Olhos de Lince
Abrindo os
olhos, viu um teto branco, ou acho que fosse, pois o branco também lhe era
novidade. Havia doutores, cobertos com máscaras e com altos salários,
escondidos em suas vestes polidas, anjos mecânicos, apurados na arte de
consertar pessoas.
Mais uma vez,
consertavam, e ele, o defeituoso, chorou e, pela primeira vez, viu suas
próprias lágrimas correrem solta.
Paredes
azuis, corredores tomados por portas, janelas que mostravam a luz do sol. Tudo
era assim, tão simples, tão lindo. Uma perfeição que ele desconhecia. Dezesseis
anos. Dezesseis anos para distinguir cores, para sair do completo breu. Tempo
demais. Quantos relógios não rodopiaram em todos esses anos? Quantas vidas não
foram perdidas em quase duas décadas? Dezesseis anos de luzes apagadas e, de
repente, tudo tinha cor, tudo tinha forma. Novidade, sim, a mais bonita de
todas elas: ele, agora, podia enxergar.
Nascera na
cegueira, ingênuo. Esticava os braços para caminhar sem cair, aprimorava as
narinas para distinguir as refeições. Seu sonho era ver o mundo. Não era
infeliz, entretanto. Sorria, quase sempre. O espelho à sua frente, refletindo
seu sorriso, mas ele não podia ver. Diziam que tinha um sorriso bonito,
agradável de se admirar, um riso sincero e amoroso. Talvez realmente tivesse.
Seria bonito, seria feio? Como saber quando o escuro é a única opção? Então,
como era o que podia fazer, ele esperou, e o tempo seguiu veloz, como um trem.
Cada dia terminado era um risco em sua vida, um dia em que não vira os passos
que deu. Esperou e, quando foi chamado, choramingou, ainda sem ver as lágrimas.
Agora,
emocionado, as via.
Eram lindas.
Cristalinas,
refletidas em seu rosto claro, quase albino. Os olhos de um azul similar ao
azul das paredes daquele banheiro de hospital, que não era de todo belo, mas
para alguém que nunca enxergava, tudo era lindo. O azul marejado em seu
semblante contrasteava ao ouro de seus fios, herança de sua mãe. Do pai,
herdara as sardas, e também a altura. Esguio, magricela e alto, franzino.
Louro, cabelos maiores do que o padrão dos homens de sua terra, olhos mais
claros do que o tradicional. O azul não era de sua natureza; copiando a imagem
da mãe, teria o castanho no olhar, não a cor dos rios. Porém, após o
transplante de córneas, o tom oceânico rutilava em sua expressão, singelo.
Olhos virgens, puritanos, garantidos por uma criança que jamais conhecera outra
vida senão a rural. Olhos perfeitos, quase que mágicos, banhados pela inocência
que somente a infância é capaz de preservar.
Olhos de
lince.
Sentava-se,
então, numa praça tomada pelo cinza dos homens e pelo verde da vida.
Respirava
fundo, como sempre gostara de fazer, mas o prazer era sereno: agora, quase via
o ar que acariciava suas narinas. Sentia-o tocá-lo numa carícia perfumada, ao
tempo em que se admirava com as folhas verdes e amareladas pelo outono. Nada
melhor que sentir a natureza, claro; mas vê-la? Sentindo seu toque com a
capacidade de saber que ela está ali, de verdade, e não somente ilusão. Era
perfeito. Acima de si, as nuvens, num azul que, de tão azul, era quase como o
mar. Aquele era o céu, e ele era uma moldura para um quadro plumado e ventoso,
de nuvens claríssimas, na forma do algodão, desenhadas de forma precisa, uma a
uma, pelo mais perfeccionista dos pintores. Tão belas quanto as folhas, em suas
curvas úmidas; eram simétricas, incontáveis em cada árvore, em cada galho. E os
galhos, como eram estranhos e curiosos! Vez ou outra pareciam garras de
monstros, ao menos como o garoto as imaginava, mas saíam das árvores, dos
troncos, dos caules, do marrom da natureza que, mesmo cercada por imperfeição,
era de todo perfeita.
Passou horas
ali, e tudo era novidade. O mundo, a vida, a natureza.
Também, as
pessoas.
Homens e
mulheres, velhos e crianças, todas as idades circulavam por aquele local.
Casais de mãos unidas, amando, amados; famílias a correr atrás de seus filhos,
sorrisos de comercial de margarina estampados em seus rostos, dentes amarelos,
algumas vezes claros, brilhosos; amigos sentados, por tempo indeterminado a
jogar conversa fora, gesticulando, movendo as mãos, os olhos, o corpo todo,
numa dança de significados que, antes da visão, o garoto sequer imaginava.
Aquela vida era maravilhosa, e por tanto tempo se escondeu atrás da cortina
obscura da cegueira, tanto tempo que, agora, o garoto se surpreendia com a
imensidão de um mundo minúsculo. De início, gastou horas na admiração das
pessoas. Elas eram fascinantes, quase sempre lindas, quase sempre perfeitas.
Mas a visão
das pessoas mostrava muito mais.
Elas nem
sempre sorriam. Sentado naquele lugar, como estranho observador, curioso e
detalhista, o garoto viu demais. Casais largavam o toque das mãos, aumentavam
suas vozes, choravam ao se afastar; crianças se machucavam, e as piores feridas
ainda eram criadas no psicológico por pais impacientes, jovens demais,
irresponsáveis; idosos prosseguiam o caminhar da vida com dificuldade,
indispostos a manter-se na calmaria de seus lares, e na oscilação de passos
vagarosos, não recebiam ajuda, não recebiam sequer olhares. Uma senhora
derrubou seus pertences, um garoto os encontrou, guardou-os para si, desonesto;
uma criança se machucou, a mãe, soteira e adolescente, sequer notou, e quem
caminhara ao seu redor não se importou em avisá-la, deixando a garotinha chorar
sozinha, a ferida coberta pela areia dos brinquedos, a dignidade perdida nas
escolhas errôneas de sua genitora; um cachorro maltratado implorava por um
mísero pedaço de pão, súplica rejeitada por uma criança de pouca idade, mas
muita maldade, que, com os pés calçados, afastou o animal de forma impiedosa.
E tudo aquilo
era visível, palpável, real.
O garoto
lacrimejou. Os olhos ainda estavam sensíveis, sim, mas o choro era outro. Não
pós-traumático, não sem razão. Chorava pelo mundo. A ele, cujo escuro se
tornara tão familiar, as cores eram lindas e, por si só, motivavam uma vida de
certezas, um paraíso brilhoso e aconchegante, cujo verde das folhas lustrava os
olhos, o ouro do sol irradiava a mente, o azul do céu abraçava o coração. Com
seus olhos de lince, fossem mágicos ou não, ele via a vida de outra maneira, e
aprendeu, da pior das formas, que talvez fosse o único a vê-la de tal forma.
Para os demais, mesmo entre tantas cores, tudo era cinzento. Os outros, mesmo
diante do arco-íris, viam sete listras monocromáticas, sem cores, sem alegrias.
Com os olhos
azuis marejados, o jovem se levantou e partiu, deixando para trás a praça e as
pessoas. Agradecia, em seus confins, pelos olhos de lince que lhe foram
garantidos.
Não fossem
eles, talvez o tempo congelasse e ele, como todas as demais pessoas, visse o
paraíso que era o mundo como uma terra tomada por preto e branco.
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