quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Momentus - Recortes do Facebook ~ Outubro

Vamos aos escritos do mês de outubro?


OUTUBRO

Na vida, todo mundo passa.
Tem gente que passa e se vai, sem demora.
Tem gente que passa e não vai, mas enrola.
Tem gente que passa e estaca, se escora.
Tem gente que passa e fica, pra nunca mais ir embora.



Se o amor contagia, não deixa de ser doença.



Se a vida é feita de equilíbrios, os dias ruins que já se foram são peso para as maravilhas que ainda estão pra chegar.



Há uma imensa vontade de mudar o mundo, mas não antes da miúda vontade de mudar a si mesmo.



Quando o caminho da felicidade lhe trouxer sofrimento, lembre-se que as mais belas rosas têm no caule sofríveis espinhos.



Sob as águas do chuveiro, sob o conforto do travesseiro, nas janelas dos ônibus, nas esperas, no silêncio, nos sonhos e pensamentos; você.



Pelo ardor da existência, um mundo de violência só se cura com a inocência.



Ela esperou, e ele a fez sofrer.
Ela esperou, e ele a enganou, ludibriou, encheu a vida de mentiras.
Ela esperou, e ele se foi sem se importar, sem deixar vestígios.
Ela esperou e, um dia, ela cansou de esperar e decidiu viver.
E ele se arrependeu, voltou atrás, ajoelhou-se onde ela sempre esperava, mas ela não mais estava ali. Então ele decidiu esperar, mas já era tarde demais.
Ele esperou, mas ela nunca mais voltaria.



Não se deixe enganar com aparências: as mais belas prisões ainda lhe privam da liberdade.



Respostas para quem não tem perguntas, perguntas para quem não tem respostas.



As mais belas cores escurecem diante dos mais perversos sentimentos.



Ele ofereceu a ela um pincel que faria um único desenho se tornar real, e assim lhe disse que qualquer vontade, sonho ou anseio, por mais íntimo e egoísta que fosse, seria concebido nos traços daquela arte.
E ela, na ingenuidade, não tinha vontades, sonhos ou anseios por si mesmo.
Com o pincel mágico em mãos, ela rabiscou a tela em branco e, sem pensar duas vezes, desenhou um novo mundo, um mundo melhor.



Às vezes eu acho que preciso deixar uns hábitos para trás e me tornar mais 'adulto'.
Somente as crianças se preocupam com os outros. Os adultos se dão bem por egoísmo, porque sabem se preocupar somente consigo mesmo, sabem fingir que nada está acontecendo e dar de ombros quando algo de ruim acontece, sem procurar soluções por ter preocupações maiores do que baboseiras.
Somente as crianças acham graça em qualquer coisa. Os adultos levam a vida a sério, pouco aproveitam do lazer e das companhias, sempre focados no trabalho e na rotina, com miúdos momentos de piscadelas que lhes permitem esquecer o financeiro para cultivar o social.
Somente as crianças vivem a vida ao máximo. Os adultos não correm riscos, pois são muito adultos para arriscar. Eles não podem se dar ao luxo de viver tudo o que a vida garante, já que têm muito ao seu redor, muito nos seus bolsos e nas suas mãos, muito na mente e na língua. Perder não é uma possibilidade, é apenas um desleixo, um descuido, um problema. Vencer é o que importa, e não se vive ao máximo por se viver para a vitória.
É, às vezes eu penso que realmente deveria me tornar mais adulto.
Mas, ao pensar nisso tudo, prefiro deixar meus pensamentos de lado e esquecer de tudo em algumas horas de videogame com os amigos.



Eu gostava do tempo onde você era interessante pelo que era, não pelo que tinha.



Quando a simplicidade se complica, a complexidade simplifica o irremediável.



O ser humano é tão desacostumado à perfeição que, quando algo está perfeito, ele estranha e se afoba.



Completo no incompleto, finito no infinito, relógio circulando no encontro dos perdidos; voeja, desbrava, ajusta o “inajustável”, recorre ao irrecorrível, faz alarde no amável; confunde o que é certo, confia ao confundível, afoba no repouso e descontrola o inaudível; extremo, pacato, mundano e ativista, calmo, desesperado, sereno, tão pessimista; seja realidade, seja pura ilusão, pertence ao ser humano tão insana descrição.



Levanta a cabeça e respira fundo, sem marra, sem medo, recrie seu mundo.



Não há compaixão por quem vive sem glória
Somente uma chance de seguir adiante
Em frente, avante, mudando sua história



Pense em sua vida como um jardim. Você tem que cuidar de todas as flores, pois a beleza está em tudo o que o circunda. Ao se dedicar para somente uma flor, terá de se conformar com o fato de que mesmo as mais belas flores um dia hão de murchar.



-Hoje eu vou falar com ele.
Mas ela não falou.
Era um dia como todos os outros, e ele estava lá, no mesmo banco, sentado, sozinho, paciente. E ela também lá estava, não tão paciente, mas tão sozinha quanto. Em sua mente, aqueles olhos, aquele perfume, aquele sorriso.
-Amanhã eu vou falar com ele.
Mas ela não foi, e também não foi na semana seguinte, nem no mês seguinte, nem no ano seguinte.
Até ele desaparecer, e ela então se viu sozinha, e a solidão a consumiu.
Não era uma solidão desgostosa, ácida e revoltante, como aquela dos deixados para trás, dos abandonados, dos que ficam atirados no sofá enquanto a porta não se fecha pelo vento.
Era a solidão do erro, da insegurança, do medo de arriscar.
A solidão de quem tem toda a cachoeira à frente dos olhos mas desiste ao ver a água escapar por entre os dedos de suas mãos.



Não para sempre, pois o sempre tarda e se extingue; não para sempre, mas para o meu sempre, para o meu infinito, até que o finito extrapole e o fim nos leve, de mãos dadas, para o recomeço do ciclo. Não para sempre, não pela eternidade, mas por todo o tempo que eu quiser, que eu puder, que eu respirar.



Não para sempre, mas sim até o fim.



Que eu tenha cem anos no corpo, mas dez no espírito, pois não se move montanhas com os braços, somente com a determinação.



Não há muro que segure a força de um sonho.



Que esteja tudo em pedaços, que vivam todos nas dores, ainda estarei aqui completo, cercado de sonhos e cores.



Há quem foge dos medos e tomba; há quem queda diante deles e, ao se levantar, já é forte o suficiente para afrontá-los.



Desabe o mundo sobre tudo e todos; atingidos são apenas aqueles que se entregam pois, aos destemidos, tormenta alguma poderá fazer mal.



Antes molhar os pés na chuva do que se afogar no pranto.



Largue tudo, largue o mundo, largue os medos e receios, deixe apenas entre os braços quem lhe importa, quem ama e é amado, e só assim entenderá o significado de viver, de existir, e a complexidade de um simples beijo apaixonado.



Já era madrugada quando o telefone tocou. Ela acordou assustada, o frio era intenso, as cobertas fora de si. Atendeu, escutou chiados anormais, a ligação caiu. Praguejou e fechou os olhos outra vez, suspirando, e só sentiu-se calma novamente quando os braços de seu marido lhe envolveram num abraço quente e confortante.
Então, outro toque, e desta vez, ao atender, ela pôde escutar alguém dizer: -Você pode abrir o portão para mim? Esqueci as minhas chaves.
Era o seu marido, lá fora.
Mas então quem se deitava ao seu lado?



Nenhuma dor me impedirá de alcançar o que almejo.



Ao temer perdê-la, perdeu a si mesmo e, sem saber quem era, vagou na solidão até o fim de seus dias.



Ele ligou para a mãe num último instante de agonia, sem saber o que lhe perseguia, sem saber o que lhe apavorava. Disse a ela que a amava, e que não mais sairia daquele túnel, abaixo da ponte, mas não havia túnel algum. A mãe se desesperou e, ao som do último grito, acompanhou a polícia em buscas que jamais teriam fundamento.
Afinal, se sequer foram capazes de encontrar tal lugar, como pretendiam encontrar um rapaz desaparecido?



Caminhando por entre as árvores, o garoto encontrou uma criança perdida. A garotinha sorriu para ele e correu, cantarolando, e ele a seguiu, procurando ao mesmo tempo pelos pais desatentos que a deixaram vagar sozinha, em vão. Seguiu-a por horas e mais horas, e suas pernas sequer lhe respondiam às vontades devido ao cansaço. Quando parou, sentado num dos bancos de madeira cujo conforto era duvidoso, viu-a acenar além das árvores, e ali ela se desfez em pétalas, subindo junto da brisa para uma liberdade que homem algum jamais alcançaria.
E só então ele se lembrou de que era impossível haver uma garota perdida e uma família entre aquelas árvores.
Aquele era o seu jardim, e não um parque público.
Ele estava sozinho, como sempre esteve.



-Vai se esconder, mamãe!
E a mãe se escondeu, mas a garota a encontrou sob as cobertas.
-Outra vez!
E mais uma vez ela o fez, mas a garota era esperta, e logo a encontrou atrás das cortinas.
-É a última vez, mamãe, eu prometo!
E ela se escondeu uma terceira vez, alvejando o porão daquela residência que desconheciam. A garota procurou, mas nada encontrou em lugar algum. Procurou por horas, por dias, nada.
Arrependeu-se de dizer à mãe que aquela seria a última vez, mas ela realmente fora.



-A mamãe está me chamando.
A garotinha chorava. Seu irmão, como sempre, olhava emburrado para ela, os braços cruzados, a cara fechada.
-Não, ela não está.
A voz estava ali, além da porta lacrada.
-É ela, é sim! Ela está me chamando!
O garoto bufou, impaciente, e a garota chorou, temerosa.
-Desista. Ela não vai falar com você outra vez.
Com passos pesados ele se foi, deixando para trás uma criança preocupada, sedenta por carinho e por abraços.
-Ele não entende, mamãe, ele não consegue ouvir. Mas eu consigo. Eu posso ouvi-la me chamar. Eu posso ouvir a sua voz.
Ela se escorou à porta que ninguém mais abriria, e ali ficou, sonhadora. As lágrimas secaram, mas o pensamento não voejou: a voz estava ali, chamando por ela, clamando pela sua presença, mas ela ainda precisava aceitar a morte da genitora.



Ela movia montanhas com seus braços, enfrentava hordas com seus punhos e afrontava os maiores temores com os olhos abertos, sem hesitar. Ela determinava suas vontades, ela escolhia seus caminhos, ela passava por cima de todos os obstáculos sem ajuda, sem ninguém.
Mas, quando estava sozinha, ela chorava.
Chorava, não por ser fraca, não por ser frágil. Chorava por ser humana. Chorava por ser uma deusa, mas uma deusa tomada por emoções, violada por dificuldades, corrompida pela fraqueza; uma deusa sem poderes, sem vitórias, uma deusa caída. Chorava por se achar fraca, por não ver diante do espelho tantas quantas eram suas conquistas, por não ver além dos montes todo o orgulho que esbanjava.
E ele, postado na lonjura de tal momento, a viu.
Não como heroína, não como deusa.
A viu como mulher, como garota, como uma boneca de porcelana. Esteticamente perfeita, indescritivelmente fragilizada.
Assim ele a viu, assim ele a amou. Parte por ser imperfeita; parte por ser esta sua maior perfeição.
Sentado ao lado daquela menina, daquela mulher, ele a abraçou, mas não era ninguém, e ela chorou em seu ombro, desolada, incapaz sequer de esconder tua fraqueza. Sentado ao lado daquela garota ele conheceu os mais belos sentimentos, entendeu que, mesmo que nada fosse, tudo era para quem lhe importava.
E ela, imersa em seus braços, compreendeu.
Ela movia montanhas, enfrentava hordas, determinava suas vontades e escolhia seus caminhos, passando por cima de quaisquer obstáculos sem ajuda, sem ninguém.
Às vezes ela caía; às vezes ela chorava.
Ele estava sempre lá, de braço abertos, pronto para reerguê-la com um sorriso.



Não há chave do sucesso
Quando fechadura não há
Não recue, olhe adiante
O que queres já está lá



Sincero é aquele que mente
Mas mente pra preservar
A estética da semente
Que se preza a cultivar
Mentiroso aquele que nega
A verdade que repugna
Que aceita o espelho e despreza
A beldade que o ensina



Conheci uma cronista
E em mim algo despertou
Narrei junto dela, às vistas
Um conto que se prolongou
Hoje o romance despista
O amor que vivenciou



Entre chagas e espinhos
Um rumo há de se mostrar
Disperso em redemoinhos
Gritante, mudo, a bailar
Na valsa do amor nascente
Só a paixão se destaca
E com paixão vivo ardente
Sobrepondo em risos as estacas



Dentre os mais gritantes tempos
Um só ante a multidão
Cercado, sempre ao relento
Temendo tal solidão
Na solidão dos unidos
Mãos dadas são o remédio
De um silêncio estampido
Que reprime todo tédio



Escuro, vento soturno
O vento em choque ao muro
Brilhante manto noturno
Em nada além de um segundo
Encontro-me abandonado
Sozinho, tão desprezado
Nos cantos, amordaçado
Sempre preso, acorrentado
Nunca tive medo do escuro
Mas o escuro me faz tremer
Estendo as mãos, inseguro
Procurando por você
Silêncio, balada fúnebre
De um mundo de puro caos
Onde vivos habitam túmulos
E mortos são puro mal
Corro, tombo, me afugento
Evito de acreditar
Abraço o vazio tormento
Respiro a tranquilizar
Salto e grito, acordo assustado
Suor frio de pesadelo
Mas cá, você, ao meu lado
Afaga-me num só beijo



Eu dei as mãos para um anjo.
E ela era tão linda que eu sequer sei descrever. Fazia-me um bem fantasioso, conforme deslizava teus braços em meu corpo, teus frágeis dedos em meu rosto. Afagando meus cabelos, vi estrelas num mundo sem céu, e aquele era o paraíso.
Respirando com certa dificuldade, pois o ar me faltava, escutei aquela voz de perfeição acentuada cantarolar-me um amor infinito.
-Eu não quero acordar.
Meu pedido era impossível.
-Você não precisa.
Ela sorriu, angelical.
-Eu posso dormir para sempre?
Então ela me beijou, e eu a senti, quente e aconchegante, calorosa e apaixonante, e eu entendi antes mesmo que ela me respondesse.
-Não. Você já está acordado.



Há grandes coisas de pequena importância, bem como miúdas atitudes de enorme significado.

Texto - Saudade


Saudade

Quando incompleto, de nada sente falta.
Quando completo, vazio se torna num simples deslize.
Àqueles que tendem a duvidar da credibilidade de um relacionamento, ouso apontá-los como os sortudos e azarados que jamais sentiram saudades. Sim, saudades, aquilo que muitos citam, usam nas rimas e nos filmes, mas poucos realmente sabem o que é.
Oito letras que te prendem num momento inoportuno, que te tiram da concentração, te privam do desleixo, te forçam a pensar num mesmo ser por todo o tempo. Ao piscar, ao respirar, é sempre ela, é sempre a mesma, uma pessoa, uma presença, uma vontade de estar junto, um sonho bom, um pesadelo ao se perder no fim do mundo.
E quando não se sente, não se sabe; e quando tudo sabe, tudo sente.
É simples se apaixonar, mas nada simples se guiar numa paixão. O amor pode te carregar ao íntimo do paraíso, e assim o fará no tempo em que lhe for permitido, acentuando as sensações e a emotividade de dois que são um, ou que podem ser muito mais. Complexo é viver apaixonado, pois o amor lhe tira os pensamentos, torna-te impulsivo e hiperativo, faz com que seu mundo seja um só, tenha nome, cor nos olhos, lábios que te fazem sedento. Complexo é arriscar, é ousar, mas saber quando esperar, quando se deve sentar, quando devemos assistir.
Mesmo àqueles que nada sabem, a saudade troveja impiedosa.
Aos sortudos e azarados que a desconhecem, meus parabéns, meus pêsames. Sem saudades, viverás muito melhor, se me permite arriscar, mas viverá vazio. Azarado será aquele que nunca se envolverá, que evitará toda a presença, toda a importância; sortudo aquele que, antes de ver a vida passar na solidão, desperta para um novo ser, de novas vontades e novos sonhos e, por mais que a saudade o assole, quando capaz de amar, ele terá a prova de que, sem tal aperto no peito, sem tal sentimento ao leito, sem a paixão que a todos guia.

Novo Livro + Prefácio

É minha gente, declaro oficialmente iniciado, depois de uma grande pausa nos trabalhos de grande porte, meu mais novo trabalho que almeja se tornar uma novela ou um romance. O nome provisório, Persona, vem do grego, e se relaciona a máscaras, em suma àquelas utilizadas pelos artistas em peças de teatro. A história é uma fantasia urbana com toques de drama e romance, mas conta com uma crítica camuflada nos capítulos, uma crítica à sociedade que vivenciamos atualmente, onde tudo tem dois lados e nada é o que parece ser.
Trago-vos hoje o texto que, provisoriamente, tornou-se o Prefácio desta nova história.


Prefácio


Há máscaras por toda parte.
Na realidade que nos circunda em tempos modernos, tudo é mascarado, tudo tem suas facetas. O amor se disfarça na atração, a amizade no interesse, princípios se perdem em desfechos, não mais existem meios. Presenciamos —e tomo por direito acreditar que alguém além de mim tenha notado tal fato —as alterações desenfreadas na estética da vida, que agora se torna mais importante do que a estrutura familiar, e tais mudanças deixaram rastros, cicatrizes que o mundo se mostra incapaz de restaurar.
E, neste exato momento, você talvez esteja se perguntando o porquê de tais palavras.
Persona, para os gregos, nada mais é do que uma máscara. Mas o que é uma máscara para os demais? Um simples equipamento que cumpre a mísera finalidade de esconder o rosto, cobrir os olhos e os lábios, mascarar a verdade? Uma máscara é mais do que isso. Uma máscara é um esconderijo, é um abrigo para as mais falsas realidades, para as mais reais mentiras, é um canto escuro que luz alguma pode iluminar. Uma máscara é o breu que nos impede de enxergar o que amamos e que, por vezes, está ali, abaixo das nossas narinas avantajadas, colado em nossos olhos inseguros e falhos.
Uma máscara é isso: uma máscara.
Tendo em mente as mudanças que os anos causaram no mundo, entendamos que há mascaras por toda parte, sim, e elas cumprem suas funções. Infelizmente, ao menos para mim, cumprem suas funções melhor do que muitas pessoas o fazem. Mascarando, é fácil fingir que tudo está bem, que eu não fiz nada de errado àquela garota, que aquele choro que ouvi não foi minha culpa, que palavras e atitudes não mudaram a vida daquele amigo que se afastou. Mascarando, é muito simples afastar adoráveis presenças por dinheiro e ambições, é muito fácil ignorar as perdas do caminho, os tropeços, as hesitações.
Mas assim é a vida, toda de Persona. Este texto que tem em mãos, agora, é nada além de uma crítica, uma revolta, uma filosofia, arrisco dizer. Enquanto refletimos sobre as máscaras que nos cercam, viajamos numa fantasia delicada, urbana e sugestiva, onde as coisas podem parecer simples, mas nada é o que parece ser. Enquanto viajamos num mundo que não é o nosso, desbravamos as fronteiras do irreal, afrontando o incomum e o mundano de maneira a compreender o incompreensível, ou não. A viagem é a mesma para todos, mas, para cada um, distintos são os ensinamentos.
Cá estou eu, como somente mais um mascarado, oferecendo-lhe a mão para guiá-lo por um passeio que talvez mude sua vida, ou talvez não mude nada.
Ah, sim, eu também sou um mascarado. Mas qual o problema disso?
Há máscaras por toda parte, de qualquer forma.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Conto - Encanto

Encanto


Ele sabia que, em seu mundo, a magia inexistia.
Ainda assim, admirava todos os efeitos de tal lenda, voejando em altos sonhos conforme imaginava o quão incrível seriam os feitos agraciados pelo toque da mágica, pelo dom sublime dos encantadores, pela feitiçaria benigna e admirável das fadas mais puras, por mais que, mesmo que impuras, fadas inexistissem. Ele as imaginava com sua mente fértil, sonhava com a terra fofa dos vales e das colinas enquanto soterrava o árduo solo de sua vivência, o mesmo solo que lhe privava de voar mais alto, prendendo-o numa realidade nem sempre bela, nem sempre boa, mas nunca mágica.
E assim ele vivia, acorrentado à pior das maldições: a rotina. Aquela que te prende num ciclo interminável e repetitivo, te coloca pra correr num aro metálico, como um rato de laboratório. Acordava cedo, trabalhava o dia todo, estudava ao anoitecer, perdia minutos com inutilidades e então se largava para repousar tarde demais, e o amanhã poderia se chamar hoje, pois como hoje era, idêntico, gêmeo.
Na rotina, ele tinha amigos, tinha sim. Todos nós sempre temos, e ele não era diferente, por mais que pensasse diferente em certas ocasiões. Tinha amigos e amigas, todos eles não-mágicos, todos eles aprisionados na mesma cela, mesmo que distantes. Amigos e amigas sem poderes, sem vontades, sem sonhos incríveis e imaginários como os deles, ou talvez alguns o tivessem, incertos e inseguros de compartilhá-los. Vendo-os, ele ficava feliz, sorria quase sempre. Sorria num teatro certas vezes mas, na maioria delas, sorria por admirá-los, por desejar a companhia que o tirava da solidão, por sentir-se bem e seguro no meio dos seus, daqueles em quem confiava (e que certas vezes traíam sua confiança), daqueles que eram similares, mas muito diferentes ainda assim.
Entre todos, havia Ela, que no momento era apenas ela, com “e” minúsculo.
Sempre fora uma boa amiga, não só para ele. Ela era especial para todos e, por muitas vezes, era o centro das atenções. Ela era linda, mas tinha uma beleza que sobrepunha a beleza tradicional; uma beleza no existir. Não tinha uma vida fácil, certamente, mas tinha uma vida única, sua, repleta de determinações e fobias, de receios e alegrias. Rodeada de amigos, sorridente mesmo nas dificuldades, independente.
Ela.
E ele gostava dela, mas somente isso. Ela era sua amiga. Interessante, atraente, admirável, mas somente sua amiga. Ele não era nada disso. Ele era uma criança com idade maior do que a dela, um bebê maioritário de hábitos abobados e sem nada de especial. Mas ela era Ela, e o fazia sorrir entre os amigos, e ele acreditava que ela o faria sorrir sem ninguém por perto também, mas acreditou em silêncio.
O silêncio, por vezes, é uma boa companhia.
Talvez não tenha disso naquele momento, mas, às vezes, é.
O tempo passou, pois os relógios não tardam a girar, e ele e ela viveram suas vidas. Dias e mais dias, meses, a distância insistia em afastá-los, mas por vezes restava um tempo nas rotinas exaustivas e eles se encontravam no outro mundo, no mundo digital, e lá se divertiam. Assuntos desconexos, risadas infantis, uma conversa de amigos, uma conversa fértil.
Algo nascia ali.
Mas como acreditar? O pessimismo, não, o realismo, este sim às vezes nos força a pensar pequeno, baixo, evitar sonhar demais, e ele ficou ali, tendo o silêncio como companhia, sem pressa, pois a pressa não o levaria a lugar algum. E ele a encontrou alguns dias, circundando de amigos e silhuetas, e a admirou de longe, com os olhos atentos e o “detalhismo” exacerbado, mas nada disse, e ela também não o fez, e cada vez mais ele acreditava que sonhara acordado.
Até que, um dia, o mundo girou rápido demais.
Foi num piscar de olhos, numa piscadela, e os seus cabelos perfumados estavam no seu rosto, seus dedos frios estavam nas suas mãos, e as bocas se encontravam. Foi sem aviso, e ela estava ali, em seus braços, e ele estava ali, no paraíso.
O paraíso era lindo demais.
Era um beijo, mas não somente um beijo, era muito mais do que um simples ato, do que uma atitude desinibida, do que uma união carnal e instável. Circulava naquele toque macio e cheiroso uma carícia garbosa, uma atração que lhe mostrava que aquela menina que sempre esteve por perto deveria estar ainda mais perto desde sempre, que aquela garota tinha tudo para se destacar dentre uma multidão de outras garotas por ser feliz acima de tudo, e também que aquela mulher, e não menina ou garota, era linda, era perfeita e tinha de ser sua.
Dois desacostumados a relacionamentos, dois inocentes sem inocência, dois viventes de vidas tomadas por monotonia, mas dois. A rotina ainda estava lá, mas não era mais um problema; havia o tempo em conjunto. As surpresas ainda assustavam, mas eram boas, eram surpresas de um casal. E eles hesitaram em falar demais, em deixar que as palavras tomassem conta na vontade que os fazia acelerar, mas então disseram seus sentimentos, e riram e comemoraram e ficaram juntos, e é assim até então.
Ele sabia que, em seu mundo, a magia inexistia.
Sabia mais do que ninguém.
Mas ele também sabia que, conforme a beleza da vida se revela, a mágica existe, sim, mesmo que dentro de cada um de nós, seja ela um simples amor, seja ela um complexo encanto.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Conto - Cinzas no Campo de Batalha

Saudações, companheiros, mesmo que estas tenham se atrasado um pouco. Peço desculpas pela quebra do ritmo de postagens, o tempo anda meio em falta, sabem como é. Mas, como é de meu feitio, trago-vos hoje um novo conto, uma história que já apareceu aqui no blog anteriormente, mas como apenas um trecho, e agora retorna em sua versão completa e original: Cinzas no Campo de Batalha, uma releitura do Rei Arthur e seus Cavaleiros da Távola Redonda. Boa leitura!



CINZAS NO CAMPO DE BATALHA


Havia cinco generais, postados no imenso hall de um castelo.
A simples presença daqueles homens fazia do ar mais denso, difícil de respirar. Eram homens como todos os outros que os assistiam, não imortais, não mais valentes ou poderosos. Homens, simples homens, fantoches numa batalha muito maior do que suas mentes. Mas eram homens de valor, cavaleiros, guerreiros dispostos a morrer por seus ideais, sem medo algum.
Isso os tornava deuses.
—Camelot não cairá antes mais uma dessas investidas —disse Bedwyr. Sua voz latejava as paredes, ecoando nos pensamentos de cada servo, de cada irmão de arma. Vestido em sua armadura cristalina, o cavaleiro arrastava uma imensa espada bastarda no solo, arma integrada a mecanismos futurísticos que lhe permitiam atingir um alvo numa distância muito maior do que sua lâmina. —Somos fortes, e somos maioria.
—Arthur está com eles —interveio Caradoc, coçando a barba ruiva com os dedos, —nunca podemos nos esquecer disso. Ele tem a Excalibur em mãos. Nem mesmo cinco de nós podemos fazer frente àquela arma.
—Não faremos frente a uma espada encantada com armas mundanas —lembrou Galahad, as tranças douradas inertes em suas costas. —Nosso exército é feito de peões. —Apontou todos os cavaleiros menores, jovens e tolos se comparados a qualquer um dos generais. —São seguidores fiéis, mas ainda são fracos. Milhares deles não fariam frente a Arthur, centenas tombariam ante os líderes que ainda se curvam.
Gingalain escarrou no solo.
—Como eles podem? —parecia indignado. —Como podem os campeões evitarem a verdade? Arthur enlouqueceu! Ele tem a arma mais poderosa do mundo em mãos, tem a fidelidade do mago mais sábio do universo. Ainda assim, pretende destruir o Santo Graal! Malditos sejam Lancelot, Mordred, Sagramor e Uriens, que despercebem tamanha tolice que têm feito.
—Não podemos julgá-los, Gingalain —Lamorak interrompeu. —Eles são nobres, como nós. Cada um tem seu ideal, sua motivação. Senão estão do nosso lado —
—Então estão contra nós —definiu Bedwyr, e a discussão estava encerrada. —Aqueles que suspendem lâminas contra os santos da Távola Redonda, afrontam a guilhotina de seus destinos. Se nos desafiam, daremos a ele as mortes honradas que merecem, bem como dolorosas execuções às quais criminosos são submetidos.
Caradoc oscilou, a mão cobriu os olhos.
—E como saber se não somos nós os traidores? —perguntou. —Como podemos ter certeza de que escolhemos o lado correto para lutar?
—Hesita por causa de seu irmão, Caradoc —disse Gingalain. —Mordred não é mais parte de sua família. Desista de considerá-lo. Não há espaço para dúvida entre nós.
—Não há dúvida em minha mente —mentia, mas o teatro estava acima de suas habilidades.
—Assim espero —Bedwyr, as mãos postadas nos ombros de seu companheiro. —Façamos da seguinte maneira. —Tocou levemente o cabo da espada de Caradoc, tilintando sua bainha no contato com as braçadeiras. —Guerrearemos, outra vez. Mas você não mais será um protetor, Caradoc.
—E o que serei?
—Um assassino. Você matará Mordred, para que não haja receio algum em seu coração.

Arthur estava atirado no solo, um dos ombros sangrava.
A armadura prateada tinha escoriações, marca de infinitos combates dos quais já participara naquele novo mundo. Apoiado num rochedo de forma bizarra, Arthur lembrava-se de seu tempo de rei, de Avalon, do medievalismo que deixara para trás. Estavam no holocausto, numa terra que desconheciam, levados até lá pela magia que jorrara do Santo Graal quando este fora encontrado.
Ali, em sua linha de visão, havia um mundo tecnológico.
Cidades e mais cidades se estendiam no horizonte, iluminadas por invenções que os cavaleiros sequer sonhavam entender. Postes com globos de luz, veículos movidos sem a necessidade de cavalos, água tratada por máquinas inteligentes, tudo era tão estranho, e ao mesmo tempo tão fascinante! Não havia tempo para admirar, no entanto. Estavam em guerra, uma guerra que possivelmente não teria fim sem causar dor para ambos os lados. Arthur tinha em mãos uma lenda, e com ela pretendia destruir o artefato sagrado que tanto procurara em sua vida.
Com essa escolha, fora traído por cinco de seus melhores homens, cavaleiros e amigos.
—Ainda pensa neles, não é? —era Lancelot. Aproximava-se com vagarosidade, acompanhado do velhaco feiticeiro Merlin, e ambos se sentaram ao lado do antigo rei. —Nos traidores, naqueles bastardos.
—Eles foram meus homens, Lancelot.
—Eles foram meus irmãos, também. Foram cavaleiros, guerreiros pelos quais eu ousaria sacrificar minha vida. Os salvei, e também fui salvo por eles, muitas e muitas vezes. Não mais. Agora, são vilões, são perversos. Querem nos impedir, Arthur, e isso eu não posso permitir.
Arthur suspirou. Não era mais rei, nem mesmo tinha o orgulho e a firmeza de uma realeza. Era um mortal, outra vez, e hesitava como um.
—Estamos do seu lado, meu amo —disse o feiticeiro.
—Você não é um servo, Merlin.
—Para mim, o senhor será sempre um rei. Tem em mãos uma das lendas, e ouso dizer que seu próprio nome é uma lenda em nossas terras. Com a destruição daquela maldição, teremos de volta nosso lar, nossas casas e famílias. Seremos livres dessa prisão, livres para comemorar pela eternidade.
—Não há o que comemorar. As perdas foram maiores do que vitória alguma pode ser. —Arthur se levantou. Tirou sua espada da bainha, a lâmina dourada cintilou junto da lua. Era linda, adornada com cristais e joias sem nome, tão brilhante quanto o próprio sol poderia ser. —Faremos valer todos os sacrifícios, e então baixaremos as armas. De volta ao nosso lar, hei de ser camponês, não mais cavaleiro. Esta vida me trouxe honra, mas carregou-me para um mar de incertezas e dores.
—O senhor é um —
—Não quero mais reinar, não quero comandar tropas. Quero viver aquilo que não pude até então. Quero ser um homem sem títulos garbosos, sem nomenclaturas especiais. Quero ser livre, livre da responsabilidade, livre das normas e das decisões, pois esta é a maior liberdade que se pode alcançar.
—Renunciará seu título, meu lorde? —Lancelot se surpreendeu. —Avalon entrará em colapso com sua decisão! Quem será o responsável pelo domínio de incontáveis cavaleiros de nossa época?
Arthur deu as costas aos seus companheiros.
—Acredito que somente um feiticeiro poderia tomar meu lugar —disse ele.
Merlin balbuciou:
—O que disse, meu senhor?
—O que entendeu, Merlin. Quando retornarmos, você será o rei, o dono de Camelot, o líder de Avalon. Serei teu submisso, teu escravo, pois apenas assim serei feliz.
—Mas —
—Teremos tempo para discutir tais assuntos futuramente. Agora, precisamos preparar nossas tropas para um novo embate.
Sem demoras, partiram os três para se reunir com os outros generais, imbuídos na organização do exército restante. Lancelot refletia com preocupação, um mau pressentimento assolando seus pensamentos.
Merlin tinha um estranho sorriso no rosto.

Caradoc patrulhava áreas muito distantes do castelo.
—Meu senhor —chamou um dos cavaleiros que o acompanhava. —Não deveríamos voltar? Nossa zona de patrulha ficou para trás há horas. Estamos avançando no território dos rebeldes e —
A espada girou no ar, e a cabeça do cavaleiro quedou sem resistência.
—Algum outro temeroso entre nós?
Vinte homens se mantiveram calados.
—Excelente.
Caradoc estava furioso. Por dentro, queimava em seu coração o desleixo de ser destratado, de ser visto como um fraco. Duvidavam de sua lealdade pelo fato de estar contra seu irmão, contra Mordred. Que diferença faria aquilo? Ele escolhera um lado, escolhera as tropas de Bedwyr para proteger o Santo Graal. Mataria Arthur, se fosse preciso. Mas não, eles ainda duvidavam de sua escolha, de suas capacidades. Pediram a ele que matasse seu irmão, como um teste final. Como uma prova que se faz a uma criança.
Não esperaria tanto tempo assim. Queria provar para todos, inclusive para si mesmo, que não era fraco, não era medroso. Provar que mataria um deus com as próprias mãos, se houvesse necessidade.
Por isso, naquele momento, atravessava as fronteiras do confronto, sozinho. Tinha homens, cavaleiros inexperientes, nada mais. Vinte espadas além da sua, vinte espadas que ele poderia derrubar sem dificuldade alguma. Eram seus servos, no entanto, fiéis e destemidos, até que se prove o contrário. Não esperava invadir as tropas de Arthur, não teria chances contra cinco generais e um mago. Esperava encontrar algum desavisado, uma sentinela ou uma patrulha.
O sorriso se estendeu de maneira insana quando encontrou, afastado dos acampamentos, um de seus antigos irmãos de arma: Sagramor.
—Alto —ordenou Sagramor ao perceber a tropa que se aproximava. —Cerquem-nos —disse aos seus homens, prontamente obedecido. Brandiu sua espada. —Quem são vocês?
Quando reconheceu a marca de Caradoc, era tarde demais.
—Matem todos —ordenou o general, e o combate se iniciou com essas palavras. Desviando de todos os lacaios, Caradoc alcançou Sagramor, as espadas se chocaram.
—O que faz aqui?
—Vim para matá-lo —sorriu o cavaleiro, trocando golpes tomados por ira. —Não me entenda mal, não há nada pessoal envolvido. Eu quero apenas provar para mim mesmo, e para todos os outros, que não existe laço algum entre nós. Vocês são a escória, seguidores de um falso rei, de um homem que deseja destruir a maior esperança para o nosso mundo.
—Essa esperança nos trouxe até aqui com aquela magia infame! —bradou Sagramor. —Não consegue ver o que está à sua frente, Caradoc? Esse artefato é perigoso, é poderoso demais! Nem mesmo Merlin poderia controlá-lo, ninguém pode!
—Alguém poderá, um dia. Isso não justifica desistir antes de tentar.
As lâminas faiscavam a cada contato, tilintando no solo acidentado como uma trilha de metal sendo pisoteada por gigantes. Sagramor e Caradoc se equiparavam, nenhum golpe passava por suas defesas, nenhuma espada avançava além da distância que a outra lhe permitia. Treinaram juntos durante tanto tempo, lutaram em tantas guerras. Conheciam um ao outro como as próprias famílias não chegariam a conhecer.
—Tudo o que queremos é voltar ao nosso mundo, Caradoc!
—E não é destruindo a representação sagrada de nossa divindade que conseguirão isso! Não entendem a calúnia que têm em mente?
—Você está louco!
—Vocês estão, e eu vou provar que os odeio!
Sagramor tinha habilidades similares a Caradoc, mas faltava-lhe algo: ódio. Hesitava ao golpear um dos homens que esteve ao seu lado durante anos. Caradoc não. Não odiava Sagramor, não odiava nenhum adversário. O ódio era dele, e apenas dele, pelas coisas terem chegado àquele ponto. Suas pancadas se tornaram mais pesadas, seus cortes mais precisos, tudo pelo ódio, uma raiva incontrolável, um frenesi que só acabou quando a lâmina atravessou o aço do peitoral de Sagramor, forçando o oponente a tombar em agonia.
—O que você se tornou, Caradoc? —tartamudeou o cavaleiro.
Sagramor olhou ao redor. Suas tropas estavam derrotadas, mas ainda restavam cavaleiros de seu inimigo. Perdera.
—Eu me tornei forte, pois escolhi o lado correto para me unir —respondeu ele. —Gostaria de deixar uma mensagem contigo, Sagramor, mas acredito que não vá sobreviver até que ela chegue a Arthur. Faremos de outro modo, então.
Com um aceno de mão, Caradoc chamou três de seus homens.
—O que vai fazer?
—Vamos escrever com tinta vermelha, meu caro companheiro —sorriu o insano cavaleiro. —Depois disso, vamos tornar as coisas mais quentes.

Mordred e Uriens guiavam as tropas na oração da fidelidade. Ao término, todos sustentaram suas espadas em riste, imitados por inúmeros soldados receosos, guerreiros experientes ou jovens desacostumados à arte de guerrear.
—Cavaleiros buscam a perfeição humana! —bradou Uriens, e todos repetiram suas palavras. —Respeitamos os semelhantes, os enfermos, as mulheres e as crianças. Somos leais na paz, mas acima de tudo, somos justos e valentes na guerra!
Houve um urro de vibração, e então todas as armas voltaram a suas bainhas.
—Acredita que podemos vencer essa guerra? —Mordred sussurrou.
Uriens virou-se para ele, deixando claramente à mostra o braço esquerdo, mutilado no confronto anterior.
—Que não exista medo em teu coração, Mordred —respondeu o cavaleiro de um só braço. —Se eu, que mal posso sustentar um escudo, não hesito ante um milhão de cavaleiros, não será você a nos trair pela decisão tola de seu irmão.
—Eu não tenho um irmão.
—Excelente.
Arthur e os demais chegaram neste momento. Todos os cavaleiros mais jovens se curvaram perante seu comandante, que fez sinal para que se levantassem. O silêncio reinou no proceder da cerimônia.
—Vamos nos preparar para uma nova investida —disse Arthur, Excalibur rutilando em sua bainha. —Desta vez, derrubaremos todos os muros daquela fortaleza que eles chamam de Camelot. Não há um castelo neste mundo que possa se comparar com a magnificência de nosso lar, meus homens! Ousam blasfemar contra o forte que tanto nos honrou, pagarão com suas vidas por isso!
A espada dourada riscou o ar, simbolizando a lenda que era.
—Em nome de Excalibur, e em nome do orgulho que tenho por todos vocês, venceremos essa batalha, de uma vez por todas!
Todos os cavaleiros urraram, repetindo calorosamente o grito de guerra que trouxeram consigo do outro mundo.
Arthur é o nosso rei! Arthur é o nosso rei! Arthur é o nosso rei!
Mas não o era.
—Onde está Sagramor? —perguntou Arthur, dessa vez murmurando para que apenas Uriens o escutasse.
—Ele acompanhou as patrulhas desta tarde, meu lorde. Não retornou até então.
—Vou verificar o andamento das sentinelas. Lancelot, quer me acompanhar? Precisamos definir novas estratégias para que possamos montar um cerco naquela fortaleza.
—Sim, meu senhor.
—Dividam as tropas em unidades, preparem cada batalhão para que um general possa comandar. Merlin, tome conta de alguns homens até que Sagramor esteja de volta. Se há de comandar um dia, é melhor que aprenda como é feito.
O feiticeiro assentiu, a expressão abobada.
Arthur e Lancelot se afastaram do acampamento, deixando para trás as barracas de mantimento e as armarias. Caminharam trocando informações quanto as batalhas anteriores, discutindo táticas e possibilidades, refletindo sobre os pontos fracos da tropa adversária.
Foi então que encontraram sangue.
—Merda, o que é isso agora? —Lancelot tinha a espada em mãos.
—Vamos.
Seguiram a trilha e foram surpreendidos por corpos, pedaços de armadura e armas quedadas. Havia claros sinais de combate, escudos destroçados por maças e ossos à mostra nos cadáveres de guerra. Entre as sentinelas, servos de Bedwyr, de Galahad, Gingalain e Lamorak. Até mesmo o símbolo de Caradoc estava em alguns dos escudos.
Ao longe, o corpo de Sagramor jazia sem vida, a pele tomada por queimaduras profundas. Estava cercado por uma mensagem tenebrosa, escrita com seu próprio sangue.
Onde está o nosso rei quando precisamos de um?
—Eles mataram um de nós —disse Lancelot, ajoelhado sobre o corpo de Sagramor. Fechou seus olhos com as mãos, orando por sua alma em silêncio. —Ousaram nos provocar. Não podemos deixar que isso passe impune.
—E não deixaremos —Arthur tinha firmeza na voz. Lancelot nada disse, mas notou naquelas palavras um pouco da valentia que há muito não via naquele homem. Era como um rei, novamente. —Eles vieram até nós em zombaria; vamos até eles com o caos nos olhos. Incineraram um amigo, um irmão. Vou fazer arder todas as esperanças e emoções que sobrevivem em suas almas decrépitas.

Aquela foi uma noite de luto, e também uma noite de preparativos.
A manhã chegaria em poucos minutos, mas antes dela chegariam as tropas de Arthur. Uma sentinela das proximidades foi silenciada, outros dois soldados tombaram nas flechas dos homens do rei. Aproximavam-se numa marcha silenciosa, diferente do comum. Não queriam apavorar, não queriam demonstrar superioridade, assustar com o baque de suas botas metálicas contra o solo.
Queriam surpreender, pois esta era a melhor chance que tinham.
Quando avistaram a primeira das unidades de Bedwyr, Arthur mandou que todos os seus homens parassem, fazendo uso de apenas um sinal de mão.
—Merlin —chamou ele. —Você comandará a tropa de Sagramor, como já havia dito. Vou distribuir meus homens pelos arredores, e então invadirei a fortaleza. Quero que esses traidores paguem pela morte de nosso irmão. Faça-os agonizar, derrube sobre eles a lua e todo o peso de suas atitudes. Não seremos derrotados.
—Sim, mestre.
—Meus irmãos —continuou o rei, voltando-se para os demais generais. —Confortem seus cavaleiros com palavras de honra. Após o primeiro grito, matamos ou morremos, pois nenhuma outra opção será válida.
Todos assentiram, e então as armas foram empunhadas.
Era hora do ataque.
A morte veio tão rápida quanto um manto de virotes, despejado sobre os protetores da fortaleza com violência e brutalidade. Quando o sol começou a nascer, o sangue já demarcava muito das redondezas de Camelot, empoçando-se nos corpos cujas vidas eram carregadas pela guerra. Os generais se separaram, Merlin partiu à frente, Arthur dispersou seus homens. Cada um tinha seu plano, sua posição, eram heróis num combate planejado.
Os adversários, no entanto, conheciam suas táticas. Após tantos anos de convivência, cada um daqueles homens poderia apontar os defeitos e qualidades dos outros, indicar as estratégias em cada situação. Assim sendo, mesmo surpreendendo num ataque sem aviso, logo os estandartes de Bedwyr, Caradoc, Gingalain, Galahad e Lamorak foram suspensos por seus homens, afrontando as tropas de cada irmão de arma. Lancelot partiu contra Bedwyr, impossibilitando-o de perseguir Arthur, que a essa altura já se infiltrava no castelo onde jazia o Santo Graal. Uriens se uniu a Merlin, e ambos confrontaram três dos generais, a magia calorosa do feiticeiro já cumprindo seu papel na desvantagem da batalha. Por último, Mordred, o gosto de sangue nos lábios. A espada tremia nas mãos, em riste; Caradoc se aproximava.
Irmãozinho —zombou o adversário.
—Você matou um dos nossos, Caradoc —disse o outro. —Eu não mais tenho um irmão.
—Ora, é uma pena! Nosso sangue é tão valente, tão heroico!
—O que há de heroico num traidor?
Caradoc avançou.
—Por que não me responde, escória?
As espadas se encontraram, a faísca radiante acompanhada do sol nascente. O choque das lâminas se repetiu por vezes, sinfônico e ritmado a todas as outras armas brancas que se abraçavam no conflito. Ao redor, outras incontáveis batalhas se misturavam, indescritíveis e irreparáveis; maças ruíam escudos, martelos esmagavam ossos, flechas trespassavam a carne mais frágil e desprotegida. Virotes e mais virotes escapavam das bestas das sentinelas, encontravam seu destino final em armaduras brilhosas; uma delas rasgou o estandarte de Caradoc, mas ele não se importou.
—Onde está Arthur? —perguntava Bedwyr, descarregando toda sua fúria contra Lancelot, que tinha dificuldade em resistir aos poderosos golpes desferidos pelo general.
—Guerreando, como todos nós —respondeu Lancelot.
—Galahad, encontre-o! —ordenou ele. —Arthur é um covarde! Pretende se aproveitar da guerra que nos cerca para capturar o Santo Graal.
—Vou arrancar a covardia pela sua garganta —disse Galahad, e então montou um cavalo sem dono no campo de batalha, abandonando seus homens sob a tutela de Gingalain.
Um corredor de homens incendiou no caminho de Galahad.
—Eu não faria isso, se fosse você —era Merlin, o cajado acima dos olhos. Por sua vontade, armaduras se partiram, o solo trincou num terremoto. —Há outras preocupações para atentar, Galahad.
—Posso cuidar dele —disse Gingalain. —Vá atrás de Arthur!
—Está enganando, meu caro. Nenhum de vocês pode cuidar de mim. A propósito, Arthur me pediu para lhes garantir um presente. Disse-me que a lua deveria ser de vocês, ou algo do tipo. Sendo ele um rei, quem sou eu para recusar tal ordem, não concorda?
Merlin ergueu os braços para o céu, e a lua que já desaparecia na manhã tremulou. Partiu em infindáveis peças, desabando sobre o mundo que não era deles como uma tormenta, feria apenas os oponentes. Nenhum general se feriu, nenhum cavaleiro de Arthur foi tocado, mas os demais sofreram na tempestade que se lançou do céu, rasgando as nuvens claras conforme o satélite daquele mundo despencava sobre a guerra.
—É impressionante —murmurou Galahad, desistindo de sua empreitada.
A guerra ao seu redor tornava-se conturbada. Um quarto da lua faltava no céu.
Lamorak se aproveitou da distração para apunhalar Merlin, mas o feiticeiro foi mais rápido. Não era um exímio espadachim, sequer sabia como utilizar uma espada. Era um mago, no entanto, e tudo o que um homem poderia fazer, Merlin sabia fazer com sua mágica. Defendeu-se com um escudo que não existia, atacou pelo reflexo do momento, empalando Lamorak numa lança multicolorida de força e luz.
—Lamorak! —Gingalain urrava.
—Nenhum de vocês pode me parar —disse Merlin. Ordenou que seus homens caçassem os fugitivos, matassem todos. —Arthur vai destruir o Santo Graal.

No interior da falsa Camelot, Arthur subia os lances de escadaria como se não houvesse amanhã. Os degraus espiralados dificultavam seu avanço, mas ele era incansável, e nada poderia pará-lo naquele instante. Excalibur estava em suas mãos, ousada e eterna, cintilando pela proximidade do artefato sagrado que almejava destruir. Matou três ou quatro cavaleiros, sem tempo para chorar pela honra que desprezava naqueles homens, e só então alcançou o último nível da fortaleza.
Havia uma única porta naquela câmara, uma porta larga e pesada, trancafiada por correntes e blocos de metal. Arthur se aproximou, tentou empurrar a porta, parecia impossível movê-la. Aquelas trancas eram feitas dos materiais mais resistentes daquele mundo. Sem escolhas, sustentou Excalibur e todo seu poder, ruiu as defesas que o impediam de prosseguir perante a lenda que tinha em mãos. Tudo se partiu como um pergaminho rasgando, as paredes desmoronaram de ambos os lados do largo arco que moldava aquele salão defensivo. Arthur se esgueirou pelos destroços, saltou sobre o que restara daquele escudo improvisado, encontrando ali o que tanto procurara.
Estava sobre um altar de mármore, rutilando enquanto o ar lhe acariciava a superfície. Um cálice maior do que os elmos que quedavam do lado de fora daquele local, maior do que as armas carregadas por grande parte dos cavaleiros. De tudo o que se podia pensar, o Santo Graal era mais. Mais incrível do que se pode descrever, mais mágico do que a própria magia, mais poderoso do que Merlin sequer sonharia em ser.
Mais do que a Excalibur, Arthur ousou pensar, mas a espada em suas mãos era tudo.
Aproximou-se daquele artefato, e a simples presença daquele objeto fazia a pele do general arder. A armadura enferrujou em certas partes, incapaz de suportar a pressão da mágica do Graal. Os cabelos de Arthur se tornaram mais grisalhos, os olhos perderam o brilho, os dedos afrouxaram a força exercida para carregar a espada lendária. Apenas Excalibur suportava todo aquele poder. Não hesitava, não deixava de brilhar, não fraquejava ante uma magia incompreensível, incomensurável, antiga.
Arthur levantou sua arma. Bastava um golpe, um único golpe, para todo aquele poder estilhaçar à sua frente, extinguindo o pesadelo de viver naquele mundo que não lhe pertencia. Poderia voltar para seu lar, para sua família, comemorar com todos os seus amigos, abandonar o título de rei. Poderia ser camponês, ser um homem, um pai.
Hesitou.
Com aquele artefato em mãos, Arthur poderia ser o que quisesse.
Era como se algo o chamasse, clamando por seu nome num túnel profundo e escuro. Tinha propostas macabras, ainda que tentadoras. Oferecia-se de corpo e alma para o general, fazia promessas que ninguém poderia acreditar, mas não mentia. Era o próprio Graal a falar com Arthur, mostrando-lhe cenários onde ele se tornava um Deus, onde mesmo Excalibur não era páreo para a lenda que ele se tornara. Ele era mais que a Excalibur, mais que Merlin, mais que o próprio Graal.
A tentação era grandiosa. O punho cerrado no cabo da arma oscilou, perdia as forças. Lá fora, a guerra estrondava pelo sangue e pela glória. Dentro da mente de Arthur, outra guerra, mais violenta, mais insegura.
—O que está fazendo?
A voz fez com que Arthur despertasse de seu transe. Era Merlin.
—Eu não sei —
—Você está hesitando, Arthur! Está se deixando levar pela ambição!
Estava, ainda que não pudesse acreditar naquilo.
—Eu falhei.
—Destrua o Graal!
—Eu não posso.
—Você pode!
Arthur olhou novamente aquele cálice sagrado. Era tudo, tudo mesmo. Poderia oferecer sonhos e realizações a qualquer homem que soubesse como utilizá-lo.
—Tem razão —disse ele, a confiança outra vez em sua voz. —Eu posso.
E, com a Excalibur, Arthur partiu o Santo Graal ao meio.
Esperou por uma explosão indizível, por luzes, por estrondos, mas não houve nada. Houve silêncio, e apenas isso. Arthur se sentiu inerte, como se o tempo estivesse parado, e estava. Tentou se mover, falhou. A espada lendária estava quedada ao solo.
Apenas Merlin se movia.
—Excelente, meu rei —disse o feiticeiro. —Agora sim tivemos uma vitória digna. Sabe, acho que vou aceitar a sua oferta. Ser o rei de Avalon não deve ser tão ruim, estou certo? Dominar tantas pessoas, tantas vidas ingênuas. É muito poder para um só homem, ou um só cavaleiro. Não para um mago.
Arthur não entendia. Queria perguntar, gritar, matar, mas era incapaz, então apenas escutou.
—Destruir o Santo Graal faz de mim o maior centro da magia do universo —contou o feiticeiro. —Este artefato era o único poder que podia se equiparar ao meu. Logo, sua empreitada desesperada acaba por me tornar um rei de proporções que nem mesmo você seria capaz de alcançar. Como se sente sendo um mero peão, Arthur?
Sentia muitas coisas, mas não sentia o próprio corpo.
—Sabe o que farei agora? Voltarei para Avalon. Serei um lorde, um governante. E vocês ficarão aqui, para sempre. Sem o poder do Graal, nenhum de vocês poderá retornar. Não há obstáculos, não mais. —Merlin pegou Excalibur no chão. —A propósito, levarei comigo essa espada. Somente você pode utilizá-la, meu rei, portanto eu vou mantê-la por perto. Não quero ser surpreendido.
Merlin sorriu, deu dois tapas provocantes no rosto de Arthur e partiu.
Lá fora, a guerra cessara. Quando o tempo voltou a correr, nenhum homem tinha forças para lutar. O silêncio era tumular, chegava a ferir. Arthur deixou a torre para trás com o coração abalado, sem sua arma. Os generais mais uma vez se reuniram, admitiram a tolice perante aqueles que se opuseram. Choraram pela morte de Lamorak e Sagramor, mas de que adiantaria chorar? Estavam presos na liberdade, trancafiados numa terra que nunca os veria como filhos.
No campo de batalha, todos eram assolados pela incerteza. Merlin se fora, provando ser ele o verdadeiro traidor. Partira, levando consigo a esperança, a vontade, a fé.
Restaram apenas cinzas.