sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Estranhos no Espelho - Epílogo

Encerrando, agora, mais uma Light Novel no blog. Espero que gostem da leitura e que admirem o desfecho da história dos estranhos nos espelhos. Sem demoras, vamos ao epílogo.


EPÍLOGO

Aquele era um pesadelo terrível.
Eu via um homem com olhos de relógio, e ele enfrentava uma besta indescritível. Ao seu lado, deuses na forma de estações anuais riscavam o mundo com suas figuras, auxiliando o homem dos ponteiros em seu embate.
Por último, uma mulher, que mais me parecia uma bruxa, e todos eles lutavam.
Até que algo ocorreu.
Algo ao longe ruiu, desmoronando como se fraquejasse diante da pancada de um herói, como se desabasse perante a vontade de um mundo todo, de inocentes e viventes. Junto disso, todo o local desmoronou, e o conflito se perdeu no estrondo da inexistência, conforme a torre em que todos estavam tombava, lentamente, contra o solo, que me parecia distante demais para que alguém pudesse sobreviver.
Eu vi a bruxa se desesperar e fugir, e o homem dos ponteiros a perseguir, furioso. Vi o monstro se perder nos poderes dos deuses, e os deuses partirem, concludentes de suas missões. Vi o local deixar de existir, se perder no nada e no vazio, cobrir-se em completa escuridão, e então não vi mais nada além do breu, e não ouvi mais nada além do silêncio.

Eu abri os olhos.
Tudo ainda era turvo, estranho demais, como se eu me acostumasse outra vez àquela paisagem. O quarto bagunçado, as tralhas jogadas no chão, o cheiro de suor e de pizza.
Aquele era o meu quarto, enfim.
Enfim? Por que eu pensava daquela maneira? Era como se eu não visse aquele lugar há tempos, como se eu estivesse distante há semanas! Mas eu estava lá, sempre estive, não? Seja como for, levantei-me da cama, respirando aquele odor intrigante e incômodo, e ele me agradou como nenhuma perfume poderia me agradar.
—Já se levantou, meu amor?
A voz era uma canção em minha manhã. Abri as cortinas, deixando que o sol entrasse pelas janelas, iluminando a bagunça, o pijama, os lençóis caídos ao chão.
—Sim, meu anjo. Eu já me levantei.
Marrie surgiu na porta de meu quarto, vestindo nada além de sua camisola mais provocante, e eu me apaixonei novamente por aquela mulher. Ela era minha razão de existir, a mãe da garota mais linda do mundo, e também a melhor esposa que alguém como eu poderia desejar.
E eu estava com saudades dela, por mais que estivesse dormindo ao seu lado nos últimos anos.
—Dormiu bem, Victor? Você estava estranho ontem.
Corri até ela e a abracei, tirando seu corpo atraente do chão num abraço que mais parecia um reencontro.
—Eu estou ótimo, princesa, melhor impossível! Já disse que te amo, te amo mesmo?
—Sim, várias vezes.
—Mas é bom repetir para que não se esqueça: eu te amo.
E eu a beijei, e seu beijo era bom, delicioso, perfeito e mais que perfeito.
—Eca!
Madeleine, minha filha, meu orgulho, surgia pela porta, linda como somente a mais bela princesa poderia ser.
Eu a abracei com a mesma sensação de reencontro, motivado pela emoção que somente um pai distanciado de sua cria poderia sentir, por mais que Madeleine estivesse ao meu lado durante quase todos os dias.
—Eu te amo, minha filha.
—Eu também, papai, mas você tá meio estranho hoje!
Sorri, pois talvez estivesse mesmo, mas quem se importa? Eu apenas acordei assim, com uma vontade imensa de amar, de ser amado, de dizer a todos aqueles que têm de ouvir o quanto são importantes para mim.
—Que tal se eu comprasse alguns doces para a gente comer no café da manhã, hein?
—Oba, eu adoraria, papai!
Afaguei os cabelos de Madeleine e, após um último beijo em minha esposa, vesti-me e caminhei até a padaria, deixando para trás o carro, o horário de meu trabalho e qualquer coisa menos importante do que a família.
No caminho, pouco antes de atravessar a rua, um homem passou por mim. Ele deslizava numa cadeira de rodas, as pernas quase inexistentes, massacradas por um acidente trágico em seu passado. Ainda assim, parecia bem, feliz na medida do possível. Carregava nos braços alguns livros de história.
—Bom dia.
Lucius.
Que nome era aquele que surgia em minha mente?
—Bom dia.
Respondi por educação, mas senti-me no dever de oferecer aquele cumprimento. Quando dei por mim, o homem já havia sumido numa esquina próxima.
—Que estranho.
Voltei ao meu caminho, estacando no lugar quando uma garota incansável trombou com meu corpo, caindo sentada na calçada logo a seguir.
—Ei amiga, tome mais cuidado! Você está bem?
Ela se levantou e limpou as roupas, olhando para mim com um enorme sorriso no rosto.
Seus olhos eram de vidro, foscos e inertes.
—Sim, eu estou bem. Me desculpe, senhor.
—Eu sempre digo para você não sair correndo, menina! Você sempre faz isso, sempre atrapalha os outros!
Quem falava era, possivelmente, seu pai, um homem que julguei estranho demais para que acreditasse em sua responsabilidade. Coberto de tatuagens e piercing, lembrava-me um andarilho, um cigano perdido nos tempos modernos, carregando marcas de um passado sombrio.
—Imagine, ela não me atrapalhou, meu bom senhor.
—Eu espero que não. Ela é muito arteira, você não sabe o quanto!
—Eu não sou arteira!
—É sim, e muito mais do que deveria! Pergunte à sua mãe.
A mulher que os acompanhava sorriu, e seu sorriso era belo e sereno, ainda que me parecesse misterioso, como uma máscara que esconde mais do que se pode imaginar.
—Peço desculpas por ela. Você sabe como são as crianças, não sabe?
Sorri, amigável.
—Sim, sei bem. Tenho uma filha de idade similar, e sei muito bem como elas gostam de correr para todos os lados.
A mulher sorriu, simpática, enquanto seu marido brincava com a filha, ambos já do outro lado da rua.
—Senhor Victor, posso perguntar qual é o seu doce favorito?
Estranhei a sua pergunta, mas a respondi do mesmo modo.
—Acho que chocolate. Não consigo pensar em nada melhor, ao menos. Por que a pergunta?
Mantive o sorriso no rosto, tentando parecer simpático, por mais que estivesse duvidando da sanidade daquela mãe.
Sua resposta apenas agravou minhas hipóteses:
—Chocolate, claro. São ótimos doces. É uma pena que nunca tenha provado um mundo, senhor Victor. É realmente uma pena.
E ela se foi, deixando-me ali, pensando em suas palavras, e só então percebendo que, por duas vezes, ela usara meu nome, o qual eu nunca havia dito.
Pensando naquele estranho fato, não pude perceber o estranho que me observava, pouco afastado, estranho este que também observava a mulher, por sob um chapéu escuro demais para o sol que nos acolhia, esperando por um momento certo, uma hora exata, um tic-tac final.
Eu não pude ver, e talvez devesse agradecer por isso, mas seus olhos pareciam relógios antigos.

Estranhos no Espelho - Parte 6 / Ato XIV


XIV


Cigano entregara sua vida por Decrépita, e não só isso. Entregara sua forma, sua verdadeira faceta, sua existência.
Por ela, Cigano era agora um monstro caótico e grotesco.
Ele morrera uma vez antes, nas mãos incontestáveis do Sr. Sete Horas, e eu presenciei tal fato. Aquilo em nossa frente não o era, em realidade, e eu não compreendia como ele poderia ali estar. Mas logo algo em mim mudou. Parte pelas emoções exacerbadas que tive até então, parte pela sensibilidade que ganhara devido ao sobrenatural que me acolheu há algum tempo, mas agora eu sabia mais, entendia mais, via além.
E sabia que aquilo em nossa frente não era nada além dos sentimentos comprimidos numa carga catastrófica de vontade e frenesi.
—Victor Fulcanelli.
A voz do Sr. Sete Horas e o uso de meu nome completo fizeram com que minha atenção fosse utilizada por inteiro.
—Estou bem.
Não era essa a pergunta, mas enfim.
—Vou precisar de você. Eu cuidarei dela, Victor. A Decrépita é minha, como tem de ser. Mas você precisa impedir o Umbra de ocorrer. Você sabe o que tem de ser feito.
E eu sabia.
Fitava ali a ingenuidade da Cega, indefesa e inocente, e também a incapacidade de Sofia, abandonada como um sacrifício, uma contraparte que sequer sabia o destino terrível que a aguardava.
Era simples demais, em termos.
Eu só precisava matá-las.
—Sim, eu sei.
—Você não parece confiante.
—E não estou.
—Então esteja. Não sou eu quem depende de você. É o seu mundo.
Mas eu não era um herói, muito menos um daqueles que carregam o peso de um mundo nas costas.
O Cigano urrou.
—Este é meu amado, e olhe quanto amor há dentro de sua existência!
A Decrépita era asquerosa, falando entre mesuras e gargalhadas, zombando daquele tolo que lhe oferecera a vida, os sentimentos, tudo o que tinha. Ela não era assim, não desde sempre, mas sua simples presença me era repugnante, criando uma náusea que aturdia quaisquer boas sensações possibilitadas pelo rosto familiar carregado em sua máscara.
E o Cigano urrava, como besta, pairado à frente da construção com uso de suas asas mórbidas, grunhindo e ganindo numa mistura de dor e paixão, de tristeza e prazer.
—Victor, vá!
O Sr. Sete Horas gritou, e pela primeira vez eu vi em sua voz uma alteração digna, imposta pelo momento abusivo em que nos encontrávamos. Ele gritou, e seu grito me fez despertar, me fez entender que estava cercado por atrocidades que fariam louco o mais sensato dos homens, rodeado por coisas impossíveis e inacreditáveis, coisas que deixariam um cético perdido nos limites do que existe e inexiste.
Ao acordar, vi que tinha uma missão, um dever, um ato que somente um herói poderia fazer.
Mas eu não era um herói. Não mesmo.
E, não sendo um herói, mantive-me ali, inerte, enquanto o Sr. Sete Horas avançou sobre a Decrépita, e ela não se defendeu, mas foi defendida, e as garras e o corpanzil da bestialidade de Cigano se impuseram à frente da ofensiva de Sete Horas, e os ponteiros em seus olhos vibraram na pancada que a sua própria mágica causou, devolvida às origens por um escudo invisível que circundava a monstruosidade daquele ser.
Recuando do inevitável, o Sr. Sete Horas explodiu em cores e formas, em ventos e trovões, e sua mágica era imensa, sua vontade era indescritível, e ele abraçou a Decrépita e a besta que era Cigano num único embate, guardando para si o conflito final, o verdadeiro motivo de sua criação, da crença que o fez real, que o trouxe de volta como simbolismo da vingança de todo um povo.
—Victor, vá! Já é hora!
Eu ainda estava ali, parado, enquanto Sofia gania, enquanto a Cega desenhava, enquanto a chave para o fim do mundo era riscada por uma criança. Acordado, preparado, mas não destemido, mas não aceitando o fardo que me impuseram.
Decidi agir mesmo sem aceitar.
Olhei nos olhos daquele homem, daquela entidade que lutava por um universo, por milhares ou milhões de inocentes privados de suas vidas pela fome desleixada de uma única criatura, e vi os ponteiros marcarem o que sempre marcavam.
Sete Horas.
—Sim. Já é hora.
Eu me virei para as duas. Elas foram minhas companheiras, ainda que por pouco tempo. Elas foram minhas conhecidas. Sofia tinha sua família na Terra de Cima, tinha alguém para voltar. Mas ela não voltaria de modo algum. Não fosse pela morte para impedir o ritual, seria pela morte para que ele se concluísse. Não havia salvação para aquela mulher.
Mas e para a Cega?
Aquela garota riscava o solo numa inocência desastrosa. Sempre desenhava, sempre via mais do que todos nós. Criada para aquilo, cultivada pelo próprio Cigano para que crescesse e se tornasse a chave que a Decrépita precisava, ela era aquilo, nada mais. Talvez um dia houve um passado, uma história, pais e irmãos, mas não agora, não mais. Ela era um objeto, um utensílio para um plano maior.
Ainda assim, era só uma garota.
—Você é teimoso, como eu.
Eu reconheci a voz de imediato.
Lucius.
Ele estava sob alguns destroços, e metade do seu corpo jazia soterrada. Não mais existiam as pernas, esmagadas pela pressão de um rochedo de peso surreal, mas seu torso e sua cabeça ainda se mostrava, choroso e riscado por ferimentos doentios. Ele estava calmo, mesmo após tal acidente. Calmo por não haver opção, calmo por confiar em Sete Horas.
Calmo por confiar em mim.
—Lucius!
Corri até ele, tentando almejar um meio de salvá-lo.
—Não há salvação. Deixe-me aqui, faça o que tem de fazer.
—Eu não sei se consigo.
—Você é teimoso, seu merda. Deixou Hector morrer. Deixou Suzan morrer. E agora vai me deixar morrer também.
—Não, Lucius, eu não —
—E sabe por que você vai fazer isso?
Engoli em seco.
—Eu não vou —
—Sabe o por quê, Victor?
Silêncio.
—Eu sou teimoso.
—Sim, você é teimoso. Todos nós somos. Mas não é por isso. Você deixou que eles morressem, e vai me deixar morrer também, para que todo mundo possa viver.
—Lucius...
—A sua família tá lá em cima, cara. A minha também, e a de Sofia, e muito mais gente que nem sabe que isso aqui tá acontecendo. Você tem que dar a eles uma chance de continuar. Tem que passar por cima do que for preciso para que as coisas tenham um destino, um meio, e só. Nada precisa ter um fim.
Ele tossiu, e sua tosse era sangue.
—Você podia ter sobrevivido, cara.
—Sim, eu podia.
Ele agarrou a minha roupa, puxando-me para perto do seu rosto. Eu senti a sua respiração pesada na minha pele.
—Mas eu também sou teimoso. Agora vai, seu bancário de merda.
Eu me levantei, escondendo o choro, e tentei disfarçar um sorriso, mas não me achei bem sucedido. Apertei o Outono e a Primavera nas mãos e, voltando-me para as inocentes que aguardavam por um ceifador, corri.
Ao meu lado, Hector e Suzan deslizavam, translúcidos, intangíveis, espectrais. Eles dançavam distantes, dispersos, dançavam velozes e silvando, mas eu tentei não dar atenção a nenhum deles.
Até que ouvi suas vozes:
—Você é nossa única esperança, Victor.
Suzan falava de uma terra ventosa, não morta, não destinada ao fim. Ela perdera a liberdade, a sanidade, mas ainda estava ali, na Trilha de Espinhos, local que habitaria até a eternidade.
—Eu não quero ser esperança pra ninguém.
—Mas você é, caralho! Será que dá pra se tocar que tem a porra de um mundo dependendo de você?
A voz de Hector vinha de um lugar muito pior, onde o vento era gélido e cantarolava dores e lamúrias. Um lugar onde jaziam os mortos, imaginei.
Não pude esconder um sorriso breve e ríspido.
—Valeu, Hector.
—Valeu? Não é valeu o que você tem que falar, seu merda! Você tem é que me idolatrar e continuar nessa coisa de salvar o mundo! Vai que você vira um herói, mesmo sendo um bosta a vida toda? Você pode ser como eu, tá vendo? Eu era foda, cara, você sabe. Você mesmo disse isso!
—Tá legal, Hector, eu agradeço o incentivo.
—Então vai lá e fode com elas!
Não eram as melhores palavras de apoio que eu poderia esperar, mas serviriam ainda assim.
—Victor.
Suzan parecia tristonha.
—Sim?
—Pega leve com ela, tá bem? Ela é só uma criança.
A Cega.
Porque, dentre todos nós, Suzan fora aquela com maior contato com aquela criança indefesa, responsável pela chave que faria a fome da Decrépita se extinguir.
—Eu prometo tentar.
Suzan sorriu, linda e atraente, e então ambos os fantasmas se foram, e eu tive certeza de que nunca mais os veria na vida.
Aquilo me custou algumas lágrimas, mas eu não tinha tempo a perder com um pranto de duas vidas, quando tantas outras vidas estavam no tabuleiro.
Continuei a correr, e atrás de mim havia a guerra, o holocausto, a mágica mais tenebrosa que alguém poderia demonstrar. Era a magia do Sr. Sete Horas afrontando a ira do Cigano, ao mesmo tempo em que o diabólico poder da Decrépita envolvia-nos numa teia de caos e desordem, preenchendo o ar com urros de mortes distantes, de mundos distintos, de vidas alheias.
Na mágica do Cigano, o amor corrompido, dizimado, obscuro e imperfeito; na mágica da Decrépita, a fome, a vontade de se alimentar, as vozes de tantos inocentes, de tantas vidas perdidas.
Na mágica do Sr. Sete Horas, o grito de todo um mundo, de milhões de vidas, da vingança que todos estes esperaram com ansiedade.
Um manto de espectros englobava a besta que era o Cigano, e mesmo a Decrépita não conseguia se defender destes. Ela bem tentava, soprando-os em ciclones de berros de Banshee, mas os gritos estridentes eram música nos ouvidos daquele povo morto, dos homens e das mulheres que tiveram tudo retirado de suas mãos, tudo o que construíram, tudo o que um dia sonharam em ter.
Foi quando eu percebi que, por eles e por outros, pelos meus irmãos de mundo, eu tinha de fazer aquilo.
Uma explosão ocorreu, e parte do teto desabou sobre mim. Juro que, naquele instante, vi a morte de perto, e ela me sorriu em seu crânio esculpido, um sorriso de dentes imperfeitos, de olhos vazios, de brilho laminado na curvatura de uma foice que por si só gritaria, não fosse um objeto. Mas a morte não me alcançou, congelada por um banho de Inverno, por um gelo soprado por três damas, derretida pelas chamas mais perversas que o Verão poderia vomitar, dispersa nas mais belas flores de uma Primavera sombria e então, só então, engolida pela terra, que propiciaria o nascimento de uma nova planta de folhas em queda, uma prole do Outono.
Tudo isso sem que eu nada utilizasse da magia.
—Talvez fosse necessário o apoio prestado, talvez não. A vida é melhor para quem arrisca, não é?
As palavras se originavam num homem de manto de folhas secas. Outono caminho no campo de batalha, e ao seu lado o imponente Verão, a beldade da Primavera e a inocência e sabedoria das Damas do Inverno, todos acompanhados da magnificência dos Filhos da Floresta.
—Não há luz numa terra sem sol.
Era Verão, tendo como parceiro o sol nas mãos, o mesmo sol que um dia entregara a nós, que um dia fora ostentado por Hector.
As Damas do Inverno sopraram, em coro:
—E há solução para tal escuro, irmão?
—Sempre há.
O sol deixou suas mãos, dando de encontro ao corpanzil de Cigano, e a besta urrou, flamejante, conforme o calor trespassava seu corpo e irradiava no céu negro de Paradiso.
Primavera se aproximou de mim, tocando-me com sua beleza, com sua maravilha, e eu me apaixonei por ela por mais de cinco vezes num único segundo.
—Talvez fosse necessária a nossa intervenção, mas talvez não o fosse. Os grandes prazeres da vida são tirados daquele que se arriscam e falham, Victor. Então se arrisque e conquiste.
—Vocês não tinham que ajudar.
Eu não estava espantando-os: estava admirado. Aqueles seres eram muito mais do que qualquer homem, e homem algum deveria lhes importar, bem como não lhes importava o meu mundo.
Ainda assim, enquanto eu tinha de defender um universo e seus inocentes, eles lutavam, não por mim, não por eles.
Por honra.
—Não. Nós não tínhamos.
Ela sorriu, abrindo seu corpo num jardim de flores magníficas, colorindo aquele campo de batalha com uma beleza surreal, estupenda e espantosa, capaz de encantar o mais frio dos cavaleiros, de tingir o mais cinzento dos corações.
—Mas o faremos ainda assim.
E o fizeram com primor.
A besta oscilava diante de Sete Horas e dos Herdeiros, e os Filhos da Floresta auxiliavam aquele embate de forças que eu desacreditava. Poderia me manter ali, inerte, castigado pelo impressionismo do espetáculo que era o conflito daquelas entidades, mas eu tinha uma missão, um objetivo, algo que dizia respeito a todos os presentes.
Com um esforço sem tamanho, deixei para trás o teatro de uma guerra em holocausto, alvejando duas inocentes, duas indefesas.
Só então me dei conta de que não tinha uma arma. Nem mesmo a benção de Outono ou de Primavera estava ali, ao meu lado, nos bolsos ou em minhas mãos. Eu não tinha nada. Tinha apenas um objetivo, o de matar, e os alvos a serem mortos, mas nada que me permitisse concluir tal façanha.
—Victor.
Era a Cega.
Ela sorria de maneira agradável, cativando-me com seus olhos de vidro, sem cor ou brilho, sem vida. Cega, mas ainda assim sorridente, ainda assim feliz, mais do que muitos poderiam ser com as melhores condições físicas.
—O que você está fazendo, Cega?
—Eu sou a chave, se lembra? Encontrei meu verdadeiro objetivo, aquilo que eu nasci pra fazer. Não é maravilhoso, Victor? Eu finalmente posso ser útil!
Ela era ingênua, como as crianças deveriam ser, talvez mais. Enxergava mais do que eu, mais do que todos, mas ainda era cega e, como tal, nada enxergava.
—Você se lembra?
Fiz que sim, esquecendo-me de que ela não poderia me avistar.
—Sim. Eu me lembro.
—Eu me sinto bem, Victor! Me sinto viva, mais do que nunca!
—Sei como é a sensação.
—É ótima, não é?
—Sim. Sentir-se vivo, capaz de ajudar, de fazer algo pra você e para todos. Sentir-se bem.
Eu me aproximei, e ela voltou a riscar o chão.
A imagem da chave abaixo de seu corpo estava próxima de ser completa.
—Quando isso tudo terminar, podemos brincar outra vez, Victor! Hector e Lucius também, todos nós! E a Suzan, como eu me esqueceria dela! Vamos brincar mais vezes, viajar por Pesadelo, correr daqueles monstros horrendos até que eles não possam mais nos encontrar. O que acha?
Ela sorria, olhos indefesos, sorriso angelical. A Cega era uma criança, e eu, um louco prestes a se tornar assassino.
Passei por ela, incapaz.
Atrás de mim, o rugido da guerra estrondava.
—Sofia.
O nome escapou de meus lábios, e a mulher se debateu em sua prisão, sem ver, sem falar, sem mover-se como gostaria de fazer.
—Sim, Sofia! Ela é uma pessoa má, muito má! Imitou a verdadeira Sofia, aquela que está brincando com o Sr. Sete Horas! Eu não gosto dela! Eu gosto de vocês, mas não dela!
—Eu entendo.
Atrás de mim, a guerra.
À frente, o destino.
Sofia.
Inocente, com uma vida na Terra de Cima, com uma família preocupada esperando seu retorno, um marido e um filho, talvez irmãos e pais corujas, talvez avós e tios carentes. Uma vida, uma vida de verdade, esperando de braços abertos até que ela retornasse para seu aconchego, normalizando a situação, resolvendo todos aqueles problemas.
Por trás da venda que a cegava, Sofia sonhava ou alucinava, mas seus sonhos pareciam assustadores. Eu imaginava o que ela via, quais cenas aterradoras assolavam sua imaginação. Imaginava se ela via-se despedindo-se do passado, temendo o presente, desconhecendo o futuro. Em seus sonhos ou pesadelos, Sofia esperava que tudo aquilo acabasse, que tudo chegasse a um fim lógico e racional, que os dias voltassem a ser como eram antes, rotineiros e perfeitos.
Mas eu sabia que isso era impossível.
—O que você vai fazer com ela, Victor?
Eu olhei para minhas mãos.
Havia uma faca afiada em uma delas.
—Nós vamos brincar.
E, em nome de todos os inocentes que eu seria incapaz de nomear, eu a esfaqueei, perfurando sua garganta com uma curvatura mínima de lâmina, deixando que o corte quedasse até suas virilhas, abrindo o corpo e permitindo ao sangue jorrar descontrolado, encharcando minhas roupas e meu rosto enquanto Sofia urrava, sem entender.
A Cega parou seu desenho, assustada.
—Essa não parece uma boa brincadeira.
Minhas mãos tremiam. Meu corpo todo tremia, na verdade. Eu esperei até que ela cessasse os movimentos para respirar fundo, fechar os olhos e entender o que havia feito.
Eu matara uma mulher inocente.
Em lágrimas, com uma dor similar, senão maior, àquela sentida por Sofia, falei:
—Não, Cega. Essa não é uma boa brincadeira.
Então me virei em sua direção, com a faca suada no punho cerrado.
—Victor, o que você vai fazer?
Ela não parou de desenhar. Ela tinha medo, tinha sim, mas não parou de desenhar por um só minuto. Não me olhou, não chorou por sua vida, não implorou por piedade, pois confiava em mim, e aquilo era como uma estaca em meu peito, como um disparo em minha testa.
Caminhei até ela, sem pressa.
—Pare de desenhar.
Ela não parou.
—O que você vai fazer?
O sangue gotejava na faca, marcando o solo com respingos de uma vida que não deveria ser perdida.
—Pare de desenhar, por favor.
Ela não pararia.
—Eu não posso, Victor. Eu nasci para isso.
—Pare. Pelo amor de Deus, pare.
A Cega choramingou, ao mesmo tempo em que sorria e desenhava.
—Eu não posso. É mais forte do que eu.
—Eu sinto muito, Cega.
Parei ao seu lado, trêmulo, aos prantos. A dor de Sofia ainda me aturdia, e eu alucinava a cada vez que imaginava o urro histérico de sua morte, a cena de seu corpo aberto ao meio de maneira áspera e nauseante, por minhas próprias mãos.
Agora, mataria novamente.
Mataria uma criança.
—Eu não posso...
Ela chorava muito, mas eu chorava mais, por mim, por ela, por todos.
Atrás de mim, na guerra, Decrépita urrava, ousando irradiar todos os seus poderes na tentativa brusca de escapar daquele antro de entidades, carregada de volta ao combate pelas cores e dissabores dos poderes dos Herdeiros, dos Filhos, de Sete Horas.
Cigano, àquela hora, já era pouco mais do que cinzas.
—Eu sinto muito.
A faca em minhas mãos se ergueu, preparando um golpe que exterminaria uma vida, uma criança, uma maldição.
Mas ela não desceu.
Eu não era capaz de matá-la. Via seus olhos, sua vontade de viver, sua alegria por ter encontrado algo que somente ela poderia fazer. Via, em seus olhos, a inocência, a virtude dos mais jovens, a virtude que se perde com o envelhecer.
E ela chorava, chorava demais, mas ao encontrar meus olhos, a Cega sorriu, confiante.
—Está tudo bem, Victor. Talvez seja o melhor.
Eu vi toda sua vontade de viver, de continuar a existir, de manter-se ali, inerte, terminando a função que nascera para fazer. Vi além, no entanto, no fosco de seus olhos, no brilho de suas motivações.
Vi minha família.
Marrie e Madeleine brincavam, abraçadas, mas ambas estavam apreensivas. Esperavam pelo pai e pelo marido, esperavam por mim, numa terra que agora me parecia uma grande mentira. A Terra de Cima era distante demais, falsa demais, e eu chegava a esquecê-la em certos momentos, incerto de que seria capaz de retornar.
Enquanto isso, elas esperavam, confiantes.
Confiantes como a Cega, naquele momento, estava.
—Está tudo bem, Victor. Está tudo bem.
Não estava, mas logo ficaria.
Fechei os olhos, deixei-me gritar e, sem pensar ou respirar, baixei a faca com todas as minhas forças, e vi luzes, gritos, escuridão, silêncio, e então nada.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Coisas Frágeis 2 e Os Elefantes não Esquecem!

Minhas últimas leituras ainda não resenhadas foram, respectivamente, Os Elefantes não Esquecem, da nossa mestra do suspense policial, Agatha Christie, e Coisas Frágeis 2, do fabuloso Neil Gaiman. Como tenho tido pouco tempo para resenhar obras, não criei uma postagem para cada um dos livros, mas vou fazer o possível para comentar os pontos altos e baixos de cada obra nessa única postagem, só para não perder o costume de escrever sobre o que li.

Primeiramente, vamos a Os Elefantes não Esquecem.

Agatha Christie é um talento sem igual no gênero policial, isso é um fato. Mas, em Os Elefantes não Esquecem, tive a impressão de que a autora não estava 100% focada, ou dedicada, à escrita. A obra é agradável, prende atenção no nível de detalhamento da trama e afins, como de costume, mas não sei... falta algo. O final, que geralmente é surpreendente, não foi aquelas coisas, sequer me chocou, na verdade. A história em si é boa, a escrita é rápida e eficaz, mas, em certos pontos, a obra se torna exaustiva, e um livro curto, que poderia facilmente ser lido numa única tarde, acaba por afastar o leitor de tanto tempo assim em suas páginas. Resumindo, uma boa obra, sim, mas nem de longe comparável aos grandes clássicos da rainha do policial.


Agora, Coisas Frágeis 2.

Em sua segunda coletânea de contos, Neil Gaiman dá um show a parte com poemas, textos reflexivos e contos extremamente criativos. Dessa vez o autor sequer se limitou à fantasia urbana de costume, mas se afugentou em rimas, versos e estrofes, bem como num texto que mais me parece uma declaração de amor (Quando os discos voadores chegaram), muito bom por sinal! Fora isso, ressalto as histórias O Dia dos Namorados de Arlequim, bastante original, e Noivas Proibidas dos Escravos sem Rosto na Casa Secreta da Noite do Temível Desejo que, cá entre nós, é simplesmente fabulosa. Imaginar que a fantasia seja o cotidiano e que o nosso cotidiano seja a literatura fantástica de um escritor bizarro é algo sombrio e insano, digno de Gaiman e somente dele. Coisas Frágeis 2 foi um livro que devorei também, sem nem mesmo perceber a passagem de tempo. É óbvio que existem alguns textos mais fracos, mas nada que desanime o leitor a continuar. Recomendadíssimo!

Espero que, nas próximas leituras, consiga tempo para resenhar os livros individualmente, como tenho feito até então. Se bem que, agora, nem mesmo sei o que ler. Fico aqui na espera de O Código Élfico, do Leonel Caldela, que deve ser lançado em breve. Enfim, boa leitura a quem planeja se aventurar nas páginas de uma boa obra, e boa sorte a quem procura uma boa obra para se aventurar!

O Código Élfico, novo romance de Leonel Caldela


Não sei quanto a você, leitor, mas eu sou inteiramente viciado na escrita de Leonel Caldela, um cara que surgiu do nada e se enfiou de cabeça com a Trilogia Tormenta, três livros ótimos que mudaram uma geração de jogadores de rpg brasileiros, e depois, de quebra, ainda embasbacou meio mundo com a série Terra de Urag, composta por dois livros, onde conhecemos Atreu, Jocasta, Iago e tantos outros personagens nada carismáticos, mas surpreendentemente cativantes. Agora, como se não bastasse o destaque positivo no medievalismo (bem como nas citações de um futuro tecnológico, ouso dizer), Leonel decidiu se aventurar com outra temática: a fantasia urbana. Sediado na editora Fantasy - Casa da Palavra, do ilustre Raphael Draccon, O Código Élfico nos levará a um mundo que, como o próprio autor comentou, mistura fantasia com terror lovecraftiano, lendas urbanas e assassinos em série, além de muitas outras coisas. Confiram mais detalhes no SITE OFICIAL do Caldela, que tem nos agraciado com uma série de postagem sobre seu novo universo, e entre na fila de espera para adquirir o novo romance desde já!

Amar Dói

Dói.
Você se esforça. Faz uma fortaleza de sorrisos, um castelo de alegrias. Então, quando o vento sopra forte, você vê que todas as paredes eram cartas de baralho. Aquilo cai, desmorona.
E dói.
Você faz o seu melhor. Age contra alguns princípios, realiza sonhos não só por você. Luta a dois, nunca sozinho. Esquece algumas de suas coisas para que existam as nossas. E elas estão lá, imersas entre tantas outras. Às vezes, esquecidas.
E dói.
Você se magoa. Erra por se chatear, pede desculpas. Se magoa mais. Erra por não suportar aquilo, erra por esperar sorrisos de quem se diz feliz. Erra por ser errado, mas também por ver tantos erros. Aí você sussurra, fala, grita, mas ninguém te ouve. Se calam, se entorpecem. Fecham os olhos e dormem como se nada houvesse, e você fica e pensa e chora. Você sempre fica. Sempre pensa. E sempre chora.
E dói.
Enfraquecido, exausto e castigado, você se pergunta porque aquilo prossegue. A dor é difícil de aguentar. Muitos desistiriam, mas não você. Você tenta. Você fica, pensa e chora, mas sempre tenta. Você não desiste.
Você ama.
E amar dói.

Conto - A Toca do Coelho



Ela ainda era uma garotinha risonha.
Arteira, sim, como toda criança tem de ser um dia. Tinha amigas leais, um clube que chamava de APS, as Amigas Para Sempre. Eram cinco: minha filha, as gêmeas da vizinha, uma ruiva sardenta da casa da frente e a gordinha da esquina. Lembro-me bem dos seus sorrisos, de suas brincadeiras, de suas explorações nas árvores que circundavam nossa casa. Tudo aquilo era bastante saudável. As mães adoravam.
Até que aquilo aconteceu.
Estávamos perto da Páscoa, e todos sabemos como as crianças ficam por ovos de chocolate. As cinco não eram diferentes. Eles corriam e se sujavam lá fora, mas adoravam quando nós as chamávamos para comer chocolate. Voltavam imundas, cheias de lama e grama, mas comiam mesmo assim, despreocupadas com a vida. Eu amava aquela sensação. Fazia os ovos para minha filha, deixava que ela comesse sem peso na consciência. Sabia que, anos mais tarde, a cintura das calças jeans cuidariam dos pensamentos ruins que eu não a deixava ter.
Um dia, ela chegou em casa com um ovo de chocolate que não era meu. Perguntei se era de uma das meninas, se ela tinha ganhado de presente ou coisa assim.
—Não, mamãe! —ela respondeu. —Nós achamos a toca do coelho!
—Que coelho?
—O Coelho da Páscoa, mãe! Deixa de ser boba!
Então ela correu para fora outra vez, e eu achei aquilo divertido.
No outro dia, ela tinha mais dois ovos de chocolate nas mãos.
—Quem te deu isso?
—Eu peguei na toca, mamãe! Eles são deliciosos, quer provar?
—Mais tarde. Agora, quero saber quem está te dando esses ovos! Você não os encontrou em algum lugar e pegou sem avisar, não é?
—Claro que não! Foi o Coelho da Páscoa quem me deu!
Estranhei. Quando ela foi brincar, passei na casa de cada uma daquelas mães. Perguntei a elas se tinham oferecido ovos de chocolate à minha filha e, para minha surpresa, todas elas tinham a mesma dúvida. Reunidas, achamos correto observar as garotas por uma tarde. Parecia que alguém estava oferecendo doces a elas, e nunca é bom aceitar doces de estranhos.
Na tarde seguinte, quatro mães observaram suas cinco filhas. Elas passaram o tempo todo com as mãos unidas, girando no lugar e cantando algo como de olhos vermelhos, de pelos branquinhos, orelhas pontudas, eu sou o coelhinho.
Nada de surpreendente.
—Vocês querem chocolate?
Era a mãe da gordinha. Todas nós estávamos preocupadas com aquela situação. Logo, no stress, todas aceitamos. Ela abriu um ovo de chocolate que guardava no casaco e nos ofereceu. Estava realmente delicioso. Ao fim, senti sono. Meus olhos quase se fecharam sozinhos.
—Nossa, de repente eu fiquei com um sono...
Aquela frase não era minha, mas bem poderia ser. Eu não entendia mais nada. Ouvia as crianças, distantes. Suas vozes cantavam algo sobre o Coelho da Páscoa. Então ouvi minha filha dizer:
—Olhem, é o coelho! Vamos!
Então, passos. Cinco crianças correram para longe de suas mães.
Nós caímos no sono ali mesmo, no banco da praça.
Quando acordei, já era noite. Sacudi as outras mães, acordei-as assustada. Minha filha não estava ali. Nenhuma das garotas estava. Chamamos por elas, gritamos, perguntamos nas casas. Nada. Com ajuda dos nossos maridos, entramos na floresta para procurá-las. Não demorou até que encontrássemos pedaços de suas roupas. Estavam sujas de barro, sangue e doce.
Parecia chocolate.
—Filha!
Lá estava uma das gêmeas, caída próxima a uma das árvores. Nua, tremendo de frio pela brisa noturna, a garota tinha os olhos mortos, sem expressão, mas respirava. Ela parecia chocada, amedrontada, apavorada. Ao seu lado, estavam a gordinha e a ruiva sardenta, todas elas sem suas roupas.
Mais à frente, encontrei minha filha.
Ela estava despida, também, e seus olhos não me diziam nada. Não havia amor, felicidade ou tristeza; não havia vida. Era uma casca de gente, o que sobrara de uma garota que vira algo que as crianças não estão preparadas para ver.
—Onde está a sua irmã? —perguntava a mãe das gêmeas. —Onde ela está?
Sem resposta. Nenhuma daquelas garotas disse algo naquela noite. Nenhuma daquelas garotas voltaria a dizer algo em suas vidas traumatizadas.
A filha desaparecida nunca foi encontrada. Agradeci por não ter sido a minha filha a desaparecer, mas talvez o que tenha lhe acontecido seja muito pior. Eu nunca saberia dizer.
Buscas na floresta não deram resultado algum, exceto por uma caverna estranha, similar a uma toca de coelho, porém maior. Lá dentro, não havia nada de especial. Somente a terra marrom.
O mesmo marrom do chocolate.

Estranhos no Espelho - Parte 6 / Ato XIII


XIII


Num cenário pálido e doentio, milhares de portas se espalhavam em todos os ângulos e direções.
Eu saí por uma delas, tomado por uma náusea incomensurável e, apoiado numa parede invisível, vomitei. A substância deslizou por degraus que forma não tinham, levada por um vento que não soprava, e então se foi, desaparecendo. Respirei com dificuldade, ainda enojado pela sensação súbita do incompreensível.
—Quer ajuda?
Levantei os olhos.
Quem me estendia as mãos era um homem com olhos de ponteiro.
—Não precisa.
Precisava, mas eu me levantei sozinho num esforço orgulhoso.
—Onde estão os outros?
O Sr. Sete Horas deu de ombros.
—Nem todos são capazes de vencer a Trilha de Espinhos, Victor. Espero que esteja preparado para aceitar possíveis perdas.
Lucius e Suzan não estavam lá, em nenhuma daquelas portas. Eles ainda estavam na Trilha.
—Eles vão conseguir.
—Esperamos que sim. As bênçãos dos Herdeiros farão falta, caso contrário. Precisamos de tudo o que tivermos para enfrentar a Decrépita e impedir que o Umbra se realize.
Sentado num banco imaginário, Sete Horas tirou um cigarro do ar e o acendeu nos dedos.
—Sente-se. Pode demorar.
Eu me larguei no chão que inexistia, permitindo-me respirar e apagar a irrealidade daquelas cenas de minha mente. Se um dia voltasse para a Terra de Cima, teria de me contentar com todas aquelas lembranças insanas, conviver com memórias de coisas que eu preferia desconhecer, como muitos outros desconhecem.
Uma porta ao longe se abriu, e por ela passou Lucius.
Ele quedou de imediato, arfando. Suava frio, abraçado às próprias pernas, trêmulo como uma criança após um filme de terror de baixa categoria, cujos sustos são inconsequentes e desnaturados. Eu queria oferecer apoio e forças, mas não os tinha nem mesmo para mim, portanto fiquei ali, inquieto, deitado em minha podridão.
Sete Horas não se moveu.
O tempo passava. Eu via os ponteiros girarem em seus olhos, sem parar.
Minutos, horas, dias.
—Teremos uma abertura em poucos instantes.
As palavras do Sr. Sete Horas foram ríspidas, servindo-me como o despertador que martela nossas cabeças ao amanhecer.
—Quantos anos duram poucos instantes?
—Apenas poucos instantes. Neste momento, poderemos sair daqui, partir para Paradiso e encontrar a Torre dos Murmúrios.
Olhei ao redor. Lucius ainda estava lá, aflito.
Nenhum sinal de Suzan.
—Suzan ainda não está aqui.
—Então torça para que ela esteja em poucos instantes.
Pigarreei, teimoso.
—Não vou sair daqui sem ela.
—É um orgulho tolo, Victor. Você e Lucius não a conheciam antes disso tudo.
—Mas agora a conhecemos, e é isso o quê importa! Sabemos que ela também tem alguém a esperando na Terra de Cima! Não vamos abandoná-la aqui, como uma indigente.
—Ó, mas vocês não a abandonaram! Todos tivemos chances iguais de cruzar a Trilha de Espinhos. Mesmo eu poderia fraquejar e oscilar diante do conhecimento que lá reside. Mas nós o fizemos, não foi? Eu, você, Lucius. Todos nós trespassamos aquele lugar amaldiçoado, e agora estamos aqui, guiados por pura força de vontade. Se ela não o fez, é erro dela, não de vocês.
—Vá se foder.
E me virei, destinado a adormecer por mais alguns poucos instantes.
Eu sabia que, no fundo, as palavras de Sete Horas eram verdadeiras.
Foi a voz dele que me despertou outra vez.
—Já é hora.
De encontro com uma visão turva, levantei-me zonzo, apoiado nas inúmeras portas que nos cercavam. Percebi que uma delas diferia de todas as outras: ela era pouco mais que uma fresta, pela qual uma luminosidade branda e azulada desbravava o local bizarro onde nos encontrávamos.
—Onde está Lucius?
—Estou aqui.
E estava. Ao meu lado, não recomposto, não bem disposto, não determinado. Mas estava.
—E Suzan?
Lucius baixou os olhos, tristonho.
—Ela não conseguiu.
Eu senti uma coisa estranha por dentro. Um aperto no coração, acho. Uma dor miúda, coisa que não soube explicar.
—Que pena.
Não chorei. Por dentro, algo me remoía o peito, me pressionava os pensamentos. Poderia ser tristeza, mas eu não a compreendia mais e, assim, não chorei.
O Sr. Sete Horas limpou a garganta.
—Não vamos perder mais tempo. A passagem logo se fechará. É a nossa única chance.
Ele foi o primeiro a passar por aquela fresta, seguido de perto por Lucius. Antes de prosseguir, virei-me para trás, olhando para todas aquelas portas, infinitas passagens por onde, na melhor das hipóteses, Suzan poderia passar, destruída por vislumbres de um inferno pessoal, porém viva.
Mas ela não passou, e eu fui embora sozinho.

—Sejam bem-vindos a Paradiso.
Eu sabia que aquele era o verdadeiro paraíso dos homens, a terra prometida, o milagre além de todas as vidas. Aquela era a terra da perfeição, a mais bela das imagens, o palco dos sonhos de infindáveis pessoas de infindáveis universos.
A visão do paraíso me fez vomitar.
Se uma única palavra poderia descrever Paradiso, esta era caos. Parecia um deserto de areia asquerosa, misturada ao lodo pantanoso da mais fétida floresta, coberta por pedras e vermes de cores e formas anormais. Corpos se empilhavam em todas as direções, e suas almas vagueavam nos arredores, gritantes, perdidas; algumas delas comemoravam. Sorriam e celebravam de olhos fechados, mas um dia a visão retornaria, e o paraíso que os alegrava seria aquele que eu via, aquele terror, aquele caos, e os sorrisos se perderiam nas lágrimas, a felicidade desapareceria na tristeza, a alegria seria corrompida pela dor.
Além das areias nauseantes, eu via casas e mais casas, todas elas distantes, e montanhas que mais pareciam amontoados de carne podre ou restos mortais; vendavais de sangue seco e cachoeiras de água envenenada eram somente alguns dos fenômenos aleatórios que ocorriam simultaneamente naquela terra pecadora. Juntos à tempestade de trovões escarlates, tudo parecia um circo de horrores.
Se aquele era o paraíso, eu sequer conseguia imaginar como seria o inferno.
—Este lugar não foi sempre assim. Mas o paraíso foi criado para benefício do homem, e ao homem foi destinado. O cultivo de tal terra tende a se escorar na vivência daquele a quem foi prometida, e o homem zombou da vida, dos outros, viveu no egoísmo e na ambição. Isto é o que restou do presente de Deus. Conseguem imaginar o mal que a sua raça fez para que o paraíso se tornasse essa aberração?
Eu era incapaz de discutir um assunto como aquele, e Lucius estava igualmente abalado. Em silêncio, seguimos caminhada, acompanhados dos sermões do Sr. Sete Horas que, de tão reais, pareciam socos em nossas faces.
Então ela surgiu, imponente.
Antes vista em silhueta, era agora imensamente devaneadora, fazendo parecer crianças chorosas as tartarugas-cavernas que vira há pouco. Inversa em proporções, o topo que realçou o horizonte no Pesadelo fincava-se ao solo, como lança, e todo o restante da construção se erguia como um monumento, um memorial, uma figura a ser idolatrada por povos que morreram, que existiam e que ainda nasceriam em todas as áreas de todos os mundos.
Ela estava inerte, mas respirava, como criatura viva, como aberração que era. Murmurava um chamado, um assombro, murmurava um pavor.
A Torre dos Murmúrios chiava um agouro de morte.
—É enorme!
O Sr. Sete Horas deixou escapar um riso de deboche.
—Construtivo seu comentário, Victor. Caso contrário, seríamos incapazes de perceber a monstruosidade de tal construção. Se me permitem, agora, tenham em mãos as bênçãos oferecidas pelos Herdeiros a todo tempo. Elas podem lhes salvar, bem como salvar o mundo de vocês.
Retirei de minhas vestes o emblema do Outono, pressionando-o com mãos trêmulas. Era difícil acreditar que algo de tamanha insignificância pudesse me oferecer um dom que homem algum seria capaz de acreditar.
Lucius se recusou.
—Eu não quero essa magia.
—Não a quer?
—De modo algum! Ela quase nos matou! Como posso confiar em algo que me feriu?
Sem hesitar, Lucius atirou o emblema da Primavera para longe de si, seguindo sem ele.
—Faça como quiser.
Não intencionalmente, não por ganância ou ambição, mas eu fui até o emblema e o peguei, respeitoso, guardando-o comigo para caso fosse necessário.
Uma escadaria surgiu à nossa frente, externa à Torre dos Murmúrios, tão fabulosa quanto a construção, com degraus cristalinos e encantados. Ela não fazia parte daquele cenário: nascera de Sete Horas, uma facilidade oferecida por seus poderes, por suas vontades.
—Tem algo errado.
Eu não sentia nada de diferente.
—Do que está falando?
—O ar está mais denso. Não percebem?
Fiz que não, Lucius também.
—Que seja.
Subimos.
O tempo passou, e nós subimos, subimos sem parar. Cada degrau nos exigia um esforço sem tamanho, um novo passo para o desconhecido, para o maior dos temores. Ali, no topo daquela escadaria, estava a salvação, mas também estava o desfecho, e nem todo final é feliz.
Eu pensava em Madeleine, em Marrie, mas também pensava em Suzan e Hector. Pensava em Wyrestown, sem saber o que esperar quando retornasse.
Sem saber nem mesmo se retornaria.
Diferente de dois dos meus companheiros, eu ainda tinha uma chance.
E, pensando assim, sequer percebi quando os degraus terminaram, e um imenso portão adornado com figuras bizarras nos recepcionou.
—Tem algo errado.
Sete Horas repetiu a afirmação, e agora eu também sentia.
O ar estava difícil de respirar.
—Nós ainda temos tempo. Decrépita não sabe onde está sua contraparte.
Ele não disse nada. Só respirou fundo e, com ambas as mãos, empurrou o portão metálico para trás, garantindo-nos a visão que destroçaria as esperanças de qualquer pessoa.
Lá estava Sofia.
Ambas as ruivas estavam no mesmo local, mas somente uma delas parecia bem. A outra estava amarrada, amordaçada e vendada, presa por correntes numa altura considerável do solo, balançando de um lado para o outro como um pêndulo irracional.
Abaixo dela, a Cega riscava o solo com uma pedra dourada, rabiscando uma figura que cintilava a cada nova forma, ganhando intensidade e tornando o ar mais pesado a cada novo risco.
Logo percebi que o quê ela desenhava era uma chave e, acima das correntes da Sofia da Terra de Cima, havia a imensa figura de uma fechadura.
A outra Sofia sorria, felicitada por nossa presença.
—Nunca antes houve espectadores.
—Não há nada para ser visto aqui.
O Sr. Sete Horas se livrou das vestes e do chapéu, deixando a mostra roupas soturnas, placas metálicas e cicatrizes amorfas por uma pele empalidecida ao limite. Os ponteiros em seus olhos giraram como ciclones, e então pararam, mais uma vez naquele horário, mais uma vez naquele tempo.
Sete Horas.
Eu pude sentir a dor de todo um povo. Pude sentir a vontade de se vingar, a vontade de existir outra vez, o desejo pela morte de um único ser, uma única entidade que livrou incontáveis vidas da existência. Sete Horas era a manifestação a vontade de um povo, de um mundo, e seu nome não era uma simples união de palavras: aquele era o horário do fim. O exato instante em que tudo deixou de existir, quando o Umbra se concretizou e a fome da Decrépita foi saciada, custando para isso uma infinidade de vidas.
A mágica do Sr. Sete Horas parecia mais densa do que o ar, descontrolada num frenesi animalesco.
—Agora é a sua hora de cair, criatura! Não mais levará consigo a destruição! Não mais carregará no corpo o espectro de todo meu povo!
A Decrépita não parecia se incomodar com a vingança de todo um mundo manifestada ali, à sua frente, na forma de um homem de olhos de ponteiros.
—Seus relógios estão atrasados, jovem. É tarde demais.
—Nunca é tarde demais.
E a magia explodiu, carregada de chamas revoltas num turbilhão, levada por um vendaval estridente, e no vento eu via olhos e bocas gritantes, almas e espectros de um povo poderoso, um povo que não mais seria capaz de existir.
A mágica nascia de um só homem, mas se originava em centenas, milhares, milhões.
A Torre dos Murmúrios se abalou com aquele poder, mas não cedeu. Suas paredes se estilhaçaram de imediato, mas nada ocorreu à fechadura que aguardava por sua chave, e a Cega continuou a desenhar, enquanto Sofia sacudia no ar, nas correntes, sem saber o que acontecia ao seu redor.
A magia era poderosa demais, descontrolada demais, e avançou sobre nós como se fôssemos aliados da Decrépita. Suspendi os braços numa falha tentativa de resistir, ainda que soubesse que era incapaz.
Ao fim, ainda estava lá, cercado por folhas e árvores.
O Outono me protegera.
—Lucius!
O emblema da Primavera em meu bolso me fez pensar o pior. Olhei ao redor, preocupado, mas não encontrei a imagem serena do professor. Havia destroços por todos os lados, paredes ruídas e marcas do conflito, mas nem sinal de Lucius.
—Merda!
Foi quando o céu oscilou, e eu percebi que algo estava errado.
O Sr. Sete Horas não percebeu que algo se aproximava. Nem mesmo Decrépita, Sofia ou a Cega, nenhuma delas se importou em olhar pelas imensas lacunas nas paredes da Torre dos Murmúrios para ver, voejando ao longe, uma criatura bestial, de asas deformadas e carne pútrida, soprar inferno e destruição para todas as direções.
E era um monstro, era um ser, mas antes disso, era um homem, um homem que eu odiava, um homem que fez o que fez por amar.
Cigano.