quarta-feira, 22 de maio de 2013

Conto - Uma História pra Contar


Uma História pra Contar

Ali, sentado, esperava para ouvir uma história, como sempre esperou.
Mas, sabia: naquele dia, como em todos os demais, nenhuma história seria contada. Não havia um contador. Não havia um ancião pra lhe guiar, pra lhe deixar admirado com tamanha sabedoria.
Estava sozinho.
Mirel se sentava numa pedra musgada, tomado pelo frio noturno, pelo banho de estrelas e por um baque de memórias errôneas. Nos vislumbres em sua mente, ele sorria. Não Mirel, pois Mirel não mais tinha motivos para sorrir. Quem sorria era Jotur, O Sóbrio, que de sóbrio pouco tinha. Temido como insano, visto como depravado, afastado de uma sociedade que jamais foi capaz de enxergar além de seus olhos embriagados pela verdade que a mágica lhe mostrara. Ao seu lado, Mirel foi feliz, como um filho seria feliz ao lado de um pai presente, da família que o jovem druida jamais chegou a conhecer.
Agora, estava sozinho.
Sentou-se sob o manto de estrelas e esperou que alguém lhe contasse sobre os cavalos do vento. Ouviria, também, sobre dragões de aço, sobre celestes e abissais, sobre as infindáveis guerras que as regiões mantinham em segredo. Escutaria sorridente sobre as fadas dos Montes Alvos, ou mesmo sobre labradores plumados e felinos uivantes, mas ouvia somente o silêncio. Noite após noite, até então, ouvira a voz de Jotur, O Sóbrio, e aprendera, com ele, tudo o que sabia sobre o mundo além dos limites da floresta que jamais deixara. Agora, restava somente o silêncio. Nada de Jotur, nada de histórias.
No silêncio frígido da noite, ouviu sua própria canção emudecida, e ela cantava sobre a fatalidade.
Ainda na floresta, pois Mirel não tinha história alguma vivenciada por depois das árvores. Aquela era sua casa, seu lar, a morada de suas lembranças, de sua criação entre lobos e macacos e Jotur. Desde seu primeiro recorde, o velho estava lá, de olhos atentos, com o cajado enraizado que privava um moleque inocente dos erros que floresta alguma perdoaria. Crescera na paz da cadeia alimentar, carnívoros atrás da carne dos mais fracos, herbívoros saciando-se com o verde que os circundava, frutívoros se deleitando no sulco da diversidade colorida que ali nascia. Ele, por sua vez, era um aprendiz. A coordenação motora ainda o impedia de acelerar quando ouviu do velho seu primeiro ensinamento:
—Para aqueles que crescem entre árvores, nada há o que buscar além delas —disse O Sóbrio. —Em castelos e casarões, nada lhe ensinarão, garoto. —Fungou em sua pele, pensativo. —Cheiras como mel, e gosto de rimas. Mirel. Serás este teu nome, a partir de então.
As folhas tinham significado, cada árvore tinha um nome. A floresta era muito mais que simplesmente verde jogado às traças. Era um lar muito mais agradável do que muitas das feras acreditavam. Para Mirel, era o único lar, a única escolha. Escalou árvores, aprendeu quais frutos eram comestíveis, quais eram venenosos. Aprendeu o que beber, o que usar como arma. Aprendeu a compreender a linguagem dos homens, mas também a dos animais, principalmente esta. Uivar, miar, latir, rugir, tantas outras formas de comunicar-se que, de acordo com Jotur, muito mais importante o eram. Palavras formulavam filosofias; sons, por sua vez, eram a vida propriamente dita.
Gostava da palavra paz, pois ela o cercava como os córregos. Sentado entre arbustos, dormia, despreocupado com as feras que por ele buscariam se indefeso. A floresta o protegia. Se ameaçado, despertava, buscava as armas, matava pra poder comer, pedindo perdão aos deuses pela vida que tirara. De resto, dormia e sonhava, tomado por tranquilidade, pelo vento da natureza, pela carícia que os homens dos vales de concreto desconheciam.
Todas as noites, Jotur contava uma de suas histórias.
—Os homens são maus —disse ele, alguma vez. —Além de seus interesses, nada existe. Ganância os move, ambição os impregna, o cheiro fétido e carmesim de um sangue que nada vale é como uma névoa híbrida de receio e violência. Dentro de armaduras viscosas e polidas, são heróis; fora delas, moleques chorosos e incrédulos. Armados, das lâminas à pólvora, são cavaleiros, mas portando apenas palavras, são pouco mais que animais falantes.
Mirel aprendia que a humanidade não era exemplar. Os animais matavam pra sobreviver. Homens matavam sem necessidade. Por inveja, por desejos, por pecados. Eram imperfeitos. Mirel também o era, mas redimir-se-ia caso tornasse-se um homem ali, entre os perfeitos seres da selva, e assim o fez.
A contagem dos anos se perdeu, seus cabelos cresceram à altura dos ombros, sua barba, raramente ajeitada, mostrava-o envelhecido. As vestimentas eram naturais, pregas de madeira em tecidos de plantas e véus criados pelo encantamento natural de Jotur, o qual Mirel buscava incessantemente aprender. Acima da cabeça, a pele de um lobo, suas presas lhe cobrindo as tranças como um elmo de pelugem. Cheirava como a floresta e, de acordo com Jotur, era parte dela.
Por vezes, perguntava ao velho o motivo de seu exílio, e a resposta era sempre a mesma:
—Diferente dos demais, sou consciente. Saibas que a diversidade não é respeitada por fronteiras cujo verde não alcança, jovem Mirel. Por trás das amuradas de uma fortaleza, soldados matam por pedaços de carne, assassinam pedintes e bardos de música tola. Eu não era um deles. Um dia, me foi cobrado a integração, a união aos costumes que tanto desprezo. Neste dia, exaltei-me, e o erro me custou a liberdade nas terras que hoje não me fazem falta.
Mirel ensaiava todos os dias, mas nunca criava coragem para perguntar a Jotur sobre seu erro. Sentava-se entre as árvores, pensava, escrevia cenários em sua mente, tudo em vão. No silêncio da floresta, na temperatura amena de sob as árvores densas, restava o calor da dúvida do jovem druida.
Então, chamas.
Parcialmente, o mundo queimava. Mirel despertou com seu lar tomado por inferno. Acelerou, salvou os animais que lhe cabia, protegeu seus pertences, não por materialismo, mas por talvez precisar deles para proteger o que tinha de mais valioso. Procurou por Jotur, seguindo seu cheiro, seus rastros, e a imagem que seus olhos encontraram fez com que seu coração estilhaçasse.
O Sóbrio, tão sábio, tão valente, enforcado numa das mais altas árvores de sua própria morada, incendiando na fogueira dos falsos santos, nas chamas de profetas de pura blasfêmia. Em seus olhos restava pouco do brilho do professor que sempre fora, brilho este que, com um sorriso, se esvaeceu, cintilando pelos ares até encontrar-se à pele de Mirel, marcando-o como uma tatuagem do fogo fátuo que Jotur sempre admirara.
Abaixo do corpo sem vida de seu mestre, demônios.
Homens.
De armaduras e espadas, achavam-se heróis. Mirel sabia da verdade. Compreendia a realidade daquela situação. Em lágrimas, queimando como a chama que agora marcava seu corpo, Mirel matou, pela primeira vez, criaturas que não se tornariam alimentos. Os soldados urravam, sangue esguichando pelos ferimentos que a fera de braços e pernas lhes causava, mas seus dizeres nada valiam. Responsáveis pela morte de Jotur, eram prisioneiros, criminosos, pecadores e, como tal, tinham de encontrar o fim pelo abismo das divindades.
Mirel implorou perdão aos seus deuses naquela noite. Ajoelhando sobre o sangue de seu mestre, desculpou-se por falhar em protegê-lo, como sempre foi protegido. Desculpou-se, também, por sujar suas mãos na imundice dos homens.
Agora, na noite anterior, não havia história para escutar.
O fogo fátuo ainda o marcava, e para sempre marcaria, talvez carregando um significado que ele desconhecia. O sangue de Jotur ainda riscava seus joelhos, as lágrimas marejavam seus olhos de lince.
Diante do silêncio da floresta que nunca deixara, Mirel acreditava escutar a voz de Jotur:
—Sente-se agora, cá estou eu em desavença com os dizeres celestiais! Diferindo do que as constelações me asseguraram, pequeno Mirel, contar-lhe-ei nesta noite outro conto, outro dos tantos que ainda não escutou, para que se previna, ressurja e reaja, quando assim for necessário.
Esperou, mas a história não veio.
Então ajeitou suas coisas. Fez suas preces, pediu perdão e conselhos a seus deuses, incendiou a chama em seu corpo e em seu coração e, incerto de que aquela seria sua melhor opção, deixou a floresta para trás.
Jotur não mais estava ali para contar-lhe história alguma.
Era sua vez de procurar uma história pra contar.

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