados, trabalhadores, reclusos. Adultos.
Podemos, todos nós, subir a vida, e assim subir na vida. Escalamos paredes altíssimas, com a vontade de um garoto, com a força de um homem. Com a disposição de uma criança, com a resistência de um adulto. E, lá no topo, podemos ver todas as cores, toda a vida. Que tenhamos medo das quedas, sim, na responsabilidade de quem vive uma vida de afazeres, mas que nunca esqueçamos de, a todo instante, irradiar-nos com a beleza de um sorriso puro e sincero, como somente os sorrisos da infância são.

sábado, 25 de maio de 2013

O Fim de uma Novela - Dias Tempestivos

Aquela sensação de olhar um arquivo assim, bem de cima, e ver todo o trabalho que teve pra escrever cada palavra daquelas, pra acertar cada ilustração, pra moldar cada trecho da história. Não sei bem se confio no que fiz em 'Dias Tempestivos' e, pra ser sincero, duvido mesmo que seja uma das minhas melhores histórias. Mas, certamente, é uma história que me marcou por diversos fatores, entre eles a variedade, a diversidade, a diferença do que tenho o costume de escrever. Isso sem falar nas situações, nas similaridades, naquele gostinho de vida real. É, foi um pouco difícil de terminar. Ficou maior que o planejado de início, mas também menor do que o esperado. No fim, ficou assim, em suas mais de 36 mil palavras, com cerca de 179 páginas (tamanho A5) e muitas imagens espalhadas pelo livro. Pra quem olha de cima, pode parecer somente isso: um amontoado de folhas. Mas, pra quem viveu cada momento dessa história, cada palavra, cada imagem, cada página, tudo tem seu significado.


Quatro Elementos

Dedicado à inspiração de uma madrugada de sábado.
Olhar para o céu, esteja ele estrelado ou não, pode ser gratificante: às vezes as nuvens têm respostas para perguntas que ainda não pensamos em fazer. Há, no céu, esteja ele turvo ou límpido, tantas estrelas quantos são os seus sonhos. É como compará-lo aos grãos de areia do deserto ou às gotas d'água do oceano: infindáveis como são, cada uma guarda consigo uma nova chance de mudar, de verter, de crescer e, acima de tudo, de ser feliz.



Quatro Elementos

Quatro estações, quatro momentos, quatro elementos.
Há quem seja como o vento, livre, solto. Disperso, num fluxo de ir e vir, revolto. Quem ama o vento tem de se acostumar a seu baile, tem de ser como ele, ventoso, viril. Tem de voar sem se preocupar, tem de ir e vir, tem de não desejar ficar. Tem de se perder, tem de se encontrar. É o vento quem vai e volta: vai com tuas tristezas, com teus problemas; volta com alegrias, com realezas. É o vento quem cuida da liberdade, o mesmo vento que aprisiona, que apaixona, que sopra firme e eterno.
Há quem seja como a água, tudo, nada. Maleável, volúvel, fácil de se dobrar, de se romper, de se despir, de se prender, de se unir. Desdobra as dificuldades como os caminhos de uma trilha sinuosa, nada é capaz de pará-la. Não se acomoda, não se doma, não obedece. É rebelde, é sem dono, ou é dona de si mesma. Atravessa quaisquer que sejam os obstáculos, mas se perde e, uma vez perdida, nada mais pode encontrá-la.
Há quem seja como a terra, firme, rígida. De determinação infalível, irrompível, insolúvel. Rocha sólida, como montanha, nenhum temor pode romper suas defesas. Nenhum pensamento, por sua vez, pode moldar seus costumes. É rígida, é firme, é determinada; é apenas aquilo, não mais. Não se altera, não se molda, não pode se redesenhar. É terra, é solo, é vida, mas vida que não deixa de ser a vida que sempre foi, que sempre será.
Há quem seja como o fogo, quente, forte. Agressivo em busca de seus sonhos, de suas vontades, de seus desejos. Aconchegante, mas perigoso. Esquenta quem precisa de seus carinhos, queima quem se aproxima demais de seu calor. Vence qualquer obstáculo com sua força de vontade, mas atravessa o campo sem hesitações e, assim, tudo queima. O fogo se alastra, incendeia, fere aqueles que não se deve ferir. Deixa atrás de si um rastro de destruição. Deixa para trás quaisquer que sejam os temores, mas também quaisquer que sejam os amigos, igualmente a cicatrizar.
Quatro estações, quatro momentos, quatro elementos.

Que sejamos, pois então, diferente de tudo e de todos, mas jamais tão iguais quanto o provável pode nos propor. Que sejamos mais que vento, mais que água, mais que terra, mais que fogo: que sejamos natureza. Que tenhamos a capacidade de soprar junto do vento, de ventar os medos para longe. Que possamos desviar-nos dos perigos como a água, evitar os receios, moldar, despir e vestir. Que façamos rígidas nossas decisões, como a terra, incapazes de nos alterar por qualquer que seja a dificuldade. Que sejamos fortes como o fogo, aconchegando, evitando o frio dos erros, afastando de nós os temores, abraçando o calor dos amores.

Conto - A Nova (Velha) Vida de um Rei

Sugestão de Beatriz Camilo, uma nova roupagem para A Nova Roupa do Imperador.

A Nova (Velha) Vida de um Rei

Na verdade, não há rei algum nessa história.
Há um homem como outro qualquer. Ele se veste bem, não por si, mas pelos outros. Se perfuma, não mais por sua esposa, mas pelo mundo que o circunda. Se cuida, não por seus filhos, mas pela sociedade que o cerca, que o cobra. Ele vive assim, por outros, por todos, com exceção de si mesmo.
E todos os dias ele sai de casa logo ao amanhecer. Não há mais beijos de despedidas, não há mais sinceros desejos de bom dia. Há cumprimentos sagazes, necessários, quase que obrigatórios. Gestos solenes, nada úteis, nada belos. A filha senta-se à mesa para tomar café da manhã, espera pelos pais, eles não vêm. A mãe, de vez em quando, a acompanha, mas quase sempre a mesa está sozinha. Resta a criança e a fome, pois o pai já se ausentou, atrasado para o trabalho. Volta tarde, se volta. Hora extra, sem aviso. Chega ao anoitecer, exausto. Banha-se, come rápido, deita para descansar. A vida é corrida, não há tempo a perder.
Quando o tempo existe, eles brigam.
A mulher escuta, por vezes calada, por vezes gritante. Ele se exalta. Desconta o que o trabalho não lhe permite expor. Ostenta a gravura doentia da rotina nos olhos cansados, chora por dentro, não conversa; grita. Gesticula demais, uma roupagem desleal para um pai de família. E a mãe, o que faz? Ela chora. Fala por ele, chora por ele, vive por ele. Se exalta, também, coitada. Não mais aguenta, não mais suporta. Aquela não é a vida que deseja. Não foi o motivo de ter dito sim, quando perguntada diante do altar. Não é o homem por quem se apaixonou, que a conquistou com sorrisos amigáveis, com conversar educadas e carinhos alinhados. Não mais, mas ela não percebe, e nem mesmo ele o faz. São um casal, dois que são apenas um, marido e mulher: dois estranhos. O tempo lhes sobra, e então discutem, se alteram, se perdem ao invés de se encontrar.
E a garota assiste, ingênua.
Em seus olhos, o medo. Será que eles não percebem o que fazem? O pai e a mãe, antes tão amáveis, agora tão distantes. Mesmo quando perto, longe. Mesmo quando juntos, perdidos. Mesmo quando amando, ódio. Fingem estar felizes, por ora. É o mais fácil, o mais confortável. Ela ainda é tão criança, tão inocente. Não pode passar por tudo isso. Eles têm que suportar, não é? Têm uma filha juntos, uma vida recente, infantil. Precisam estar ali, presentes. Precisam se amar, ou fingir. Precisam vestir uma roupa que os deixe disponíveis para o crescimento saudável de uma garota cuja mente jamais terá algo de sóbria.
E a garota assiste, ingênua, e se pergunta por que aquilo acontece? Eles são adultos, não são? É tão mais fácil tomar suas decisões. Para ela, tão pequena, tão miúda, a escolha seria simples. Como uma amizade que não mais agrada: ela se afasta. Mas eles não se afastam. Ficam juntos, sem se amar, sem desejarem por isso. Ficam juntos sem razão. E ela assiste aquele teatro de estupidez, como quem procura uma roupa invisível, que somente os inteligentes podem ver. A roupa inexiste: ela é apenas um disfarce para a estupidez sem tamanho que cerca os homens. Ali, diante de um casamento em ruínas, os pais estão despidos de amor, de carinho. Vestem máscaras que somente os sábios podem enxergar, e mentem para si mesmos, dizendo ver o que não mais existe. Casamento, união, felicidade.
Amor.

Mas a garota, coitada, ela enxerga tudo, e o pior: nada vê. Se os estúpidos são incapazes de vislumbrar as verdadeiras facetas da vida, ela prefere ser assim, sempre estúpida. Ao menos, enquanto tantos se fantasiam, mascarados, ela saberá que, por piores que sejam os cenários, serão eles sempre feitos de realidade.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O Oceano no Fim do Caminho, por Neil Gaiman


Postagem super rápida, apenas para divulgar uma notícia que me deixou bastante feliz! Hoje, quando circulava pela internet, deparei-me com ESTA POSTAGEM no site da Intrinseca, e muito me alegrei! Não é por menos: o Brasil será o único país que terá o novo livro de Neil Gaiman, O Oceano no Fim do Caminho, lançado no mesmo dia do lançamento americano! Sim, você não leu errado, a tradução brasileira estará à venda 18 de junho, daqui há pouco mais que 3 semanas, mesma data que o livro encontrará as prateleiras americanas! De acordo com o autor, seu novo romance trata sobre magia, o poder das histórias e como enfrentar a escuridão dentre de cada um de nós. É uma história sobre medo, amor, morte e famílias, ou seja, já podemos esperar mais uma leitura do nível de Deuses Americanos e Lugar Nenhum para apimentar nossas vidas repletas de fantasia.
E você, ansioso?

Conto - O Destemido Hawk Coração de Vento

Para uma grande amiga apaixonada por piratas...

O Destemido Hawk Coração de Vento

Na mesa de madeira surrada e maltrapilha, um único pergaminho, aberto. Sobre ele, pena e tinta e ideias. Nas mãos de um escrivão, as armas para uma guerra ilimitada.
O homem sentado àquele local escrevia:

Dentre tantas quantas são as lendas dos Nove Mares da Dinastia, uma muito me fascina: a famigerada história do Capitão Hawk, o Coração de Vento. Não o conhece? Ora, meu caro, se este é seu caso, tenho pena de ti. Disperso por este mundo, deixou de se inteirar de um dos maiores homens a navegar pelas temíveis ondas dos oceanos. Não serre os pulsos por isso, jovem (pois, presumo eu, se não conhece, jovem és, ou passou anos de uma vida sem aprendizado algum, infelizmente...), pois cá estou eu, hoje como narrador de uma lenda viva, para contar-lhe as proezas de Sir Hawk.
Havia, nos confins do arenoso solo do norte, uma miúdo vilarejo de singelos habitantes. Ali, ninguém de suma importância nascia ou nasceria em anos, pois o destino não reservara nada para um local que não podia alcançar. Mas o destino, por sua vez, brinca nas cordas da ironia e, numa das viagens mais assombrosas do já ranzinza Capitão Iggol, das Asas Negras, seu navio acabou por ceder. Após perder toda sua tripulação numa intensa batalha contra os monstros dos Nove Mares, Iggol mergulhou, assistindo à destruição de sua embarcação. Com os sonhos ruindo à sua frente e a vida lhe escapando por entre um ferimento que lhe mutilara uma das pernas, Iggol nadou, por mais de dois mil metros, até encontrar-se numa praia vaga e ventosa. Ali, nas proximidades da vila onde ninguém, pelo destino, seria importante, Iggol encontrou seu fim, mas não sem antes encontrar alguém para assisti-lo morrer: um garoto. Ainda jovem, sem sonhos, sem metas, sem nada. Distante dos pais, da vida familiar, das amizades. Seu nome? Krauser N. Hawk. Não me pergunte sobre o N., acredito que ninguém até hoje saiba de onde vem tal abreviação. E nunca o chame de Krauser, pois ele não admira seu nome. Hawk. Gostava de ser chamado assim. Sentia-se melhor, mais valente, aventureiro. Iggol chamou-o de Krauser, por todas as vezes, e por isso Hawk o odiou, mas não sem antes amá-lo. Ouviu, com o sangue dos lábios de Iggol jorrando em seus ouvidos, as últimas palavras do temido Capitão dos Nove Mares: “Meu sonho hoje desfalece, moleque. Siga-o, além das montanhas e das nuvens; siga-o nas águas. É nas águas que se escondem as maiores verdades, e também as maiores mentiras. Nas águas que os maiores homens se encontram.”
Hawk, possivelmente, não nascera para brilhar; não era estrela, muito menos sol.
Mas, agora, era mais que honra.
Crescera nas ruas, sem pais. Perdera-os para as dificuldades da vida, e somente uma criança poderia se salvar naquele vilarejo. O álcool acabara com a vivacidade da mãe, fizera do pai um escravo. Assim, Hawk tornou-se um homem feito aos onze anos. Tinha fome, roubava; tinha sede, bebia o que encontrasse, adoecia, recuperava-se. Tinha vida, e vivia, acima de qualquer coisa, por mais que, na maioria das vezes, tudo o que pudesse fazer fosse sobreviver.
Aos dezessete anos, depois de doze semestres de aprendizado nas ruas, de estudos escondidos nos becos com livros roubados das escolas cuja pobreza não lhe permitia frequentar, algo mudou naquele vilarejo. Não por dentro, porém; algo veio de longe. Piratas. Como o Capitão Iggol, porém perversos. Não buscavam sonhos, mas sim riquezas. Não buscavam metas, mas sim mortes. Queriam sangue, vidas retiradas nos ganchos metálicos pelo simples prazer de sentir-se um guerreiro. Hawk viu gente morrer. Ansiou pelo conflito, mas a valentia não estava ao seu lado naquela tarde vermelha. Não morria de amores por seus companheiros de cotidiano, mas eles ainda eram companheiros, ainda eram parte de sua vida. Queria poder dizer que sentiu ódio, que desejaria vingança, mas não. O que viu não foi o massacre, não o holocausto, não a morte de um povo que há muito já era esquecido.
O que viu foi uma oportunidade.
O navio atracado, ancorado, disponível. Sem guardas, sem proteções. Corsários ingênuos, tolos. Foi fácil de roubar. Hawk subiu a bordo, mal sabia como funcionava uma embarcação. Subiu as velas, mudou de curso, livrou-se dos pesos extras, navegou. Perdeu-se nos Nove Mares ela primeira vez, com medo dos ventos, das ondas, das feras, mas ainda excitado, exaltado, despreparado, mas ansioso. Deixava os cabelos sacudirem ao ar, sedosos. Aquela era sua vida. Não era uma estrela, tampouco um sol, mas aquele era o seu dia de brilhar.
Por vezes, Hawk se envolveu em perigos que a fantasia de um mundo terreno será para sempre incapaz de contar. Em suas viagens, aprendeu a arte da esgrima, da espada, de tantas quantas eram as lâminas. Em suas viagens, conheceu a mágica, a arte, a escrita, sua melhor arma. Em suas viagens, conheceu o mundo, um mundo sujo, emporcalhado, tão enorme quanto os mapas lhe diziam, tão minúsculo quanto o vilarejo onde nascera.
Em suas viagens, conhecera Saddie Harmônica.
Evitando o transtorno de uma história de romance exacerbado e drama demais, deixo tal parte do conto de Hawk para depois. Não quero perder minhas notas aventureiras com um amor que muitos sabem como surgiu. Se não sabe, sinto muito, mas terá de conter sua curiosidade por mais algum tempo. Mas confesso que é uma bela história, a ser contada em outra ocasião, enfim.
Pois bem, Hawk e Saddie eram unha e carne, inseparáveis, apaixonados, da maneira que os piratas se apaixonam, obviamente. Viajavam juntos, e ambos eram desbravadores. Hawk escrevia, Saddie cantava, e música e histórias se deleitavam no mesmo vento que carregava a embarcação pelos Nove Mares, dispersa em sonhos perdidos, aventuras predestinadas e confusões irremediáveis. Por mais de uma vez, Saddie e Hawk se envolveram em perigos cuja probabilidade mortífera era grande demais para apenas um casal. Sempre contornavam a situação. Giravam ao redor de um abismo de pavores, afrontavam quaisquer que fossem os medos. Hawk era um mestre nas lâminas; Saddie carregava uma harpa que, por si só, era um exército. Lutavam sempre diante de música, som que fascinava, por sua vez. Lutavam, melodiosos, com tempo de trocar bravatas, declarações e beijos. Sempre venciam.
Pergunta-me sobre a alcunha Coração de Vento? Quase me esqueço de tal conto.
Vamos ao que interessa, então.
Hawk e Saddie já navegavam juntos quando aconteceu. A embarcação não era das melhores, precisava de reparos, muitos deles urgentes. Quando atracaram no porto de uma cidadela ao sul, a âncora pesava mais que suas dignidades. Gastaram muito das economias para que um mecânico de navios pudesse ajudá-los na manutenção necessária. Seis dias, disse-lhes o velho, seis dias e o navio seria outro, como se novo. Por seis dias, teriam de suportar a terra, o mundo sem água, sem ondas.
No primeiro deles, foram aprisionados.
Não pela milícia, pela marinha ou qualquer força similar. Foram aprisionados por uma feiticeira. A bandeira presa ao mastro sempre chamava atenção de caçadores de recompensa, mas bruxas? Isso era novidade. A velha senhora, quando notara o crânio esquelético da águia e a harpa, sabia de quem se tratava. Eram famosos, valiosos... bom, quase isso. Enfim, ela sabia quem eles eram. Sabia que tinham o que ela precisava: coração de aventureiros. Muitos dos rituais pedem por corações humanos, ainda a palpitar, preferencialmente, mas alguns cobram mais do que isso: pedem por sangue de aventureiros. Um coração cujo frescor se comparasse a uma batalha nas ondas furiosas que se criam nas oscilações de um Kraken, o sangue de homens cujo maior dos medos é não ter o que temer. Ela precisava da adrenalina de desbravadores, e também do corpo jovial de uma bela mulher, e quem mais bela do que Saddie? Capturou-os, abusando das artimanhas que somente uma bruxa pode ter, e os deixou apodrecer em sua torre subterrânea. Para aqueles que se enojam da terra comum, devido ao costume com a maresia, o quê seria pior do que o subsolo? Claustrofóbicos, Saddie e Hawk juraram por todos os deuses que desacreditavam que aqueles seriam seus últimos dias. Quatro se passaram no silêncio, no escuro. Tinham fome, tinham sede, tinha vontade de respirar os Nove Mares outra vez.
Foi quando a velha surgiu.
Hawk a atacou, de imediato. Ela esperava por isso. Tinha, nas mãos, a curva metálica de um gancho pirata, roubado de um aventureiro anterior. Era velha, mas não tola; a mágica a mantinha sagaz, repleta de uma energia eficaz, catastrófica. Lutou como criança, quase venceu. Hawk não tinha suas lâminas, mas tinha sua agilidade, sua presteza e, acima de tudo, sua vontade de vencer. Sua vontade de ser livre.
Até que o gancho se cravou em seu peito, e ele cuspiu toda sua vontade junto de muito sangue.
Saddie gritou, apavorada. A feiticeira sorria, salivava de excitação.
Hawk morria.
Ou talvez não.
Com olhos ensandecidos, vagos e perdidos, Hawk debochou da bruxa. Puxou seu gancho para dentro do peito, aumentou o ferimento, sem medo. A velha se espantava. Ele, gargalhava.
“Você quer meu coração, velha maldita? Eu sinto muito. Meu coração eu dei a Saddie muito tempo atrás. Aqui, dentro do meu peito, só vai encontrar a liberdade do vento, e talvez um pouco de rum.”
E, para surpresa da bruxa, Hawk ventou. Não um vento comum, mas um vento mágico. Ela foi empurrada para trás com violência, e seu gancho perfurou a carne. Pelo ferimento que tardaria a cicatrizar, a bruxa viu o interior de Hawk e, juraria para todas as feiticeiras de má índole que encontrasse em seu caminho desde então, nada havia em seu peito além de vento.
Assim, em seis dias, Hawk e Saddie voltaram para a embarcação, cujo reparo estava, enfim, terminado. Puseram-se outra vez diante dos Nove Mares, e ali permaneceriam pelo resto de suas vidas, se houvesse um resto depois daqueles curativos no peito de Hawk, claro.

Alguém se aproximou sem que o escritor percebesse e, num movimento ríspido, retirou o pergaminho e leu.
―Saddie Harmônica? ―a mulher estranhou. ―De onde você tira essas coisas?
―É que ―
―E que história é essa de peito aberto? Você sabe que aquela bruxa nem te atingiu, não é?
Hawk respirou fundo.
―Eu só aumentei um pouco mais a história, Saddie!
Hawk ventou. Ah, cara, isso é muito viadinho, na boa. Você enganou aquela mulher, seu larápio.
―A gente sobrevive como pode ―riu Hawk, e se levantou. ―O que temos pro almoço de hoje?
―Se você não cozinhar, nada. É a sua vez, lembra? Ou vai escrever nas suas histórias que eu sou realmente a mulherzinha do casal? ―Jogou na direção de Hawk um pano que, algum dia, fora branco. ―A louça também é sua, hoje. Terça-feira, lembra? Felicidades com a sua pia.
―Felicidades com a minha esposa, isso sim!
Havia, ali, um amor sem igual, sem medidas. E sem respeito, também, mas enfim. Diante da embarcação recém-consertada, Hawk tinha uma vida de aventuras. Os Nove Mares ainda lhe mostrariam muitas coisas, mas nunca, nunca mesmo, uma mulher igual Saddie.
Acima de seus ouvidos, no convés, a harpa ressoou num ensaio.
Ele sorriu. Enrolou seu pergaminho, deixando a história para trás. Faria algumas cópias daquele conto e distribuiria ao mundo em garrafas lacradas. Precisava de mais fama, e talvez isso cuidasse de resolver. Deixou-se levar pela música harmoniosa, feliz. Mais um dia de vida, mais um dia de aventuras. Saddie era a sinfonia; Hawk, as palavras.

E, apenas por aquele dia, era também o cozinheiro.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A Vida é Só Uma


Desfaça, refaça
remonte, repasse
cuidado, não amasse!
não pise, não rasgue!
descuide, retrate
por deus, quanto alarde!
desenhe, apague
recrie, descarte
remonte, então pare
retome, divague!
reviva, reabra
ressurja, reaja!
desmonte, me passa!
desonre sua raça
repinte a moldura
repita, é tortura!
desprenda a gravura
repense, perdura
invente, reinvente
desista, mas tente!
mais uma, mais duas
mais três se preciso
percorra o infinito
salte sobre o abismo
deslize no mito
encontre, instinto!
serena, singela
cheia de prazer
a vida é só uma
pois viva, ela é tua
e já não há tempo
para se perder.

O Mundo no Vidro


O Mundo no Vidro

Guardei meu mundo num vidro
De lascas, todo partido
Sem proteger o meu mundo
Tão mudo, tão tudo
Que sequer me importei
Deixei-o assim reservado
Pra trás, fora abandonado
Escolha tola, largado
Tão nulo, tão puro
Tão falso que me espantou
E assim, guardado, girou
O tempo não mais passou
O relógio congelou
Parei, estaquei, firmei
De braços abertos
Abraço disperso
Perdido no tempo, no choro, no vento
Ponteiro ao relento
De um mundo parado
E ali congelado, de todo estacado
Vivência de tolos com tempo de sobra
Resíduos de guerra, da paz, só amostras
Sorriso de cores na escuridão
Que desfaleceu
No escuro, no breu
No meu coração
Sorriso de cores
De formas, de flores
Pertence àquela
Que em meio a um jardim de orquídeas risonhas
Destaca-se como a flor amarela
Que cresce, floresce, num mundo parado
Em terra distinta, em vidro guardado
No tempo parado, ali me postei
E tua beleza
E tua grandeza
E tua realeza
Eu só admirei
Guardei o meu mundo num vidro
E só agora percebo
Que o fiz somente por medo
Que o tempo passasse, veloz, sagaz
Que admirá-la não pudesse mais
Parei meu relógio, guardei o que tinha
E agora percebo
Que além de meus medos
Me importa somente o amor da rainha

Filme - Somos tão Jovens





Nunca fui um fã assíduo de Legião Urbana. Admiro a banda, sim, mas talvez meu fanatismo exacerbado pelos Engenheiros do Hawaii tenha diminuído e muito a paixão que eu tinha para dedicar às bandas nacionais. Entretanto, por esmero e curiosidade, assim que vi o trailer de Somos tão Jovens, senti-me imediatamente interessado na história. As crônicas de Renato Russo nunca me pareceram tão interessantes quanto da forma que me foram apresentadas naquela pequena exibição que, em seus 3 minutos de introdução, mostrou muito das músicas que marcaram a infância rebelde de todo mundo cuja idade se aproxima da minha (22 anos, até então). Sentei-me na sala de cinema sem saber muito bem o que esperar, e bem, na medida do possível, posso dizer que me surpreendi de maneira bastante positiva.


Em filmes nacionais, sempre espero encontrar duas coisas que me fazem criticar o filme após o término: cenas desnecessárias de sexo e piadas de gosto peculiar para com o próprio povo retratado no filme. Somos tão Jovens, por sua vez, é muito mais discreto do que o tradicionalismo do cinema nacional. A cena mais próxima de sexo é bastante tranquila, nada de abusiva, como vemos quando a cena é feita somente para ganhar ibope. De resto, como bem sabemos, encontramos assuntos polêmicos no filme, como homossexualidade, dúvidas e incertezas, juventude de época, drogas e álcool etc. A maneira como o roteiro cuida de tudo isso não pode ser considerada genial, mas é bastante agradável. Não temos a adaptação perfeita, pois realmente sou obrigado a acreditar que a vida de Renato Russo tenha sido muito mais aventureira do que o apresentado no filme, mas é suficiente para nos mostrar suas opções, escolhas e motivações. A dúvida entre a sexualidade, as amizades que avançam no contexto de sentimentos, tudo isso é caracterizado de maneira exemplar, certamente. Num roteiro curto (já que o filme não conta com o tempo desproporcional do cinema atual), conhecemos personalidades marcantes na vivência do tal professor de inglês Renato, entendendo assim como ele se relacionava e como se portava em devidos momentos.


Sentei-me diante da telona esperando por um filme que me mostraria até a morte de Renato Russo, mas a história encontra seu desfecho muito antes, diante do primeiro show da banda, em 1985. Essa não é uma característica de todo ruim. Talvez assim, comprimindo parte da história, o roteiro tenha evitado diversos empecilhos garantidos por ocasiões futuras da vida do cantor. A cena final, que mistura o encerramento do filme com gravações da apresentação real, no Rio de Janeiro, fascina, sem dúvida alguma, e mostra que o filme cumpriu tudo o que prometeu, ainda que tenha abusado de marketing para fazer um alarde desnecessário. Não é, de todo, o melhor filme nacional já visto na vida, mas tem seu chame, carregado pela essência de uma das bandas de maior sucesso que nosso país já conheceu. Ali, quem não tinha a oportunidade de saber sobre a vida de um ídolo nacional, encontrará uma história emocionante (dramatizada pelo roteiro, claro, mas nem por isso menos agradável aos espectadores), repleta de drama, complexidade, dificuldades e distúrbios de personalidade. O personagem jovial de Renato Russo se mostrou bastante interessante para retratar os problemas da adolescência, não só daquela época como até então. Afinal de contas, ainda existe a época da rebeldia, os traumas, as dificuldades, a situação caótica do cotidiano conturbado de pessoas que ainda não têm famílias para cuidar, mas se complicam da mesma forma.


Enfim, ao término dos créditos, é notável a admiração que se amplia diante da dramatização de um ícone da música brasileira. Continuo preferindo os Engenheiros, claro, mas Legião acabou de ganhar pontos entre meus favoritos, não pela história apresentada, mas sim pelos dramas da realidade que nos foram revelados. Não o filme mais perfeito, nem mesmo a história mais bonita, mas eu, como rascunho de escritor que sou, aprovo tal conceito por acreditar que toda história, seja simples ou fantasiosa, merece ser contada da maneira mais incrível que puder ser retratada.

Conto - Olhos de Lince


Olhos de Lince

Abrindo os olhos, viu um teto branco, ou acho que fosse, pois o branco também lhe era novidade. Havia doutores, cobertos com máscaras e com altos salários, escondidos em suas vestes polidas, anjos mecânicos, apurados na arte de consertar pessoas.
Mais uma vez, consertavam, e ele, o defeituoso, chorou e, pela primeira vez, viu suas próprias lágrimas correrem solta.
Paredes azuis, corredores tomados por portas, janelas que mostravam a luz do sol. Tudo era assim, tão simples, tão lindo. Uma perfeição que ele desconhecia. Dezesseis anos. Dezesseis anos para distinguir cores, para sair do completo breu. Tempo demais. Quantos relógios não rodopiaram em todos esses anos? Quantas vidas não foram perdidas em quase duas décadas? Dezesseis anos de luzes apagadas e, de repente, tudo tinha cor, tudo tinha forma. Novidade, sim, a mais bonita de todas elas: ele, agora, podia enxergar.
Nascera na cegueira, ingênuo. Esticava os braços para caminhar sem cair, aprimorava as narinas para distinguir as refeições. Seu sonho era ver o mundo. Não era infeliz, entretanto. Sorria, quase sempre. O espelho à sua frente, refletindo seu sorriso, mas ele não podia ver. Diziam que tinha um sorriso bonito, agradável de se admirar, um riso sincero e amoroso. Talvez realmente tivesse. Seria bonito, seria feio? Como saber quando o escuro é a única opção? Então, como era o que podia fazer, ele esperou, e o tempo seguiu veloz, como um trem. Cada dia terminado era um risco em sua vida, um dia em que não vira os passos que deu. Esperou e, quando foi chamado, choramingou, ainda sem ver as lágrimas.
Agora, emocionado, as via.
Eram lindas.
Cristalinas, refletidas em seu rosto claro, quase albino. Os olhos de um azul similar ao azul das paredes daquele banheiro de hospital, que não era de todo belo, mas para alguém que nunca enxergava, tudo era lindo. O azul marejado em seu semblante contrasteava ao ouro de seus fios, herança de sua mãe. Do pai, herdara as sardas, e também a altura. Esguio, magricela e alto, franzino. Louro, cabelos maiores do que o padrão dos homens de sua terra, olhos mais claros do que o tradicional. O azul não era de sua natureza; copiando a imagem da mãe, teria o castanho no olhar, não a cor dos rios. Porém, após o transplante de córneas, o tom oceânico rutilava em sua expressão, singelo. Olhos virgens, puritanos, garantidos por uma criança que jamais conhecera outra vida senão a rural. Olhos perfeitos, quase que mágicos, banhados pela inocência que somente a infância é capaz de preservar.
Olhos de lince.
Sentava-se, então, numa praça tomada pelo cinza dos homens e pelo verde da vida.
Respirava fundo, como sempre gostara de fazer, mas o prazer era sereno: agora, quase via o ar que acariciava suas narinas. Sentia-o tocá-lo numa carícia perfumada, ao tempo em que se admirava com as folhas verdes e amareladas pelo outono. Nada melhor que sentir a natureza, claro; mas vê-la? Sentindo seu toque com a capacidade de saber que ela está ali, de verdade, e não somente ilusão. Era perfeito. Acima de si, as nuvens, num azul que, de tão azul, era quase como o mar. Aquele era o céu, e ele era uma moldura para um quadro plumado e ventoso, de nuvens claríssimas, na forma do algodão, desenhadas de forma precisa, uma a uma, pelo mais perfeccionista dos pintores. Tão belas quanto as folhas, em suas curvas úmidas; eram simétricas, incontáveis em cada árvore, em cada galho. E os galhos, como eram estranhos e curiosos! Vez ou outra pareciam garras de monstros, ao menos como o garoto as imaginava, mas saíam das árvores, dos troncos, dos caules, do marrom da natureza que, mesmo cercada por imperfeição, era de todo perfeita.
Passou horas ali, e tudo era novidade. O mundo, a vida, a natureza.
Também, as pessoas.
Homens e mulheres, velhos e crianças, todas as idades circulavam por aquele local. Casais de mãos unidas, amando, amados; famílias a correr atrás de seus filhos, sorrisos de comercial de margarina estampados em seus rostos, dentes amarelos, algumas vezes claros, brilhosos; amigos sentados, por tempo indeterminado a jogar conversa fora, gesticulando, movendo as mãos, os olhos, o corpo todo, numa dança de significados que, antes da visão, o garoto sequer imaginava. Aquela vida era maravilhosa, e por tanto tempo se escondeu atrás da cortina obscura da cegueira, tanto tempo que, agora, o garoto se surpreendia com a imensidão de um mundo minúsculo. De início, gastou horas na admiração das pessoas. Elas eram fascinantes, quase sempre lindas, quase sempre perfeitas.
Mas a visão das pessoas mostrava muito mais.
Elas nem sempre sorriam. Sentado naquele lugar, como estranho observador, curioso e detalhista, o garoto viu demais. Casais largavam o toque das mãos, aumentavam suas vozes, choravam ao se afastar; crianças se machucavam, e as piores feridas ainda eram criadas no psicológico por pais impacientes, jovens demais, irresponsáveis; idosos prosseguiam o caminhar da vida com dificuldade, indispostos a manter-se na calmaria de seus lares, e na oscilação de passos vagarosos, não recebiam ajuda, não recebiam sequer olhares. Uma senhora derrubou seus pertences, um garoto os encontrou, guardou-os para si, desonesto; uma criança se machucou, a mãe, soteira e adolescente, sequer notou, e quem caminhara ao seu redor não se importou em avisá-la, deixando a garotinha chorar sozinha, a ferida coberta pela areia dos brinquedos, a dignidade perdida nas escolhas errôneas de sua genitora; um cachorro maltratado implorava por um mísero pedaço de pão, súplica rejeitada por uma criança de pouca idade, mas muita maldade, que, com os pés calçados, afastou o animal de forma impiedosa.
E tudo aquilo era visível, palpável, real.
O garoto lacrimejou. Os olhos ainda estavam sensíveis, sim, mas o choro era outro. Não pós-traumático, não sem razão. Chorava pelo mundo. A ele, cujo escuro se tornara tão familiar, as cores eram lindas e, por si só, motivavam uma vida de certezas, um paraíso brilhoso e aconchegante, cujo verde das folhas lustrava os olhos, o ouro do sol irradiava a mente, o azul do céu abraçava o coração. Com seus olhos de lince, fossem mágicos ou não, ele via a vida de outra maneira, e aprendeu, da pior das formas, que talvez fosse o único a vê-la de tal forma. Para os demais, mesmo entre tantas cores, tudo era cinzento. Os outros, mesmo diante do arco-íris, viam sete listras monocromáticas, sem cores, sem alegrias.
Com os olhos azuis marejados, o jovem se levantou e partiu, deixando para trás a praça e as pessoas. Agradecia, em seus confins, pelos olhos de lince que lhe foram garantidos.
Não fossem eles, talvez o tempo congelasse e ele, como todas as demais pessoas, visse o paraíso que era o mundo como uma terra tomada por preto e branco.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Só lhe Resta Mudar


"A chuva é uma reflexão.Ela te dá um banho natural, te limpa a alma e a mente, te faz refletir em tudo o que você já fez e, às vezes, você percebe que algumas coisas deveriam ter sido feitas, mas não foram, e pode parecer tarde demais. Então você pensa se é realmente tarde e vê que pode não ser, pode ser cedo. O tempo engana, a vida segue, o mundo gira.A chuva molha.E quando você vê, quando encontra suas respostas, vê que, muitas vezes, vale a pena abrir os braços e deixar a chuva cair."


De certo, quando nos deparamos com altos muros, é a Senhora Vida ousando nos ensinar a saltá-los.
Trágica, porém, é a incerteza. Se muros altos são, pois bem, escalá-los é a única opção; se há portas, que sejam abertas, que janelas se escancarem, que paredes se derrubem. A incerteza, por sua vez, nos aprisiona. É o muro alto ou baixo? Há portas ou janelas? Há receio ou valentia?
Sem a trilha certa a ser seguida, trilha alguma há de se mostrar.
Trágica, porém, é a incerteza. Ela aprisiona, acorrenta. Ela te prende frente ao espelho, ao teu reflexo, teu imperfeito e doentio reflexo, mostra tuas espinhas, teus defeitos, teus problemas e, assim, mostra teus medos. Ali, no espelho, verás teus erros, e eles castigar-te-ão como chagas. Vergastando teu corpo como uma tortura de guerra, teus erros lá estarão, estampados, retornando como espíritos que abandonam suas tumbas, como monstros nascidos dos maiores temores dos homens. Teus erros serão teus, somente teus, e terás de afrontá-los sozinho.
Verás, por vezes, que tudo poderia ser diferente. A vida, as escolhas, os caminhos. Uma palavra, um obrigado, um desviar, uma simples respiração mudaria um dia, um simples dia mudaria o destino. Verás, por vezes, que o mundo poderia ser outro, se outro fosse você, no momento em que não o era. Se quando foi o que foi, outro fosse, nada seria como hoje é. Cada erros custou-te tanto  quanto você não tinha para pagar, mas, no momento de errar, nada lhe foi cobrado. Hoje, a dívida é maior do que tua mente, maior do que tua alma. Trabalho algum poderá pagá-la. Remédio algum fará esquecê-la. Se elas forem, voltarão, logo, para recordá-lo do que fez, do que foi, do que hoje é por isso.
Entenderás, acredito, que o mundo joga contra você, e ninguém vence o mundo. Nascemos como perdedores, como derrotados, fracassados e desleixados. Entenderás tudo isso em teus erros, os erros que o espelho jogará em tua face, os erros que a vida lhe fará degustar.
E então, o que lhe resta?
Mude.
Não se mude, pois quem se altera, se perde. Mude seu mundo. Mude sua vida, seus dias, sua mente. Tudo é maleável, se adapta ao que pensas. Mude tudo, mas não perca nada. Tire tudo do lugar, volte-os quando a paisagem for outra. É tua chance de se reerguer, de se recriar. É tua oportunidade de ser outro você, sem deixar de ser você mesmo. A essência é tua, sempre será, uma essência que prova tua existência, tua vivência, tuas crenças.
Então, oras, mude!
Redesenhe, reformule, reinvente!
Refaça, recrie...
Reaja.
Ressurja das cinzas, como pássaro.
Reerga-se das tumbas, como eterno.
Retrate-se na vitória, como herói.
Assim, quando a incerteza te aprisionar diante do espelho, sorria! Quando o espelho lhe mostrar teus erros, cante acertos! Quando o medo lhe disser pra desistir, reviva! E, quando pensar que tudo foi em vão, feche os olhos, não se renda...
Mude, sem se perder, pra se encontrar.

Conto - Uma História pra Contar


Uma História pra Contar

Ali, sentado, esperava para ouvir uma história, como sempre esperou.
Mas, sabia: naquele dia, como em todos os demais, nenhuma história seria contada. Não havia um contador. Não havia um ancião pra lhe guiar, pra lhe deixar admirado com tamanha sabedoria.
Estava sozinho.
Mirel se sentava numa pedra musgada, tomado pelo frio noturno, pelo banho de estrelas e por um baque de memórias errôneas. Nos vislumbres em sua mente, ele sorria. Não Mirel, pois Mirel não mais tinha motivos para sorrir. Quem sorria era Jotur, O Sóbrio, que de sóbrio pouco tinha. Temido como insano, visto como depravado, afastado de uma sociedade que jamais foi capaz de enxergar além de seus olhos embriagados pela verdade que a mágica lhe mostrara. Ao seu lado, Mirel foi feliz, como um filho seria feliz ao lado de um pai presente, da família que o jovem druida jamais chegou a conhecer.
Agora, estava sozinho.
Sentou-se sob o manto de estrelas e esperou que alguém lhe contasse sobre os cavalos do vento. Ouviria, também, sobre dragões de aço, sobre celestes e abissais, sobre as infindáveis guerras que as regiões mantinham em segredo. Escutaria sorridente sobre as fadas dos Montes Alvos, ou mesmo sobre labradores plumados e felinos uivantes, mas ouvia somente o silêncio. Noite após noite, até então, ouvira a voz de Jotur, O Sóbrio, e aprendera, com ele, tudo o que sabia sobre o mundo além dos limites da floresta que jamais deixara. Agora, restava somente o silêncio. Nada de Jotur, nada de histórias.
No silêncio frígido da noite, ouviu sua própria canção emudecida, e ela cantava sobre a fatalidade.
Ainda na floresta, pois Mirel não tinha história alguma vivenciada por depois das árvores. Aquela era sua casa, seu lar, a morada de suas lembranças, de sua criação entre lobos e macacos e Jotur. Desde seu primeiro recorde, o velho estava lá, de olhos atentos, com o cajado enraizado que privava um moleque inocente dos erros que floresta alguma perdoaria. Crescera na paz da cadeia alimentar, carnívoros atrás da carne dos mais fracos, herbívoros saciando-se com o verde que os circundava, frutívoros se deleitando no sulco da diversidade colorida que ali nascia. Ele, por sua vez, era um aprendiz. A coordenação motora ainda o impedia de acelerar quando ouviu do velho seu primeiro ensinamento:
—Para aqueles que crescem entre árvores, nada há o que buscar além delas —disse O Sóbrio. —Em castelos e casarões, nada lhe ensinarão, garoto. —Fungou em sua pele, pensativo. —Cheiras como mel, e gosto de rimas. Mirel. Serás este teu nome, a partir de então.
As folhas tinham significado, cada árvore tinha um nome. A floresta era muito mais que simplesmente verde jogado às traças. Era um lar muito mais agradável do que muitas das feras acreditavam. Para Mirel, era o único lar, a única escolha. Escalou árvores, aprendeu quais frutos eram comestíveis, quais eram venenosos. Aprendeu o que beber, o que usar como arma. Aprendeu a compreender a linguagem dos homens, mas também a dos animais, principalmente esta. Uivar, miar, latir, rugir, tantas outras formas de comunicar-se que, de acordo com Jotur, muito mais importante o eram. Palavras formulavam filosofias; sons, por sua vez, eram a vida propriamente dita.
Gostava da palavra paz, pois ela o cercava como os córregos. Sentado entre arbustos, dormia, despreocupado com as feras que por ele buscariam se indefeso. A floresta o protegia. Se ameaçado, despertava, buscava as armas, matava pra poder comer, pedindo perdão aos deuses pela vida que tirara. De resto, dormia e sonhava, tomado por tranquilidade, pelo vento da natureza, pela carícia que os homens dos vales de concreto desconheciam.
Todas as noites, Jotur contava uma de suas histórias.
—Os homens são maus —disse ele, alguma vez. —Além de seus interesses, nada existe. Ganância os move, ambição os impregna, o cheiro fétido e carmesim de um sangue que nada vale é como uma névoa híbrida de receio e violência. Dentro de armaduras viscosas e polidas, são heróis; fora delas, moleques chorosos e incrédulos. Armados, das lâminas à pólvora, são cavaleiros, mas portando apenas palavras, são pouco mais que animais falantes.
Mirel aprendia que a humanidade não era exemplar. Os animais matavam pra sobreviver. Homens matavam sem necessidade. Por inveja, por desejos, por pecados. Eram imperfeitos. Mirel também o era, mas redimir-se-ia caso tornasse-se um homem ali, entre os perfeitos seres da selva, e assim o fez.
A contagem dos anos se perdeu, seus cabelos cresceram à altura dos ombros, sua barba, raramente ajeitada, mostrava-o envelhecido. As vestimentas eram naturais, pregas de madeira em tecidos de plantas e véus criados pelo encantamento natural de Jotur, o qual Mirel buscava incessantemente aprender. Acima da cabeça, a pele de um lobo, suas presas lhe cobrindo as tranças como um elmo de pelugem. Cheirava como a floresta e, de acordo com Jotur, era parte dela.
Por vezes, perguntava ao velho o motivo de seu exílio, e a resposta era sempre a mesma:
—Diferente dos demais, sou consciente. Saibas que a diversidade não é respeitada por fronteiras cujo verde não alcança, jovem Mirel. Por trás das amuradas de uma fortaleza, soldados matam por pedaços de carne, assassinam pedintes e bardos de música tola. Eu não era um deles. Um dia, me foi cobrado a integração, a união aos costumes que tanto desprezo. Neste dia, exaltei-me, e o erro me custou a liberdade nas terras que hoje não me fazem falta.
Mirel ensaiava todos os dias, mas nunca criava coragem para perguntar a Jotur sobre seu erro. Sentava-se entre as árvores, pensava, escrevia cenários em sua mente, tudo em vão. No silêncio da floresta, na temperatura amena de sob as árvores densas, restava o calor da dúvida do jovem druida.
Então, chamas.
Parcialmente, o mundo queimava. Mirel despertou com seu lar tomado por inferno. Acelerou, salvou os animais que lhe cabia, protegeu seus pertences, não por materialismo, mas por talvez precisar deles para proteger o que tinha de mais valioso. Procurou por Jotur, seguindo seu cheiro, seus rastros, e a imagem que seus olhos encontraram fez com que seu coração estilhaçasse.
O Sóbrio, tão sábio, tão valente, enforcado numa das mais altas árvores de sua própria morada, incendiando na fogueira dos falsos santos, nas chamas de profetas de pura blasfêmia. Em seus olhos restava pouco do brilho do professor que sempre fora, brilho este que, com um sorriso, se esvaeceu, cintilando pelos ares até encontrar-se à pele de Mirel, marcando-o como uma tatuagem do fogo fátuo que Jotur sempre admirara.
Abaixo do corpo sem vida de seu mestre, demônios.
Homens.
De armaduras e espadas, achavam-se heróis. Mirel sabia da verdade. Compreendia a realidade daquela situação. Em lágrimas, queimando como a chama que agora marcava seu corpo, Mirel matou, pela primeira vez, criaturas que não se tornariam alimentos. Os soldados urravam, sangue esguichando pelos ferimentos que a fera de braços e pernas lhes causava, mas seus dizeres nada valiam. Responsáveis pela morte de Jotur, eram prisioneiros, criminosos, pecadores e, como tal, tinham de encontrar o fim pelo abismo das divindades.
Mirel implorou perdão aos seus deuses naquela noite. Ajoelhando sobre o sangue de seu mestre, desculpou-se por falhar em protegê-lo, como sempre foi protegido. Desculpou-se, também, por sujar suas mãos na imundice dos homens.
Agora, na noite anterior, não havia história para escutar.
O fogo fátuo ainda o marcava, e para sempre marcaria, talvez carregando um significado que ele desconhecia. O sangue de Jotur ainda riscava seus joelhos, as lágrimas marejavam seus olhos de lince.
Diante do silêncio da floresta que nunca deixara, Mirel acreditava escutar a voz de Jotur:
—Sente-se agora, cá estou eu em desavença com os dizeres celestiais! Diferindo do que as constelações me asseguraram, pequeno Mirel, contar-lhe-ei nesta noite outro conto, outro dos tantos que ainda não escutou, para que se previna, ressurja e reaja, quando assim for necessário.
Esperou, mas a história não veio.
Então ajeitou suas coisas. Fez suas preces, pediu perdão e conselhos a seus deuses, incendiou a chama em seu corpo e em seu coração e, incerto de que aquela seria sua melhor opção, deixou a floresta para trás.
Jotur não mais estava ali para contar-lhe história alguma.
Era sua vez de procurar uma história pra contar.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Diário de Escritor - Ousadia

Acabo de concluir uma novela.
Isso não é novidade. Eu sempre trabalho em algum tipo de texto diferente, por vezes contos ou noveletas, e também algumas novelas. Mas 'Dias Tempestivos' foi diferente. Quem acompanha a minha página no facebook, Véu da Esfinge, pôde ver alguns trechos da tal história. Dias Tempestivos não tem a base tradicionalista das minhas proles: ela é algo mais. Por vezes, quando me pegava escrevendo alguns trechos, via muito da minha própria realidade naquela história. Ela não era uma história de fantasia. Não era uma ficção absurda, não tinha magia ou coisas sobrenaturais. Ali, só existia a vida comum e mundana, os erros dos homens, o caos da loucura do dia-a-dia, o medo de uma rotina que se perde.
E daí?
Para alguém que nunca escreve sobre a realidade, esse não é um desafio comum. É uma ousadia sem igual, arrisco dizer. Eu me senti fora de casa, como um time de futebol que joga no estádio do adversário (o que, certamente, foi um péssimo exemplo, mas enfim). Quando você sai da zona de conforto, deixa pra trás tudo o que sabe e o que cultivou por tanto tempo para se lançar no desconhecido, no aprendizado, na evolução. Como assim?, você me pergunta, e é muito fácil responder: todo mundo tem medo de ousar, em todos os aspectos da vida. Mas, única e exclusivamente falando de textos, a ousadia é uma excelente característica. Você não somente trabalha o que não sabe, como também aprende muito fazendo isso. O crescimento profissional e pessoal é sem igual, podem ter certeza. É fato que seu trabalho não será o mesmo; há falhas, defeitos de inexperiência, tropeços e deslizes de quem não está acostumado àquele tipo de ideia. Mas tenha em mente uma coisa: um dia, quando as folhas em branco ainda lhe eram obstáculos intransponíveis, você ousou. Ousou pegar uma caneta, ousou abrir um documento digital, ousou digitar e formular uma história. Ousou ir além do branco da sulfite ou do arquivo novo do Word, fez mais do que inventar um conto em sua mente: você o transcreveu. Escreveu, deu vida a personagens, criou mundos e universos, uma nova cidade, ou mesmo a sua versão de um local já existente. Você mudou o mundo, mesmo que somente o seu mundo, por pura ousadia. Se é assim, qual é o medo de ousar agora? Você, que sempre escreveu terror, quando é que vai se lançar no mundo dos dramas e das tragédias? Você, fascinado por histórias policiais, quando vai arriscar um romance ou uma aventura épica e medieval? E você, cujo medievalismo dos cavaleiros e das princesas tanto agrada, quando vai se livrar das armaduras que lhe bloqueiam para ganhar as cidades obscuras da fantasia urbana, ou mesmo a não-fantasia dos cenários comuns, que retratam o cotidiano e suas diversas facetas?
Ousar, no mundo dos escritores, é algo fascinante.
É a ousadia que lhe permite descobrir novos horizontes, quando os antigos já não mais lhe saciam. É a ousadia que lhe permite transpor limites, deixar para trás fronteiras inimagináveis, enfrentar monstros marinhos no céu e navegar navios piratas nas areias de um deserto escaldante. Sem medo de ousar, vemos elfos se tornarem bárbaros, anões abusarem da magia. Sem o receio de criar o novo, vemos jovens imersos numa realidade de divórcios e superficialidades recuperarem sua confiança com base na prática de um esporte e de um amor correspondido, vemos o drama de um caso de terror mal resolvido se tornar uma complexa teia de acontecimentos. Muitos dos autores que conhecemos não ousaram se afastar de seus temas, seus gêneros e suas casas, e isso só nos mostra o quanto de potencial foi desperdiçado por simples medo. Rowling, a autora de Harry Potter, é um excelente exemplo de ousadia: após concluir a saga do bruxo mais famoso do mundo, em seus sete livros, a escritora inglesa deu a luz a uma obra de suspense policia, Morte Súbita, por pura e constante ousadia. Se é bom? Quem sabe? Mas uma coisa todos tempos de admitir: é ousado.
E, cá entre nós, ousar é a maior das fantasias na realidade de qualquer escritor que se preze.

domingo, 19 de maio de 2013

Texto - Saudade do que Nunca Existiu


Estão todos ali, menos ele.
Ele já não tem um nome. Não deixou saudades, pois nunca existiu. Ele simplesmente falta. Ele não o conhece, nunca o viu, nunca o sentiu por perto. Em raras ocasiões, achou tê-lo visto ao seu redor, abraçado a suas falsas causas. Errara. Nunca esteve por perto. Ou, talvez, tenha estado por perto algum dia, mas ele não foi capaz de tocá-lo. Passou ao seu lado como um perfume despercebido, uma fragrância chamativa, atraente, mas nada além de uma brisa passageira. Aquele perfume que te toca, e que o vento leva a seguir, num só sopro, deixando somente o cheiro da solidão.
Houve, um dia, um nome, mas ele não se lembra. Hoje, diante de tantas pessoas, sente-se sozinho. Não há saudade, não há arrependimentos. Há a falta. Falta alguma coisa que ele nunca teve. Falta alguém que ele nunca conheceu. Falta algo que se constrói na areia da praia, algo que desaba com o mais singelo dos tremores. Assim, diante de tantas pessoas, ele se sente sozinho, já que ele não está ali. Sua mente divaga, voa longe, para nuvens e universos onde ele não existe. Mas ele ainda está ali, com todas as pessoas, com todos os amigos, mas sem aquele que não tem mais nome, sem aquilo que já não se recorda, se é que um dia soube nomear. Como se chamava mesmo?
Dorme, descansa, mas seu cansaço não é físico, e sono algum é capaz de curá-lo. Acorda, desperta para mais um dia, um dia como todos os outros, um dia sem aquilo que lhe faz falta. Tenta sentir saudades de alguém que já passou por sua vida, tenta procurar em suas memórias por alguma coisa que lhe mostre seus erros, não encontra. O erro não é o passado, mas o acerto é o futuro. Um futuro que pode estar próximo, ou pode estar muito distante. Ou pode sequer existir. E ele pode esperar, esperar por muito tempo, sem que haja a possibilidade de encontrar aquilo que mais precisa, aquela pessoa que mudará tudo, aquele toque que lhe aconchegará no meio de tantos falsos sorrisos que lhe cercam. E assim, só assim, estará livre da solidão que sente no meio de tantas pessoas, da saudade que sente de alguém que nunca existir, da vontade que tem de sentir aquilo que tanta gente sente, ou mente que sente.
Como se chamava mesmo?
Às vezes, ele se lembra do nome, mas só. O nome não é o suficiente. Ele faz falta, fascina. Ele faz falta, alucina. Sem ele, pouca gente sobrevive. Pouca gente é capaz de superar a frieza da rotina, o gélido cotidiano que nos estapeia o rosto. Sem ele, resta somente o vazio, a solidão, o vento frio e soturno de uma noite sem fim, de um dia escuro, de horas e mais horas de um breu sem resquícios de sol. Abrem-se os olhos, não há luz. Repouso sem sono, feridas sem dor, animal sem dono, verão sem calor; tudo assim, tão errôneo, pela falta dele.
Estão todos ali, menos ele.
Às vezes, ele se lembra do nome, mas de que isso adianta? Não há saudades, não há lembranças, não há verdades ou fragrâncias. Há o vazio, um vazio que assusta, que apavora. Um vazio que, sem amor, não irá embora.
E onde está o amor quando mais se precisa dele?

Filmes - Reino Escondido


Na última sexta-feira, dia 17 de maio, o cinema recebeu mais um longa metragem animado: trata-se de Reino Escondido, um filme que trata de criaturinhas miúdas lutando pela vida da floresta, enfrentando, assim, os monstrengos responsáveis pela podridão do equilíbrio natural. Reino Escondido, ou Epic, para aqueles que assim preferirem, tem tudo aquilo que uma animação precisa: cores, aventuras e criatividade a mil. E digo mais: Epic também não tem medo de ousar. Apesar de ser uma animação, basicamente voltada para o público infantil, ele conta com cenas fortes e um roteiro que por si só já se mostra um pouco mais adulto do que de costume. A protagonista está numa empreitada para visitar o pai, enlouquecido por uma pesquisa que somente ele acredita ser real, estudo esse o responsável pelo fim do casamento e da carreira do tal homem como cientista. Vemos um cenário de uma família tipicamente problemática, situação que só piora graças à recente morte da mãe, que ainda deixa lacunas no coração dos personagens. Mas a cena toda se inverte quando, durante uma despedida forçada e ríspida, vemos Maria Catarina se envolver com toda a situação dos Homens-Folha, os tais guerreiros da floresta, após se deparar com a Rainha e o Botão que pode salvar a floresta, ou dar um fim a todo o verde de Ronin e seus cavaleiros, iniciando assim o reinado dos Boggans.


Mas o que Reino Escondido tem de tão especial? Como já disse anteriormente, ele já conta com as três características que mais chamam atenção numa animação. Cores graças ao cenário, já que o mundo que se esconde na floresta é imensamente povoado por criaturas magníficas, e aí mesmo podemos constatar a criatividade, das armaduras dos Homens-Folha às roupagens dos Boggans, passando ainda por lesmas falantes, mulheres-flores, botões que desabrocham na escolha de uma nova Rainha e o toque da podridão dos malévolos destruidores da floresta, sem esquecer das engenhocas projetadas pelo Professor Bomba. É tudo fascinante, bem desenhado e animado de uma forma que nos deixa admirados! Fora a simpatia dos personagens, altamente envolventes e carismáticos (apesar do nome da tal Maria Catarina que, pelo amor né, traduções brasileiras que nos envergonham...). É claro que podemos apontar algumas falhas, como a rápida aceitação da MC (Maria Catarina) com sua nova situação de diminuta, a uma figurante que passou rápido demais pelas cenas tomando uma posição importante no desfecho, entre outros, mas nada que estrague a produção. Citando a aventura que comentei acima, as sequências de ação e a movimentação dos personagens é excelente, sem contar as estratégias de combate utilizadas por ambos os lados dos conflitos, com cenas dignas das guerras medievais de O Senhor dos Anéis e similares (sem exagero!).


Enfim, Reino Escondido surgiu tímido no ano de 2013, mas ganhou espaço após alguns trailers liberados mais próximos de seu lançamento. É, sim, uma animação que vale a pena assistir no cinema, se tiver oportunidade, tenho certeza de que não irá se arrepender. Difícil não dar nota 10 para uma animação de tal nível, mas em se tratando de uma caracterização técnica, acho que um 9 não seria exagero, ainda mais com a trilha sonora agradável (e, às vezes, surpreendente, haha) e pela dublagem (a original, claro, porque a brasileira cuidou de destruir algumas tendências). Fica a dica para os amantes das animações e da natureza!

domingo, 12 de maio de 2013

Conto - Aqui



Aqui

Em todos os cantos do mundo, há pessoas cuja mente foi distorcida por uma realidade suja.
Há homens que matam por diversão. Pessoas que se deleitam no som do sofrimento de seus torturados, que admiram o sangue que jorra dos ferimentos que eles próprios criam, que não se regozijam com alimento algum que não seja a carne de tua própria espécie. Há homens cujas fantasias sexuais se resumem à infância e à inocência ainda não perdida, dotados de um espírito atormentado, de pensamentos macabros e sombrios, de uma sede que somente a nudez de gente que sequer teve a chance de crescer e se defender é capaz de saciar. Há pessoas que adquirem bonecas feitas de garotinhas, que buscam o prazer na carne de crianças mutiladas, incapazes de gritar por socorro e por suas vidas, incapazes de se recobrar do trauma que cada instante daquela tortura infinita é capaz de proporcionar à suas memórias estilhaçadas por uma realidade emporcalhada de tal forma que, ainda que séculos se passem, elas estarão ali, como fantasmas, espectros de ocorridos que nem mesmo os mais intensos livros são capazes de retratar.
É assim que se entende que o mundo não é um lugar legal. Entre paisagens lindas, vive um povo grotesco. Entre sorrisos charmosos, governam prantos doentios, cachoeiras de lágrimas e choro infantil, tormentoso, um eco que fere os corações mais ingênuos como agulhas e espadas. O homem, insatisfeito com o paraíso que lhe foi dado para viver, deseja sempre mais para sua diversão, seu lazer, a nojeira que chama de vida. Procura no sofrimento do outro seu sorriso, na morte do próximo a sua virtude, sua vitória. Guerra, sangue, vida e mais vida atirada ao leito de um rio vermelho, deixada para correr livre até a queda d’água, pronta para despencar de um abismo de onde jamais poderá retornar.
Por isso Eles vêm, nas sombras.
Sim, Eles. Não eles, como deve estar pensando.
Eles.
Quem são Eles, me pergunta? Eles são tudo, são nada. São caos, são ordem, luz e sombra, direito e esquerdo, certo e errado. São defeituosos, mas são, também, a mais completa perfeição. São eternos, ainda que perdurem um só instante. São Eles, e é isso o que Eles são.
Eles.
Rastejando nos confins dos subúrbios, aguardando num repouso turbulento sob túmulos, dispersos atrás de cada espelho, de cada armário, sob cada colchão. Eles estão em todo lugar, estão sempre por aí, observando. Escutam, estudam, compreendem. Eles sabem que os homens não valem nada. Sabem que o paraíso, hoje, é mais próximo do inferno do que o próprio lar dos abissais. Sabem que, no tempo em que o homem fez o mundo ruir, tudo o que era bom se perdeu. Sabem que não há mais salvação, que não há mais escolhas, que não há mais oportunidades ou chances para se redimir depois de tantos erros.
Por isso Eles vêm surgem, saídos de seus esconderijos, das sombras, dos cantos, das salas escuras. Por isso sorriem nos espelhos, em reflexos assustados, rangem armários e assoalhos, suspiram nos porões e nos sótãos, tossem nos cemitérios e nas casas abandonadas. Por isso sopram nas janelas, respiram na brisa noturna, desenham o breu sobre as estrelas douradas e a lua brilhosa, assombram um mundo com a completa escuridão de um eclipse. Eles estão por aí, esperando pelo momento certo e, pouco a pouco, fazem o que têm de fazer, aquilo que nasceram para fazer.
Salvação, você diz?
Não.
Extermínio.
Cada um Deles, infinitos como são, cuida de livrar o paraíso envenenado da praga que o assolou: os homens. Rugem nas sombras e os levam, um a um. Corrompem suas consciências, fazem deles fantoches, abusam da vontade fraca e da mente dispersa que somente os homens conseguem ter; lançam-nos uns contra os outros, diferenciando valores e ideais, crenças e opiniões, fazendo com o que não importa se torne tão importante a ponto de um homem matar por isso. Fazem do material um desejo carnal, fazem dos cérebros brinquedos sem uso. Eles não têm forma, mas têm força; não têm medo, mas têm fome.
E a fome nunca acaba.
Talvez haja um Deles por aí, à sua espreita. Você pode estar correto, mas eles são corretos e errôneos: não vão esperar pra ter certeza. Você pode ser um exemplo, mas eles não buscam exemplos, não buscam bons homens: buscam o fim da praga, a liberdade de uma terra que nasceu pra ser livre, mas foi escravizada pelo bel prazer dos abusivos monstros chamados humanos.
Talvez haja olhos sobre você, no canto do cômodo, no teto, na janela, na fresta da porta, na fechadura. Ele está te observando, em silêncio. Está te esperando dentro do guarda-roupa, debaixo da cama, sob os lençóis. Está aguardando por seu sono, silencioso para o momento em que seus olhos se fecharem, faminto. Talvez Ele esteja atrás da porta de seu banheiro, ou mesmo no espelho, fingindo ser o seu reflexo.
Sabe esse estalo, na porta, no teto?
Ele está te observando.
Os passos, o vento batendo nas janelas, o ruído depois do corredor.
Ele está se aproximando.
A brisa fora de casa, o silêncio sob as luzes acesas, o som que você não sabe identificar.
Ele está cada vez mais perto.
Você vai olhar pra trás, mas ele não estará ali. Está perto, mas não ao seu lado. Vai olhar para cima, mas ele não estará no teto. Seus olhos não são rápidos o bastante. Ele está muito perto, quase respirando em sua pele; você não pode notar. Vai olhar para a janela, para a porta, para todos os lugares, não será capaz de vê-lo, mas ele está ali, na luz, na sombra.
Desista de vê-lo.
Escute.
Consegue escutar?
Esse som, essa música, esse medo.
O silêncio.
É Ele.
Atrás de você, embaixo, acima, aos lados.
Nada.
Você olha para os lados, nada.
Então se volta ao texto.
Irônico, não é?
Você pode senti-lo, mas não pode vê-lo.
Que pena...
Ele está aqui.