sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
Resenha de Livro - A Sombra no Sol, de Eric Novello
Ícaro, de acordo com seu próprio criador, fora um personagem criado num devaneio de uma depressão assombrosa. O garoto de programa que atendia quaisquer clientes por seu preço enquanto buscava uma finalidade em sua vida ganhou forma, tom e cores nos minicontos desenvolvidos digitalmente pelo autor, postados num site previamente e, agora, reunidos, girando em torno de uma trama maior, num livro publicado pela Draco, intitulado A Sombra no Sol. Este foi o último livro lido por mim nesta semana, e é sobre ele que comentarei a seguir.
Em A Sombra no Sol, acompanhamos Armando, o proprietário do bar Neon Azul (que protagoniza o romance homônimo do autor, também publicado pela Draco em 2010), em sua busca por Ícaro após a morte do garoto de programa. Ele leva consigo um líquido peculiar, mas sabe que, para que o efeito seja o esperado, é necessário que ele conheça o destinatário. Nada melhor para isso do que ler o diário de Ícaro, conhecendo sua vida, suas máscaras e suas divagações, e é isso o que Armando faz.
Cada texto nos apresenta uma perspectiva depressiva e atípica sobre situações das mais variadas, desde cenas de sexo violento, agradável, conversas de bar e similares. Ícaro tem diversos contatos pelas noites, e isso nos garante personagens de passagens velozes, outros mais marcantes, outros presentes e ausentes ao mesmo tempo. A leitura é admirável, pois o Eric conseguiu deixar cada texto com um linguajar polido e culto, mesmo quando as descrições tendem a perversões e coisas do tipo, e algumas das frases do pensamento de Ícaro são realmente marcantes como pensamentos de uma vida toda!
Como ponto negativo, é notável ressaltar que o livro é apenas isso: cenas dispersas entre as leituras de um diário, o que pode deixar alguns leitores desanimados para os acontecimentos. É claro que isso também ocasiona uma leitura mais simplória e ágil: com suas 118 páginas, terminei A Sombra no Sol em apenas um dia, sem dificuldade ou dor de cabeça. E como disse previamente, há passagens que dão inspiração, que cheiram ao estado do autor no momento da escrita, e isso é bom. Poucas pessoas conseguem transparecer os sentimentos através dos textos. Quem consegue, garante uma leitura emotiva e tocante, então parabéns ao Eric pelo livro, que pode não ser um dos meus favoritos pelo estilo, mas certamente foi uma leitura que me garantiu experiências diferentes e inesquecíveis.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
Conto - De Sorrisos Obscenos a Lamúrias Tardias
De Sorrisos
Obscenos a Lamúrias Tardias
Há
um assassino à solta.
É o que dizem todos os jornais que a
manhã me oferece. Enquanto provo de meu café com adoçante, escuto as ladainhas
da noite anterior. Mais sangue, mais morte, poucas respostas e nenhuma explicação.
Nada diferente do que o Brasil sempre me mostrou, sem pudor algum. Vergonha.
Nada é feito, nada é resolvido.
Como se eu realmente me importasse.
Ao caminhar pelas calçadas da metrópole
carioca, sinto o calor me acolher como se o próprio inferno me abraçasse. Não é
uma boa sensação, obviamente, ao menos que você goste de assistir enquanto sua
pele se faz líquida e escorre, gotejando no calçamento cinzento. Tudo ali é
dourado, das areias aos olhos das mulatas e também seus bronzeados espectrais,
que de naturais nada possuem. Eu as enojo. Gosto de mulheres, não de produtos.
Naquele dia, minha vida pouco valia. Não
era diferente nos dias anteriores. Eu era alguém sem nome, sem importância. A
cada vez que saía, trabalhava em algo diferente nas mentiras, mas sempre
retornava recordando que não mais trabalhava. Nunca mais trabalharia, talvez.
Eu era louco, e loucos nunca são aceitos. Só se aceitam os comuns, os volúveis.
Que vão à merda, todos eles. Eu passo fome sendo original.
Escorado a um banco de madeira, vejo um
casal de crianças correr ao redor de uma bola plástica.
—Não vão para muito longe! —dizia o pai,
cujas mãos não possuíam aliança. —Vocês podem se perder!
Pois ele, pobre coitado, já estava
perdido. Um pai solteiro. Traição, possivelmente. Escória.
Levantei-me nauseado, sussurrei um foda-se e parti. Nada diferente da
rotina.
—Eu nunca entendo como você pode ter
dinheiro para a farra de todas as noites.
As palavras vinham de um velho que me
vendia os maços de cigarro e a primeira dose de destiladas que me abria o
apetite alcoólico. Seus cabelos grisalhos não tinham rumo ou penteado,
deixavam-no similar a um leão de pelos cinzentos. Um avô teimoso e intrometido,
pensava eu. Um cadáver dotado de fala e pensamentos inóspitos.
—Eu também não —respondi, ríspido.
—Diga a verdade, você ganhou na loteria,
não é?
Segurei o riso. Se é que me lembrava de
como sorrir.
Eu nunca ganharia nada. Sorte era uma
lenda tão afastada quanto Odin e seus filhos deuses. Acreditar nunca fez com
que o sol esquentasse mais a Terra. O que fez isso foi o aquecimento global. E
minha sorte era tão gélida quanto a Antártida, mas sem sol algum para derreter
suas calotas polares.
—Claro —menti. —Obrigado.
Acendi um cigarro sobre o gosto da vodca,
deleitei-me na fumaça soprada entre os lábios. Fiz anéis cinzentos, joguei-os
para o ar. Eles eram livres. Eu não.
A tarde correu solta, mas não ia muito
longe, como as crianças de um pai solteiro que não entendia o princípio de uma
boa família. E, enquanto a tarde corria solta, eu me sentava preso, inerte,
usando da nicotina para que o relógio parecesse girar. Ele girava, claro.
Giravam, também, minhas vontades, meus temores. Meus dias.
Eu estava ficando velho.
—Pai, hoje eu vi uma calça linda no
shopping!
A adolescente de arquétipo louro e
magricela entoava cada palavra. Não era um comentário. Era uma súplica
enrustida na timidez de uma aproveitadora. Uma filha interesseira.
Eu também tive uma filha interesseira, um
dia.
—Eu não tenho dinheiro, filha.
Aquelas eram as minhas palavras, ditas no
silêncio. O velho assentiu, ofereceu à filha o presente que ela desejava, e ela
sorriu o sorriso mais artificial do mundo e se felicitou. Tolo era ele por
acreditar. Ela era somente humana e, como tal, via na tolice sua vantagem, os
degraus de sua escada.
—Eu te amo, papai.
Claro. Como o Papa ama os famintos
enquanto ostenta riqueza em seu trono e nada faz para ajudá-los. Faz todo
sentido.
A noite chegou, e eu escolhi a primeira
boate que avistei para assentar minha tristeza. A música era boa, mas boa no
limite da repetição. Nada de inovar, nada de agradar a todos. Uma música de
jovens num ambiente de jovens. Jovens e eu, velho. Velho demais para me
divertir, mas não para sentar e deixar que se divertissem comigo. Alguns
apontavam, debochavam. Eu sorria. Oferecia drinks, estendia os dedos. Era
chacota para os pequenos. Todos eles com idade para que eu lhes fosse um
genitor. Todos eles com mentes para que eu lhes vendesse os cérebros no lugar
dos amendoins de elefantes num zoológico.
—Eu posso me sentar com o senhor?
A voz era agradável, melodiosa e
harmônica. Uma voz de prostituta.
—Só se quiser se sentar no céu, porque é
lá que o senhor está —zombei. —Mas se
quiser se sentar comigo, fique à vontade.
Eu não era bom com piadas. Na verdade, eu
era péssimo. Meu senso de humor era tão ilustre quanto um rato de laboratório
preso a um pneu de bicicleta a girar. Meus olhos, no entanto, eram ótimos. E
eles me mostraram os seios daquela menina. Sim, menina. Uma adolescente com
idade o suficiente para ter nascido de mim, ou de uma mulher que eu tivesse de
fecundar. Uma garotinha com documentos falsos que a possibilitavam circular
entre os adultos e sentir-se, assim, parte daquilo tudo.
—Você é engraçado —ela riu. O batom
estava borrado, parte pela inexperiência, parte por beijos de uma noite
duradoura. Seus lábios cheiravam a morango, uísque e uma terceira coisa. Talvez
esperma. —Tem um nome?
—Meus documentos dizem que sim —foram
minhas palavras sinceras. —Eu, não mais.
—Ah, entendi —mas era mentira. —Eu me
chamo Brígida. Mas pode me chamar de Bi.
—Seus gostos se dividem nas aventuras,
Bi?
—Como uma lâmina divide uma folha.
Ela gargalhou, mas nada havia para se
rir. Então ela tomou do meu corpo, e eu nada disse. Apenas assisti aquela
depravação, admirando sua garganta e imaginando o quão fundo ela poderia levar
um homem.
—Isso é vodca?
—Era —respondi. —Agora é só um copo
vazio. Quer beber alguma coisa?
—É estranho beber com um homem que tem a
idade para ser meu pai.
Sua mão encontrou a minha sobre a mesa. A
outra, se não a segurasse no lugar, procuraria minha carteira.
—Um novo copo e parecerei seu filho
—ironizei, sem emoção alguma. —Permita-me.
Acenei para a garçonete, já conhecida, e
ela me trouxe dois copos da bebida verdejada que pedira. A garota bebericou
para conhecer, então desbravou o líquido de imediato, secando o copo a seguir.
Eu sequer encostei em meu drink.
—O que era isso? —depois de beber, como
toda boa inteligência.
—Piper. Ou meleca de rinoceronte. Escolha
o que achar melhor.
—Ei, pare de tirar sarro de mim! Eu não
estou tão bêbada, tá bem?
Seus olhos me diziam o contrário. Eu
imaginava, em sua residência, um pai deitado em sua cama, escutando um rádio de
pilhas ou assistindo a algum filme pornográfico ao lado de uma mulher de
sexualidade inativa. Ele poderia ter uma idade similar à minha, ou talvez ser
ainda mais novo. Pensar desse jeito faria qualquer pedófilo desistir de suas
intenções.
Por isso, como cada um deles, desisti de
meus pensamentos.
—Imagino que esteja. Ou será que consegue
fazer um quatro?
Ela sentiu-se desafiada. Levantou-se
derrubando copos e uma garrafa no movimento. Teve dificuldades em parar de pé,
cambaleou no lugar. Depois escorou-se na mesa com as mãos, tentou levantar as
pernas, em vão.
Sentou-se novamente, exausta.
—Sei fazer algo melhor do que isso
—sussurrou, as bochechas coradas, a língua para fora dos lábios.
—O que é? —Mostrei uma falsa curiosidade.
—Sei fazer de quatro.
Respirei fundo, entediado com aquela
conversa. Alguém abaixo de minhas calçadas me mandava um aceno. No meu cérebro,
anjo e demônio travavam uma guerra eterna nas escolhas, mas, como há de ser,
somente um deles a venceu.
E eu a tirei dali, postando-a no meu
carro enquanto recebia um sexo oral com cheiro de álcool e gosto de juventude.
Encostei a um canto qualquer, no escuro.
Era um beco de uma rua nada movimentada. Tirei-a do carro, joguei seu corpo
contra uma das paredes, tirei suas roupas e sua vergonha, penetrei-a sem
hesitar. Ela gemia, eu bufava. A fricção era intensa, a respiração pesada e
densa, como quem respira numa neblina turva e fétida. Eu não tinha mais fôlego
para essas coisas.
Soltei seu corpo, que cedeu como uma
boneca sem vida, e ela vomitou nos meus pés. Os sapatos eram importados, mas
que homem se importaria com isso naquele momento? Eu tinha outros pensamentos,
pensamentos muito mais sedutores e atraentes. A mão estava num dos bolsos,
preparada para o clímax do tesão, para o desfecho guardado para todas as minhas
transas.
—Nós realmente podemos ficar aqui? —ela
perguntou, limpando os lábios. —Ouvi dizer que tem um assassino à solta...
Sorri, carinhoso, coloquei-a nos braços e
a levei para a escuridão.
Naquele momento, era como um pai,
carinhoso e atencioso.
—Fique tranquila, queridinha —e a
agarrei, borrado por orgasmo daquele momento que me fazia homem, me fazia vivo. —Essa notícia só vai importar à
sua família.
Quando a matei, ela não gemeu. Ela
chorou, mas estava anestesiada. Não sentia dor, prazer, nada. Sentia-se partir,
despedia-se do mundo. Calou-se na noite, no frio, e eu me regozijei pelo prazer
impactante que somente a morte pode oferecer.
Há
um assassino à solta.
Era o que diziam os jornais, mas eu sabia
que aquilo era uma mentira.
O assassino estava preso.
Mais preso do que qualquer um.
Resenha de Livro - Coisas Frágeis
Volto em outra resenha para reafirmar o que você, que acompanha o blog, sabe há tempos: sou um fã assíduo de Neil Gaiman.
Após a conclusão de Fios de Prata, do Draccon, encontrei em meu armário o primeiro volume de Coisas Frágeis, uma coletânea de contos do mesmo autor de Coraline, Stardust, Sandman e Deuses Americanos, e bom, nem preciso dizer que devorei o livro. Demorei pouco mais de dois dias para terminar as 205 páginas que nos levam acerca das histórias fabulosas trabalhadas por Gaiman, e ao concluir, a sensação é a de um vazio imenso. Existem histórias fantásticas, outras nem tanto, mas todas elas têm sua criatividade e originalidade, e claramente falando, todas elas fascinam. Gaiman é um poço de ideias, das mais insanas às mais agradáveis, das mais bonitas às mais traumáticas, e é isso o que faz de uma coletânea de contos de sua autoria a coisa mágica que foi Coisas Frágeis para mim.
O primeiro marco deste livro é saber que grande parte dos contos que se encontram em suas páginas não são novos, nem mesmo foram feitos para o livro propriamente dito. Quase todos eles compuseram um livro ou uma antologia distinta, e agora estão reunidos num mesmo livro, para facilitar a leitura. Alguns, como no caso de Golias, vêm de lugares ainda mais distantes, como o site do filme Matrix (o conto é um trabalho de Gaiman feito antes do lançamento do primeiro filme, e cá entre nós, não deixe nada a desejar!). Todos eles, no entanto, deixam suas marcas após a conclusão da leitura, e cabe a mim ressaltar apenas alguns, os mais marcantes na minha opinião.
Logo de início, em Um Estudo em Esmeralda, temos uma ambientação noir no maior estilo Lovecraft, ao mesmo tempo em que encontramos personagens cult, simpaticamente associados a Sherlock Holmes. Combinar os mistérios enrolados do terror lovecraftiano com as soluções lógicas e a sabedoria absurda do maior detetive de todos os tempos é um trabalho grandioso, unicamente disponível nas mãos de Gaiman. Em seguida, encontramos A Vez de Outubro, um conto produzido no intuito de preparar Gaiman para a escrita de O Livro do Cemitério (resenhado aqui no blog também), e nos deparamos com os meses do ao retratados na figura personificada de suas características. Em Lembranças e Tesouros, a narrativa em primeira pessoa do ponto de vista de um psicopata alucinado e de índole duvidosa nos faz enojar o personagem e seus atos, mas nos deixa apaixonados pelo cotidiano conturbado retratado pelo autor, que nos mostra mais uma vez que ele pode ser criativo e nauseante ao mesmo tempo. Como Conversar com Garotas em Festas deixa aquela sensação atípica de filmes do Steven Spielberg, mas Gaiman guarda o mistério apenas para si, e nunca saberemos se a festa se tratava de uma reunião de alienígenas ou coisas do tipo. Por fim, em O Monarca do Vale, os leitores de Deuses Americanos (também resenhado no blog) reencontram Shadow em mais uma aventura obscura com deuses e mitos.
Se preciso escolher um conto para indicar como ponto negativo na história, diria que era O Problema de Susan. Ele apresenta um final um tanto quanto desconexo, mas nem mesmo isso faz da história ruim. É que realmente me sinto no dever de indicar um conto como ponto negativo, já que faz parte da resenha mostrar as partes ruins também, mas enfim...
Se você procura o criativo, sem medo de ousar ou de inventar novas situações, Coisas Frágeis é um prato cheio! Lá você encontrará contos de diversos estilos, sempre banhados de humor negro, cotidiano e fantástico entrelaçados e uma leve pitada de obscuridade. Este é Neil Gaiman, sempre gênio, sempre ilustre, e cá entre nós, não vejo a hora de adquirir o segundo volume da coletânea para desbravar novas ideias desse autor fabuloso.
domingo, 23 de dezembro de 2012
Resenha de Livro - Fios de Prata
Não é de hoje que conhecemos Raphael
Draccon por sua criatividade e seus trabalhos fantásticos. Desde que se uniu à
Leya, a editora cresceu bastante, seja pelo sucesso iminente da trilogia
Dragões de Éter, seja pelas vendas elevadas de Game of Thrones. Entretanto, até
então, nenhum dos trabalhos do autor tinha me chamado tanta atenção quanto este
último, disponibilizado na Bienal do Livro de 2012, com o título chamativo de
Fios de Prata – Reconstruindo Sandman.
O novo romance de Draccon trata de um
tema impossível de se tornar clichê: sonhos. Muita gente já narrou histórias
sobre sonhos, inclusive Neil Gaiman, com o grande trabalho de Sandman, o
quadrinho adulto mais badalado do mundo, mas todas essas histórias sempre têm
sua originalidade. Quando tratamos de sonhos, podemos ser o que quisermos,
escrever sobre tudo e sobre todos. Nada é fantasia o suficiente para o Sonhar,
e foi assim que Draccon fez de Alejjo, o jogador mais caro do mundo, um
guerreiro sonhador conhecido como O Santo, portador de uma Masamune e da luz
que ilumina o inferno, sem que isso parecesse impossível ou inviável.
Acompanhando Mikael Santiago, um jogador
brasileiro prestes a fechar negócio com um clube francês no que pode ser a
transição futebolística mais cara do mundo, vemos o nascimento de sua paixão
platônica por Ariana, a nova Daiane dos Santos da ginástica olímpica, capaz de
saltos ainda mais incríveis. Enquanto os dois se envolvem, os Planos dos Sonhos
desenrolam uma guerra de proporções épicas pelo Sonhar, onde três deuses e o
Anjo dos Sonhos têm de defender seus domínios, cada qual à sua maneira, para
evitar o caos.
Neste cenário fantástico, Draccon abusa
das referências e citações, deixando transparecer diversas similaridades com
enredos de outros autores, famosos ou não, e citando-os muitas vezes em
diálogos e passagens no sequenciamento das descrições. O cenário se prova
pensado para apresentar-nos uma visão artística dos sonhos e até mesmo do
Inferno, e muito agrada nas apresentações. Ainda existem descrições grandes
demais e paradas cinematográficas que, em primeiros instantes, agradam, mas
logo se tornam exaustivas, porém nada disso tira o gracejo e o agrado que o
romance tem.
Para aqueles que admiram tais histórias,
em especial o famosíssimo Sandman de Gaiman, Fios de Prata é um livro que muito
agradará. Ele tem o seu modo de narrar os sonhos e os acontecimentos
desencadeados por estes, numa nova apresentação, num novo mundo imaginário, com
deuses e criaturas incríveis! A leitura anima, mesmo que os mistérios não sejam
grandes o suficiente para lhe deixar empolgados com as revelações, e as cenas
de batalha são bem descritas, bem como as passagens de diversas pessoas em
situações cotidianas (atípicas ou não) ao redor do mundo, passagens essas que
se alteram (ou não) de acordo com os acontecimentos da guerra que ocorre no
Sonhar. Fica a dica para os amantes da fantasia urbana e medieval, e também
para aqueles que deleitam-se nos roteiros sonhadores e sem limites. Com tantos
personagens marcantes e uma história de planejamento ímpar, Draccon consegue,
nas 350 páginas de Fios de Prata, nos cativar com uma história tão bela, senão
ainda mais bela (no que eu carinhosamente aposto), que sua série anterior,
Dragões de Éter.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2012
Conto - Pesadelos Surreais
Pesadelos
Surreais
Eram ruas cinzentas, aquelas. Ruas por
onde ninguém caminharia.
Ninguém além daquele homem.
Ele era pouco mais que uma silhueta no
asfalto surrado de uma rodovia gélida e silenciosa. O vento soprava melodioso,
e junto dele, o homem assoviava. A música era um blues antigo, rítmico e
sonoro, de certo modo agradável. A mente era tão antiga quanto a música, talvez
mais; o corpo era jovem, mas não era o dele próprio.
—Por quanto tempo pretende andar?
A pergunta veio de uma criança, um garoto
de cabelos desajeitados e olhos felinos, claros e soturnos. Ele se escorava a
um fio elétrico que nascia e morria num único poste daquele caminho eterno.
Tinha, nas mãos, o barbante maltrapilho de um peão, brinquedo há muito
esquecido pelas crianças da realidade.
Mas aquela não era a realidade.
—Por quanto tempo for necessário —respondeu
o homem. Os mantos escuros sacudiam ao vento, bem como os cabelos rebeldes e
longos. Suas sobrancelhas eram mais escuras que a noite, quase igualadas a seus
olhos, que de tão negros sombreariam o universo, se houvesse um universo para
sombrear. Ele falava como um cantor pop dos anos 60, uma voz grave e única,
disposta a vencer concursos de jovens talentos da mídia convencional.
—Talvez você não tenha todo esse tempo —zombou
o garoto, sem deixar sua posição. Ele enrolava o barbante no peão, como as
regras mandam. —E então?
—Então eu vou continuar a andar.
E ele continuou a andar, inquieto.
O garoto o observava. Ele andava, andava
e andava mais, mas o poste ainda estava ali, inerte, e o garoto sentado sobre
ele, escorado aos fios, brincando com seu peão.
O brinquedo girou no chão ate perder as
forças e quedou. Voejou no vento seco e desértico até retornar às mãos do
menino do poste de eletricidade.
—Por que está procurando por ele? —perguntou
o garoto, e o homem suspirou, impaciente.
—Porque eu quero —com rispidez
desnecessária numa resposta direcionada a uma criança. —Vai me encher até que
eu o encontre?
—Claro que não. Vou te encher enquanto tiver
forças para caminhar. Você nunca o encontrará. Não está preparado. Ninguém
está.
—É o que veremos.
O homem de preto seguiu, trilhando seu
caminho. Atrás dele, um peão girava.
Ronald estava sem sorte aquela tarde.
Tomara chuva durante o trajeto feito de
motocicleta, pouco mais de quatrocentos metros, mas isso enxaguara todo seu
smoking recentemente comprado para reuniões como aquela. Chegara atrasado à
sala onde o grupo se sentava, esperando somente por ele, fora apontado como um
descrente do crescimento evolutivo da empresa em que trabalhava. Quase perdera
o emprego quando espirrou em meio às palavras do Sr. Coats, o velho diretor que
planejava investir nas ações da Carmim Laugh, uma das mais jovens e bem
sucedidas indústrias de cosméticos de Nova York.
Ronald pôs tudo a perder, e seu chefe o
fuzilava com os olhos. Ele sabia que, caso algo desse errado naquela reunião,
seu emprego correria um imenso risco de inexistir.
—Eu lhe disse para não se atrasar dessa
vez, senhor Smith —disse o velho Connor, presidente da Carmim Laugh e exemplo
de patriotismo. Vestia-se no elegante e costumeiro cinza da alta sociedade, mas
sempre havia algo em seu corpo que o recordaria das cores da bandeira
americana. Naquele dia, o cinto que ajustava suas calças tinha as estrelas da
bandeira nacional. —Sei que a chuva é um empecilho atípico e temporal, mas isso
não justifica sua entrada desastrosa na sala de reuniões.
—Eu sinto muito, Sr. Connor —foi tudo o
que Ronald pôde dizer, e pareceu o suficiente, pois o velho se ausentou,
deixando que o intervalo da reunião parecesse mais uma pausa momentânea para a
respiração.
Ronald buscou nos bolsos do paletó uma
barra de cereais e a mastigou, lembrando de que aquele seria seu café da manhã,
deixado para trás em virtude do atraso. Jogou a embalagem no lixo que dizia Plástico e se aproximou das janelas do
décimo primeiro andar daquele edifício colossal, de onde ele poderia avistar quase
toda a extensão de sua cidade. Era óbvio, ele sabia, que aquela visão não
mostraria Nova York como um todo. Ronald duvidava que a visão alcançada por um
helicóptero seria capaz de apresentar a metrópole americana por inteiro, mas
estava satisfeito com a imagem periférica dos prédios e das residências onde
inúmeros cidadãos norte-americanos viveriam suas vidas pacatas, tomados por
luxúria desnecessária e eternamente acompanhados por gorduras localizadas
dignas de provadores de Mc Donalds.
—Ronald.
Alguém chamou, mas Ronald ainda pensava
nos gordinhos das famílias lá embaixo.
—Sim? —sem se virar.
—A reunião vai começar.
Era uma das secretárias num alerta, e ele
estava atrasado outra vez.
—Só um instante.
Jogou o restante de sua barra na boca e
mastigou, apressado. Ajeitava o terno com as mãos desengonçadas quando
percebeu, no exterior do vidro, uma movimentação estranha.
Olhou o relógio no pulso: 11 de setembro.
Que data emblemática, não?
O World Trade Center tremulou no lugar
quando o primeiro dos aviões atingiu a torre ao lado de onde Ronald se
encontrava, e o pânico se instaurou. Gritaria e caos se espalharam por todos os
corredores enquanto as pessoas tentavam desesperadamente abandonar seus
pertences para trás e fugir, descer as escadas e os elevadores, na esperança
póstuma de sobreviver àquele atentado terrorista.
Não Ronald. Ele não estava sequer
desesperado.
Estava assustado, sim, mas não devido ao
fato de aviões alvejarem as torres gêmeas, marco da metrópole estadunidense. O
que o assustava era se recordar que, pela manhã, quando acordara atrasado,
Ronald tivera um pesadelo. Ele via aquela imagem, aquela mesma imagem que via
pela vidraça de um dos andares daquele prédio, um tanto turva pela reprodução
do subconsciente. Mas era aquela imagem mesmo, tivera certeza assim que a viu.
Era um deja vu, uma reprise de um
sonho catastrófico.
Desde que deixara sua casa, Ronald sabia
que ia morrer.
Ainda assim, ousou contrariar o aviso de
sua mente. Era apenas um sonho, não era?
Quando sua torre desabou, Ronald se
arrependeu de não acreditar no que sonhava.
Não gritou.
O homem de preto continuava a caminhar.
A paisagem ao seu redor era desértica,
assolada por cactos, árvores ressecadas e cadáveres de animais já em
decomposição. À frente, no horizonte, nada além do calor e do solo trevoso e cicatrizado
de costume. Atrás, um caminho similar, senão idêntico, àquele em que ele se
encontrava no exato momento em que olhava para trás.
Ao lado, um poste de eletricidade, e
sobre ele um garoto inconveniente.
—Está calor, não?
Ele não respondeu.
—Eu não gosto de calor —continuou o
garoto. —O sol parece um castigo divino para todas as merdas que a humanidade
já fez. É como uma prega fincada na testa de um infeliz pecador. Se todos somos
pecadores, todos vão contar com a mesma prega na testa. Alguns em outros
lugares, talvez, mas o sofrimento é parecido.
Silêncio.
—Acho que você deveria conversar.
Ajudaria a passar o tempo infinito que você vai ficar andando por esse lugar.
O peão girou atrás do homem de preto até
perder as forças e quedar, e então voejou outra vez.
—Você gosta de peões? —perguntou o velho.
—Só desse. Ele gira bem rápido, tão
rápido que eu quase posso sentir o vento.
—Me empresta aqui.
O menino fez que não com a cabeça.
—Nunca, nunquinha mesmo! É um tesouro,
sabe? Ele tem uma magia que só eu posso usar. É como um sonho de verdade.
—Tudo aqui é como um sonho.
—Menos os furacões. Os furacões são bem reais.
O homem franziu o cenho, sem entender.
—Vou te mostrar.
Erguendo as pernas sobre os fios de
eletricidade, o garoto usou os dois braços para enrolar o barbante com
agilidade sem igual e, num movimento felino, girar o peão com uma força
incomparável. O brinquedo tocou o solo com a ponta metálica e girou, girou e
girou, e a areia começou a se mover ao seu redor, agrupando-se acima dele. Ele
girava tão rápido quanto um tufão, e logo deixou de ser um peão para se tornar
um pequeno ciclone, e então um olho de furacão.
O vento cessou, sem forças, e o peão
tombou ao solo mais uma vez.
—Viu?
Ele não parecia surpreso.
—Legal. Bem legal, na verdade.
—Tem muita coisa que eu posso fazer.
—Então me leve até ele.
O menino engoliu em seco.
—Isso eu não posso. Mais alguma coisa?
—Só fique quieto. Vai ajudar.
Ele se calou.
Por alguns minutos, ao menos.
—Por que quer encontrar o Sonho?
—Por que todo mundo deseja encontrá-lo?
O garoto deu de ombros.
—Satisfação pessoal? Talvez um desejo
íntimo. Se for um desejo, já te aviso, ele não é um gênio ou um djinn. Ele
molda a realidade, mas não adianta ficar esfregando a lâmpada. Não vai
funcionar.
—Eu não quero um desejo.
O que era estranho.
—Então o que quer?
Pensou por um instante.
—Vingança.
—Vingança? Quer se vingar do Sonho? Mas o
que ele te fez? O que ele fez para que a sede de vingança nascesse em seu
coração gélido, homem de preto?
Ele caminhou alguns passos antes de
responder.
—Ele não fez, na verdade. Meu sonho não
se realizou.
—E qual era o seu sonho?
Silêncio.
—O mesmo que o dela.
As lembranças machucavam como estacas.
O vento aumentou, soprou areia para todas
as direções. O calor era escaldante, mas o homem de preto não parecia se
incomodar, mesmo vestido daquela maneira desconfortável e calorosa.
—Que seria?
—Cale a boca.
—Que seja.
De sobre o poste de eletricidade, o
garoto girou o peão mais uma vez.
Ele rodou e rodou, então cambaleou no
lugar e, sem forças, caiu.
Marcelo era um grande jogador de futebol.
Não era bonito, mas tinha sua lábia, e
isso garantia sorte no amor. Talvez não no amor propriamente dito, pois o amor
da atualidade se encontrar disperso nas bandeirolas de escanteio de uma boate
qualquer, mas no amor do presente, aquele amor momentâneo de um beijo e um
tchau. Ele tinha lábia, e também tinha dinheiro e um carro atraente, e algumas
mulheres só precisam de uma dentre essas três características para se
interessar por um homem.
Eram mais de meia-noite e ela ainda não
estava lá. Marcelo não gostava de esperar. Ele fazia os atacantes esperarem por
seus passes; mulheres não o faziam esperar. Sentado no balcão de uma casa
noturna, terminou sua bebida e, quando pensou em se aventurar na pista de dança
em busca de uma garota interessantemente idiota, ela chegou.
—Como vai o meu jogador favorito? —perguntou
Rúbia, os cabelos tingidos de escarlate, as unhas e as sobrancelhas em
diferentes tons de vermelho.
—Com fome —respondeu Marcelo, e sorriu,
largando-se num beijo de falsa paixão. —Pensei que não viria.
—Eu tive contratempos, digamos assim.
—Outro cliente?
Rúbia era uma garota de programa. Uma
prostitua, pode-se dizer. Vendia o corpo, ou melhor, alugava-o, como costumava
dizer, para divertir homens que não possuíam a capacidade de se virar sozinhos.
Ela sabia que Marcelo sabia se virar, mas Às vezes ele tinha preguiça.
Na verdade, ele gostava dela.
Muitas vezes antes, oferecera a ela dinheiro
para que abandonasse aquela vida, mas você sabe como é, uma vez mosqueteiro,
sempre mosqueteiro. Ninguém abandona o dinheiro que vem fácil quando se
acostuma com ele. Essa é a lógica dos humanos.
—Quem dera. Minha mãe.
—O que ela tem?
—Ela tem que se ferrar, isso sim. Mas
enquanto a vida não a leva, a sífilis vai denegrindo sua castidade.
Beijaram-se, entre risos e provocações, e
Marcelo achou mais certo sair logo daquele lugar.
—Que tal acelerarmos o processo hoje? —sugeriu
ele. —Podemos ir para um lugar mais tranquilo, sabe.
—Vai me levar para assistir um filme?
—Claro. Um pornô sobre um galanteador de
coxas torneadas e uma prostituta com lábios inchados.
—Eu não tenho lábios inchados!
—Quem disse que estava falando de você?
Eles acertaram a conta e saíram da boate.
Estava uma noite agradável lá fora, com uma garoa serena e uma brisa cheirando
a narcóticos e vinho. Marcelo abriu a porta de sua caminhonete para que Rúbia
entrasse, e ela agradeceu com uma mesura. Quando ele deu a volta no veículo
para direcionar-se ao sexo oral mais categórico de São Paulo, viu as luzes.
Duas imensas e esféricas luzes, que na
verdade nem eram tão imensas assim. Faróis de um Chevrolet desgovernado,
acelerado demais, perdido demais, pilotado por um jovem alcoolizado e
transtornado com a namorada que perdera na noite anterior.
Aqueles olhos de luz gargalhavam à frente
de Marcelo, e ele engoliu em seco.
Era exatamente como o sonho que tivera
todas as noites naquela semana.
Rúbia ajeitava a lingerie translúcida por
sob o vestido carmim quando ocorreu o impacto. A janela ao seu lado se destruiu
conforme o corpo de Marcelo era esmagado, e ela quase engoliu o batom que tinha
próximo dos lábios. Ela chorou, sim, mas antes de sair do carro e gritar para a
polícia, guardou a carteira do jogador dentro de seu sutiã, deixando os
documentos caídos no banco de trás.
—Você sabe que ele vai te matar, não
sabe?
O menino insistia. O homem mantinha-se
calado.
—Não vai mesmo desistir de andar?
—Não.
O peão caiu de sua mão, sem girar. O
barbante se desenrolou, sacudido ao vento como uma madeixa rebelde dos cabelos
do sol, o mesmo sol esférico e nauseante que incinerava os pensamentos acima
das nuvens.
—Talvez você o vença na persistência.
Nunca é uma boa hora para desistir, não é? Foi o que eu ouvi por aí. Mas também
ouvia as pessoas dizerem que é sempre uma boa hora para mudar de ideia, desde
que a nova ideia dê mais dinheiro. Agora não sei no que acreditar.
O homem de preto bufou, silenciado.
—A sua mulher morreu?
—É. Ela morreu sim. Por que?
—Ei, calma aí, cara! Eu só estou tentando
manter uma conversa agradável com você, não percebeu? Você devia me agradecer!
Se estivesse andando desse jeito sem me ouvir, já estar louco.
—As chances de eu enlouquecer ouvindo
você são bem maiores, moleque.
A paisagem não mudava nunca. Ainda desértica,
ainda tomada por cactos e galhos ressecados, ainda coberta de areia e terra
disforme. Ainda quente, muito quente, como um inferno escaldante, um caldeirão
borbulhante ou uma frigideira fritando batatas.
—A Terra dos Sonhos é proibida para os
mortais —contou o menino. —Se eles entram aqui, desafiam diretamente o Senhor
dos Sonhos, e ele não costuma ficar feliz quando é desafiado. Ele até gosta,
sabe? É divertido matar pessoas, ainda mais quando não se tem o que fazer por
séculos. Mas ele nunca fica feliz ao ser desafiado.
—E aí ele manda um moleque infernal para
atazanar a vida dos invasores, acertei? —explodiu o homem de preto. —Eu tô
cansado de você, criança! Por que não desce desse poste pra que eu quebre logo
o seu pescoço? Facilitaria bastante as coisas! Eu só queria andar aqui, na
minha, ouvir o silêncio um pouco, acho que deixaria as coisas mais calmas! Tipo
um tratamento psicológico, sabe? Você cala a boca, eu calo a boca, e vivemos
felizes para sempre. Topa?
O barbante escapou das mãos do menino,
deslizando junto do vento para bem longe do homem de preto. Ele voejou, voejou
e desapareceu no horizonte atrás dele, reaparecendo na parte da frente, como se
trespassasse o mundo todo em um único instante.
—Viu só? —disse o menino, ignorando a
fúria iminente do homem de preto. —Eu disse que você cansaria de andar e não
chegaria a lugar nenhum.
Num movimento rápido demais para ser
visto, o homem tirou do cinto uma pistola velha. Uma garrucha, na verdade,
coberta de pólvora e de ferrugem. Ele a carregou com uma das mãos e, sem fazer
mira, disparou na direção do garoto, atingindo sua testa, que sangrou num
orifício assustador.
—Eu pretendia guardas as munições para o
Senhor dos Sonhos, insolente, mas eu não aguentava mais a sua voz irritante.
Caminhando, o homem de preto pisoteou o
corpo do garoto, que jazia inerte no chão, sobre uma poça de sangue. Ele
continuou a caminhar, sem olhar para trás, e uma hora se passou sem que o corpo
do menino desaparecesse naquele rumo improvável.
—Ei —disse ele, já morto.
—Você morreu, merda. Será que nem assim
pode ficar quieto?
O garoto se levantou e limpou as roupas.
Pegou do chão o seu peão e o barbante. Enrolou-os.
—Eu juro que, enquanto brincava, tentei
te avisar —disse ele.
—Do que está falando?
O ferimento em sua testa se fechou, e uma
língua asquerosa cuspiu a munição no asfalto fumegante.
—Eu não gosto de ser desafiado.
Ikari estava se sentindo azarado demais.
Em uma semana de ensino médio, quebrara
um pé, perdera o celular e ainda conseguiu ficar com a pior nota de sua classe
toda. Isso, para os pais japoneses, era uma vergonha sem tamanho, e ele
aguardava sua recuperação em casa deitado, com o pé enfaixado sobre a cama, jogando
seu eletrônico portátil ao invés de estudar. Diferente dos demais estudantes
que o acompanhavam, Ikari não se incomodava com qual universidade o aceitaria.
Qualquer coisa estava bom. Na verdade, se não fosse aceito, seria ainda melhor.
Ikari gostava dos jogos.
Desde pequeno se apaixonara pelos jogos
eletrônicos. Perdeu vidas e mais vidas nas fases aquáticas de seus games
favoritos, desbravou masmorras nas histórias medievais e enfrentou presidentes mesquinhos
em roteiros mais modernos, viajou por multiversos infinitos na ficção
científica. Só esqueceu que, além de tudo isso, havia uma vida para ser vivida.
Ele tinha de estudar, tinha de ser alguém. E, se tinha que ser alguém, queria
ser um programador.
Afinal, para um apaixonado por tecnologia,
nada melhor do que produzir o que ele mais gostava de ter em mãos.
Estudou sozinho, e aquele era seu
fascínio. O vício garantiu que ele usasse óculos aos onze anos e tivesse dores
de cabeça constantes durante todo o ensino fundamental, mas ele suportou tudo
isso, bem como o bullying dos valentões das escolas que frequentou, para que
pudesse ser alguém na vida.
Agora, perto de concluir o ensino médio,
Ikari ainda não era ninguém, e não tinha tanta certeza se, algum dia, seria.
Ele não dormira bem na noite anterior. Na
realidade, não dormia bem durante a semana toda em que o azar lhe perseguia. Os
pesadelos atrapalhavam seu sono sempre que ele precisava descansar, e já era um
costume acordar suando frio com sonhos terríveis. Não eram sonhos de um adolescente
comum, em que ele se vê sozinho, perdendo a família num acidente de carro ou
coisa assim.
Eram sonhos em que ele morria, e não
havia nada pior do que isso para Ikari.
Seus pais estavam trabalhando quando
começou. Ele estava quase conseguindo um novo recorde naquela música que exigia
de si uma concentração abusiva quando um dos livros de sua prateleira de Como Desenvolver Seu Próprio Jogo caiu,
a capa para cima, deixando a gravura ilustrativa de um teclado e uma xícara de
café à mostra. Ikari estranhou, mas não havia demais. Depois de tantos filmes
de fantasmas e aberrações, um livro caindo não era nada de assustador.
Mas então caíram outros dois, e logo mais
cinco, e então a prateleira toda desabou sobre sua cama.
Era um terremoto.
Ikari queria gritar. Queria chorar,
clamar por sua vida, exigir dos deuses uma nova chance, mas nada fez. Ele ainda
tinha o pé quebrado, e sua muleta ficara no térreo da casa, muito longe do alcance
de seus braços. Ele não aceitou a morte assim, tão fácil, mas também não fez
nada para evitá-la. No fundo, sabia que ela viria, ainda que não acreditasse em
vislumbres.
Os sonhos o avisaram, mas ele fingiu não
ver.
A casa oscilou, coberta por rachaduras,
quase desistindo de se manter em pé. Ikari fechou os olhos logo após terminar
sua música favorita daquele jogo. Não conseguira um novo recorde, o que era uma
pena.
Antes da casa toda ruir, Ikari achou que
tinha azar demais para uma única pessoa.
Na verdade, achava que era azar demais
para uma vida só.
O homem de preto disparou outras cinco
vezes, descarregando sua garrucha.
O Senhor dos Sonhos apenas sorria.
—Eu sempre me interesso pelos homens,
sabia? —contou ele, caminhando com o sangue a escorrer dos braços e do rosto. —Eles
não têm poderes, mas têm virtudes muito maiores. Por exemplo: eles podem
adquirir conhecimento sobre quase qualquer coisa. Inclusive sobre outros
planos, veja só! Você veio atrás da Terra dos Sonhos, e cá está, pisando nela.
Não é incrível?
O homem de preto arremessou seu revólver
na direção do garoto, mas ele o atravessou, como faria a um espectro ou a uma
projeção holográfica.
—Eu só queria que a minha mulher
sobrevivesse, seu monstro! —gritava o homem de preto. —Ela tinha um sonho...
Todas as noites, toda merda de noite ela sonhava com um velho que lhe oferecia
uma nova chance. Ela aceitava, dizia que queria continuar, que queria tentar
outra vez. Então ele... Então você ofereceu um acordo para ela. Você pediu a
nossa filha, a nossa linda filha, e ela aceitou! Eu aceitei! Queria ficar do lado
dela, mais do que tudo! Mas quando a nossa filha se foi, a minha mulher morreu,
e junto dela todos os sonhos se foram.
Ele respirou fundo. Lágrimas corriam por
suas bochechas imundas.
—Você nos enganou —disse, por fim, e
havia um rancor obscuro em seus olhos.
—Eu nunca enganei ninguém, meu jovem. Eu
pedi a filha de vocês para que ela tivesse uma nova chance, e ela teve. Um novo
dia nasceu, e ela poderia sobreviver. —Uma moeda surgiu em sua mão, sem brilho
algum. Não parecia com uma moeda de qualquer região que o homem de preto
conhecera. —Ela dependeu da sorte. Cara ou coroa. —Ele jogou a moeda para cima,
girando, então a agarrou outra vez com as mãos. —Infelizmente, não deu certo.
Olhe só! Essa moeda tem duas caras.
—Seu filho da mãe!
O homem de preto avançou sobre o Senhor
dos Sonhos, e aquele crime era o pior de todos. Ele caiu, acorrentado nos
braços e nas pernas, e foi arrastado no deserto por mais de cinquenta metros.
Preso, foi suspenso nas alturas pela mágica do Sonho, e o Senhor dos Sonhos o
observou, incrédulo.
—Eu gostei tanto da sua determinação,
pequenino —disse ele. —Quase cogitei a possibilidade de que se juntasse a mim.
Aliás, para ser sincero, ainda a cogito. Mas não agora. Não ainda.
—Eu nunca me juntaria a você, maldito!
A boca que praguejava era a mesma boca
que vomitava sangue.
—Óbvio que não. Você ainda não conhece a
morte, e é ela que eu vou lhe apresentar. Vai conhecê-la muitas vezes, até que
se torne tão íntimo da morte quanto da loucura. Assim, quando engolir cada
fagulha de seus atos medíocres, você vai voltar. Rastejando. E vai me pedir
ajuda. Vai me pedir perdão.
O Senhor dos Sonhos caminhou até o homem
de preto. Em suas mãos, surgiu um miúdo punhal curvilíneo, de prata fosca.
—A primeira de suas mortes virá por
minhas mãos, mortal —alertou o Senhor dos Sonhos. —E você vai sonhar com ela.
Vai ter pesadelos com todas as suas mortes. E isso vai doer mais do que morrer.
Assim, quando as palavras do Senhor dos
Sonhos terminaram, o homem de preto se viu morrer. Ele era apunhalado na altura
do peito, e seu corpo era aberto como uma casca de banana, igualmente frágil,
igualmente dispensável. Abriu os olhos, suava frio.
Encontrou os olhos do Senhor dos Sonhos,
e nele não havia piedade alguma.
O punhal trespassou sua carne, e ele foi
partido ao meio.
A dor da morte era grande, mas não tão
grande quanto a dor do pesadelo que a antecedia. Não era nada se comparada à
dor de existir sabendo que a morte é seu destino, sua sina, seu castigo, todas
as vezes, todas as vidas.
Marcos sonhou com uma corda pendurada
numa árvore, e lá estava seu corpo, enforcado.
Acordou assustado, trêmulo. As pernas se
recusavam a obedecê-lo. Levantou-se com dificuldade, tomou um gole de água
fria. Ainda era madrugada quando ele olhou para o relógio da sala e viu, além
das horas que procurava, a fotografia da esposa assassinada na noite anterior.
Aquele dia lhe pareceu extremamente
agradável para morrer.
Conto - Paradoxo
A água do chuveiro quedou gelada, similar
a uma cachoeira. Ela levou consigo suor, lágrimas e problemas, mas ele via
apenas a sujeira partir.
Não soube por quanto tempo ficou ali,
cabisbaixo, com os olhos fixos nos azulejos brancos de texturas elegantes, sob
as águas da cachoeira artificial que improvisara para lavar a alma. Soube
apenas que, qualquer que fosse o tempo, não se sentia de alma lavada. Sentia-se
com frio, sim, e limpo, cheirando ao sabonete que ele sequer se lembrara de ter
usado. Um banho demorado que o fez rejuvenescer, mas não esquecer o que aturdia
seus pensamentos.
Enquanto se enxugava, seus olhos
brilhavam, marejados. Brilhava, também, a prata circular em seu anelar direito,
simplória e barata, mas de simbologia extremista, uma importância que o ouro de
um colar não teria. Ele a admirava vez ou outra, quando sozinho. Quase sempre
estava sozinho, pensou. Quase sempre a admirava.
Ali havia um nome de poucas letras, e uma
data de poucos números. Coisas com poucas
coisas, mas de muito significado.
E, vez ou outra, era aquela
circunferência de joalheira que o fazia se recordar de que havia uma
companheira do outro lado da linha telefônica. Ele não estava solteiro. Não
sentia falta da vida de solteiro, muito pelo contrário. Odiava aquela vida.
Recordar-se dos dias em que se sentiu sozinho, em que se viu no berço das
aventuras e assistiu a perdições, era um terror como poucos filmes seriam.
Por isso, lembrar-se de que havia alguém
do outro lado da linha lhe dava uma segurança sem tamanho. E também medo.
Medo de que aqueles dias voltassem.
Livrou-se das gotículas d’água para
vestir o pijama. Não se arrumava para o mundo; banhara-se por ansiar pela água
que, promessas diziam, limparia sua alma. Ainda que estivesse limpo e
perfumado, não se sentia limpo como
desejava. Ainda pensava aquelas coisas. Ainda tinha os mesmos medos.
Deixou as roupas sujas para lavar,
pendurou sua toalha onde ela poderia secar e ser reutilizada no dia seguinte.
Antes de deitar-se em sua cama, bateu os dedos contra as teclas do celular.
Nada.
Sentiu vontade digitar algo. Ele sempre
digitava alguma coisa. Sempre escrevia linhas e mais linhas do que ela já
sabia, do que ela talvez se cansasse de ler e escutar. Mas ele sempre escrevia.
Escrevia o que pensava, o que precisava escrever, e que fossem coisas
repetitivas, mas eram sinceridades abusivas que deveriam ser ditas a todo
momento. Ou não. Mas a sua mente dizia que sim, que ele deveria dizer, que
deveria lembrar ao mundo todas aquelas palavras. Então ele escrevia.
Parou de pensar quando percebeu que já
havia escrito as mesmas coisas.
Apagou a mensagem sem enviar. Não queria
ser um incômodo. Não queria ser inconveniente.
Sentia saudades, sim.
Queria que ela também sentisse.
Sabia que ela também sentia, claro, mas as
coisas não são assim tão fáceis de aceitar. Ele nunca duvidava do que ela
dizia. Ele só sentia falta dela, do seu sorriso, da sua presença. Ouvia a sua
voz, conversavam pelo celular, viam-se pouco. Quando se viam, às vezes,
brigavam. E ele se sentia um tremendo idiota por perder o tempo que tinha ao
lado dela, o pouquíssimo tempo que tinha ao lado dela, com bobagens. Mas ele
era um homem, e ela, uma mulher, e humanos como tal, imperfeitos. Errôneos.
Errados. Então, como tem de ser, eles brigavam. E ele sentia saudades dos
beijos dela, e tinha horas do lado dela, e às vezes essas horas passavam rápido
demais. Elas sempre passavam rápido demais, na verdade. Ao fim, despediam-se
com um beijo apaixonado, ou rápido e necessário, alguns dias. Ele ia embora para
sua casa, e ela ficava na dela, distantes. Talvez na mesma distância que tenham
estado quando lado a lado, pensava ele. Por bobagens. Por asneiras.
Por culpa dele.
Por culpa dela também, claro. Mas a culpa
maior era sempre dele.
Era o que ele achava, e talvez fosse
verdade. Que diferença faria? A culpa não tinha de ser atribuída. Não era um
troféu a ser entregue. Ela estava ali, pairando ao vento, disposta a ser
abraçada por quem desejasse. A tolice dos homens é sempre abraçar a culpa, e
assim se martirizar, sem deixá-la para trás.
Ele era exatamente assim.
Tolo.
Homem.
Deitou-se, fechou os olhos. Não tinha
sono, e sabia que não dormiria. Tinha fome, mas não tinha vontade de comer. Às
vezes era o contrário. Às vezes ele tinha vontade de comer, mas não tinha fome.
Às vezes ele dormia, mas não tinha sono.
Mas ele sempre a amava.
De olhos fechados, pensou em como era bom
estar apaixonado. Pensou, também, em como tudo aquilo era estranho. Era como
caminhar numa corda-bamba, trilhando um caminho perigosíssimo na direção de uma
recompensa inimaginável. A corda, disposta na extensão de duas montanhas,
carregava-o na mais leve das brisas para os dias mais felizes que ele tinha em
sua vida. A cada travessia, a cada vez que ele superava as dificuldades de
rumar por aquele trajeto de perigo iminente, era recompensado por sorrisos, por
alegrias infindáveis, por uma paixão envolvente e eterna, por mais que o eterno
também tenha fim àqueles que não vivem para sempre. A cada travessia, no
entanto, sentia-se mais desconfortável por percorrer aquele mesmo caminho, por
afrontar os mesmos problemas, os mesmos temores. A queda era um pavor, e ela
seria o fim. Ele não queria o fim. Ele não queria cair. Queria atravessar
aquela corda, alcançar a sua amada, abraçá-la, dizer que a amava, que viveria
por ela. Então fazia tudo isso. Depois voltava, e lá estava ela, do outro lado
da corda. Sem pestanejar, ele atravessava novamente, e novamente e novamente.
Percebeu que seu rosto estava molhado.
Colocando as mãos sobre os olhos, viu-se
chorar. Não soluçava, não engasgava aos prantos. Chorava no silêncio de seu
quarto, como aprendera a chorar para que não o notassem. Sua vida toda fora
daquele modo: um desafio absoluto de não ser notado, de ser esquecido. Ele
gostava de ser notado, gostava de estar presente. Mas, mesmo quando tentava o
oposto, não surtia efeito algum. Deixavam-no de lado. Deixavam-no para trás. E,
quando ele ia à frente, ninguém o seguia. Alguns estavam lá, sim, mas todos
eles também tinham seus caminhos.
Talvez ele não fosse interessante. Sim,
era isso. Ele não era nada interessante. Não conversava sobre as coisas da
moda, não conversava sobre o que o mundo era para a maioria das pessoas. Era
simplesmente ele, como tinha de ser. Como todos tinham de ser.
Que bobagem.
Quem era ele para dizer como todos tinham
de ser?
Levantou-se, ainda com os olhos fechados,
abriu-os devagar. O relógio dizia que era tarde demais para um passeio de
motocicleta, mas ele não. Ele não dizia nada. Vestiu uma blusa que não
afastaria o vento frio, postou o capacete sobre o rosto umedecido pelas
lágrimas, ligou o veículo e saiu. Dirigiu por ruas que já conhecia, a noite o
acompanhava. A noite estava lá, companheira.
Mas ele estava sozinho.
Parou num lugar qualquer, tirou o celular
do bolso. Mentiu para si mesmo que olharia as horas, mas não era isso o que
desejava olhar.
Nenhuma mensagem, nenhuma ligação.
Nada.
As estrelas não estavam bonitas. Até
estavam, na verdade, mas ele não enxergava beleza alguma naquela noite. Ele não
a enxergava, e assim estava incompleto, vazio. Era só ele, como fora algum
tempo atrás, mas agora isso já não era o suficiente. Nunca fora, na verdade.
Nunca seria.
Ele precisava de alguém.
Precisava dela.
O semáforo tornou-se rubro, forçando-o a
parar. Não estava concentrado. Não sabia para onde seus instintos o guiavam,
mas deixava-se levado pela mente, sem impedi-la. Olhou a mão no acelerador, a
aliança cintilava no vermelho do sinal. Foi ela quem o avisou quando a luz se
tornou verde, mas ele não saiu do lugar. Alguém buzinou, e só então ele abriu
os olhos para o mundo. Anda logo, diziam, sai da frente!
Ele saiu da frente de todos. Deixou que
eles passassem, e ficou ali, seguindo devagar, assistindo enquanto todos
passavam.
Como fizera durante toda a vida.
A viseira erguida deixava que o vento lhe
acariciasse o rosto. Não era bem uma carícia, na verdade. Parecia mais uma
sucessão de socos impiedosos, de tapas de realidade, graças à velocidade
elevada. Não se via correr, mas corria. Era perigoso. A vida era perigosa.
Tão perigosa quanto uma corda-bamba.
Parou. Olhou ao redor para ver onde
estava. Era um lugar familiar, claro.
Era a rua dela.
Ficou ali, estático. Não queria estar
ali? Mentira. Claro que ele queria estar ali. Claro que ele queria estar com
ela. Ele precisava. Viu sua casa, tão
próxima, a campainha o chamou, mas ele ficou ali, inerte, assistindo sua
incompetência. E agora? Baixaria os olhos para a rua, engoliria o medo junto da
saliva seca e voltaria para sua casa para chorar sozinho? Parecia uma solução
aceitável. Agradável não, obviamente, mas aceitável. Muitas coisas se tornam
aceitáveis diante do medo da perda. Muitas coisas se tornam aceitáveis quando
você aceita que deseja fazer de tudo
por alguém.
Mas ele não foi embora.
Não saiu dali, não a chamou. Respirava
fundo, engolia o choro.
Sentia saudades.
O portão se abriu, rangendo. Era ela. A
mesma expressão, os mesmos olhos. Cabisbaixa, como ele, temerosa. Tristonha.
Linda.
Ele desligou a moto, desceu e tirou o
capacete. Ela viu seus olhos marejados, e ele viu os dela. Choravam sozinhos,
distantes. Nas mãos dele, o celular, sem mensagens, sem ligações. Nas dela, seu
aparelho telefônico, igualmente vazio. Ambos tomados pelo medo de incomodar,
pelo medo de atrapalhar.
O celular caiu ao chão, ele sequer
percebeu. Caminhou até ela como uma criança segue até os doces ou os
brinquedos, abraçou-a como se não houvesse um dia depois daquele. Abraçou
forte, mais forte do que deveria, mas ela não reclamou. Ficou ali, em seu
abraço, confortando-o com seus braços delicados, com sua pele macia e
perfumada. Ele deixou-se maravilhar naquele perfume, apaixonou-se outra vez,
como fazia todos os dias que a via. Fechou os olhos, viajou por infinitos
países das maravilhas, conheceu o infinito e viu seu fim, então voltou ao mundo
real, mas a realidade era boa demais para que ele acreditasse.
Sob a lua e as lâmpadas dos postes, duas
alianças brilhavam, unidas. As mãos também se uniram, os dedos se entrelaçaram.
Um estalo repentino fez de um instante um beijo, e de um beijo um instante. Um
instante duradouro, de minutos ou de horas. Um instante que ele queria que
durasse para sempre.
Mais tarde, já em sua casa, ele sorriu
sozinho. Deitou-se em sua cama, abriu os braços, cheirou suas roupas. Era o
cheiro dela. Ele amava aquele cheiro. Ele a amava.
Abriu as mãos sobre seus olhos, admirou a
aliança em seu dedo anelar. Ela estava arranhada demais, machucada demais. Como
ele. Como os dois, na verdade. Estava marcada por grandes feridas, por
lembranças boas e ruins, cicatrizes que não partiriam jamais. Ele desanimou ao
vê-la daquele modo, serena e frágil, gratificada por acertos e danificada por
erros.
Como eles.
E assim ele chegou à conclusão de que as
coisas estavam todas erradas. Não podemos abrir mão do que amamos, mas também
não devemos nos deixar machucados para sempre. É um erro, e ele estava cansado
de errar. Ela também, pensava ele. Ninguém gosta de errar. Ninguém gosta de
insistir no erro.
Pensando daquele modo, decidiu que, para
os dois, para que o eu e o ela fosse apenas nós, algo tinha de mudar. As cicatrizes tinham de ser deixadas para
trás, as marcas e feridas tinham de ser superadas. Não esquecidas, não
abandonadas. Superadas, sim. Como um degrau de uma imensa escadaria que nos
leva à vitória, ao sucesso. Ao amor.
Ele fechou os olhos, mas não dormiu. Não
queria dormir, não ainda.
Queria ter certeza de que sonharia com
ela.
Sabia, no fundo de seus pensamentos, que
a única maneira de se livrar de cicatrizes era aceitando-as, passando por cima
de todas as feridas e, acima de tudo, amando. Decidiu que seria mais, que seria
melhor. Decidiu que daria motivos para que ela pensasse o mesmo. Percebeu que
eram dois, mas que tinham de ser apenas um.
Percebeu também, vendo tantos arranhados
em sua aliança, que ela era um erro. Estava errada ali, ao menos.
Na cor errada e no dedo errado.
E as coisas erradas têm de ser ajeitadas,
pouco a pouco, para que as cicatrizes desapareçam e restem apenas os sorrisos.
Com os olhos fechados, ele adormeceu.
Adormeceu feliz, e sonhou com a mulher
que amava, e assim notou que sua vida era perfeita.
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