sábado, 25 de maio de 2013

Conto - A Nova (Velha) Vida de um Rei

Sugestão de Beatriz Camilo, uma nova roupagem para A Nova Roupa do Imperador.

A Nova (Velha) Vida de um Rei

Na verdade, não há rei algum nessa história.
Há um homem como outro qualquer. Ele se veste bem, não por si, mas pelos outros. Se perfuma, não mais por sua esposa, mas pelo mundo que o circunda. Se cuida, não por seus filhos, mas pela sociedade que o cerca, que o cobra. Ele vive assim, por outros, por todos, com exceção de si mesmo.
E todos os dias ele sai de casa logo ao amanhecer. Não há mais beijos de despedidas, não há mais sinceros desejos de bom dia. Há cumprimentos sagazes, necessários, quase que obrigatórios. Gestos solenes, nada úteis, nada belos. A filha senta-se à mesa para tomar café da manhã, espera pelos pais, eles não vêm. A mãe, de vez em quando, a acompanha, mas quase sempre a mesa está sozinha. Resta a criança e a fome, pois o pai já se ausentou, atrasado para o trabalho. Volta tarde, se volta. Hora extra, sem aviso. Chega ao anoitecer, exausto. Banha-se, come rápido, deita para descansar. A vida é corrida, não há tempo a perder.
Quando o tempo existe, eles brigam.
A mulher escuta, por vezes calada, por vezes gritante. Ele se exalta. Desconta o que o trabalho não lhe permite expor. Ostenta a gravura doentia da rotina nos olhos cansados, chora por dentro, não conversa; grita. Gesticula demais, uma roupagem desleal para um pai de família. E a mãe, o que faz? Ela chora. Fala por ele, chora por ele, vive por ele. Se exalta, também, coitada. Não mais aguenta, não mais suporta. Aquela não é a vida que deseja. Não foi o motivo de ter dito sim, quando perguntada diante do altar. Não é o homem por quem se apaixonou, que a conquistou com sorrisos amigáveis, com conversar educadas e carinhos alinhados. Não mais, mas ela não percebe, e nem mesmo ele o faz. São um casal, dois que são apenas um, marido e mulher: dois estranhos. O tempo lhes sobra, e então discutem, se alteram, se perdem ao invés de se encontrar.
E a garota assiste, ingênua.
Em seus olhos, o medo. Será que eles não percebem o que fazem? O pai e a mãe, antes tão amáveis, agora tão distantes. Mesmo quando perto, longe. Mesmo quando juntos, perdidos. Mesmo quando amando, ódio. Fingem estar felizes, por ora. É o mais fácil, o mais confortável. Ela ainda é tão criança, tão inocente. Não pode passar por tudo isso. Eles têm que suportar, não é? Têm uma filha juntos, uma vida recente, infantil. Precisam estar ali, presentes. Precisam se amar, ou fingir. Precisam vestir uma roupa que os deixe disponíveis para o crescimento saudável de uma garota cuja mente jamais terá algo de sóbria.
E a garota assiste, ingênua, e se pergunta por que aquilo acontece? Eles são adultos, não são? É tão mais fácil tomar suas decisões. Para ela, tão pequena, tão miúda, a escolha seria simples. Como uma amizade que não mais agrada: ela se afasta. Mas eles não se afastam. Ficam juntos, sem se amar, sem desejarem por isso. Ficam juntos sem razão. E ela assiste aquele teatro de estupidez, como quem procura uma roupa invisível, que somente os inteligentes podem ver. A roupa inexiste: ela é apenas um disfarce para a estupidez sem tamanho que cerca os homens. Ali, diante de um casamento em ruínas, os pais estão despidos de amor, de carinho. Vestem máscaras que somente os sábios podem enxergar, e mentem para si mesmos, dizendo ver o que não mais existe. Casamento, união, felicidade.
Amor.

Mas a garota, coitada, ela enxerga tudo, e o pior: nada vê. Se os estúpidos são incapazes de vislumbrar as verdadeiras facetas da vida, ela prefere ser assim, sempre estúpida. Ao menos, enquanto tantos se fantasiam, mascarados, ela saberá que, por piores que sejam os cenários, serão eles sempre feitos de realidade.

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