Eclipse
Havia um guerreiro mascarado a afrontar
infindáveis cavaleiros e, assim, exército diante de exército, guerreavam.
Ele era um soberano. Trajado no mais
negro dos metais, portador da lâmina cuja extensão media-se de acordo com a
escuridão da noite, ele ostentava um poder que poucos homens têm a capacidade
de sonhar. Brilhava em seus olhos, sob o metal do elmo cerrado, a vermelhidão
do sangue despejado no campo de batalha, um tom rubro doloroso de se admirar, e
cada gota reprimia um grito de angústia e sofrimento que, por vezes, nunca fora
capaz de abandonar a garganta previamente decepada. Brilhava, também, o mais
soturno lampejo do aço negro que lhe protegia o corpo, inerte num passo
vagaroso, tomado por lamúria, com o qual o tirano trespassava o campo de
batalha a despejar caos e desordem com cortes e mortes.
Sob o elmo escuro como a noite, havia
tudo, exceto piedade. A mente que reinava aquele corpo de físico insuperável
não mais se contentava com o mundano, o comum, sequer se felicitaria com o
natural que os homens poderiam oferecer. Os pensamentos eram caóticos,
obscurecidos por degraus de uma infelicidade constante, a mesma infelicidade
depressiva e assombrosa que corrompe o mais puro dos cavaleiros divinos, que
faz quedar o mais límpido dos paladinos, que faz de um deus de luzes e preces a
criatura mais hedionda que um plano há de conhecer. Ali, não havia um
cavaleiro, um paladino ou um deus; não havia sequer um homem.
Havia um guerreiro mascarado, e ele
matava sem pensar, sem hesitar, sem ter medo da morte ou da vida.
—Senhor, ele é forte demais! —urrava um
dos cavaleiros, trêmulo pelo temor criado na aura da presença daquela entidade
na forma de um guerreiro de espada negra.
—Todos nós somos fortes demais —bradou um
general, e seu grito era ordem, valentia e domínio. —Todos nós somos mais do
que apenas um ser!
O mesmo general tombou num só golpe, um
golpe impossível de se avistar ou imaginar ou descrever, mas um golpe que
existiu, cerrou carne e ossos e fez ceder a fortaleza de músculos que era
Hadril, o líder dos Nobres do Sul, como um punhal faz ceder a folha verde de
uma árvore simplória.
—Nós não podemos enfrentar algo assim! —oscilavam
as vozes mais distantes.
—Por favor, não nos mate —imploravam, e
morriam por implorar a vida, da mesma forma que morreriam por aceitar a
derrota.
—Salvem-se, ele é forte demais! —gritavam
as vozes restantes, longínquas das ordens dos comandantes mais insanos,
ansiosos por um combate sem vitória a ser almejada, vozes de homens que
pensavam apenas em retornar para suas casas, para suas famílias, carregando não
a conquista, mas sim somente a sobrevivência.
O Guerreiro do Escuro cerrou o dia, e a
noite caiu como um trovão, à sua vontade. O mundo girava à sua vontade. O ar era
respirado à sua vontade. A espada nas mãos era Eclipse, a forma lapidada de uma
deusa antiga e cadavérica, a única capaz de garantir a um homem a realização de
todos os seus desejos.
E ali estava um homem com todos os seus
desejos realizados: destruído pelo interior, sem nada além da morte nas mãos e
nos olhos, sem nada além do sangue na arma e na armadura. Sem nada além do ódio
na mente e no coração.
Eclipse uivou, como uma matilha de lobos
atrozes não seria capaz de uivar, e matou como os maiores desastres naturais
seriam incapazes de matar.
Acima de todas as coisas, o Guerreiro do
Escuro respirava com prazer. Ele gostava daquilo. Ele amava aquela sensação. Por dentro do aço
negro, por trás dos olhos escarlates, um homem que não mais era homem sorria, ansioso
pelos gritos e pelos fins de ciclo que sua lâmina mágica traria, disposto a
destruir o que sequer fora criado para satisfazer o vazio que jazi na imensidão
de seus macabros pensamentos. Caminhando sem pressa, desfrutando da agonia de
ingênuos cavaleiros que ousavam afrontar os poderes de uma entidade impiedosa e
descontrolada, o Cavaleiro da Sombra cortava, ceifava e dava fim a vidas e mais
vidas, escutando cada grito como uma história. Havia o conto do pai de família,
o conto do filho mais novo que não retornaria, o conto do amante que morria ao
lado do amigo que traíra, o conto do ferreiro que produzira armas para todos
durante a vida toda sem saber que um dia teria de utilizá-las, e outros contos
e afins. Contos de mortes. Contos sussurrados no vento gélido que ululava na
morte de cada homem, de cada cavaleiro, de cada pessoa. Contos que faziam o
Senhor do Caos vibrar no anseio de ser quem era, de ser o quê era.
De dar fim ao que, um dia, teve um
começo.
Ceifando, aquele monstro de armadura
obscura via espectros de famílias que chorariam em enterros cujos corpos não
existiam para se homenagear; via mães e esposas carentes da companhia dos
amados, via filhas agarradas às pernas de mulheres frágeis na esperança de que
a ruína que suas vidas se tornariam não lhes fizesse ceder a vontade de
prosseguir, de continuar, de dar um passo atrás do outro na subida fervorosa da
escada da vida.
Diferente de todos aqueles homens que
morriam, o Cavaleiro da Sombra não tinha uma história. Ele não tinha um nome,
não tinha um passado, não tinha um presente ou um futuro. Ele tinha Eclipse, e
só. Todos os desejos teriam de ser realizados, mas talvez tudo não fosse nada. Assim sendo, ele não tinha nada,
nada além do vazio de nada ser, de nada ter e nada saber.
Mas não fora sempre assim.
Cavalgando a três dias com poucas
paradas, Rasthar começava a alucinar sobre o couro escudado de Sunai, o corcel
mais ágil das Terras do Leste.
O céu postava-se num azulão interminável,
coberto pelo algodão singelo de nuvens carregadas. Mais tarde, antes do
anoitecer, talvez, choveria. Uma tempestade, Rasthar pensava. Uma tempestade
que lavaria sua alma e levaria para longe de si as dúvidas, os medos e as
incertezas, mas não o ódio e a sede de vingança.
Naquela noite, e não além da madrugada daquele
dia hediondo, um homem morreria nas mãos de Rasthar.
Não um homem qualquer, no entanto.
Tratava-se do Senhor do Escuro, o Tirano do Caos, o Cavaleiro da Sombra. Entre
títulos honrosos de obscuridade serena, aquele era um guerreiro caótico,
oriundo das profundezas do inferno, responsável pela queda de exércitos e
impérios. Possuía, nas mãos, a arma mais poderosa de todo o Reino dos
Renascentes, e os magos mais antigos do Protetorado ousavam apontá-la como a
mágica mais poderosa do mundo. Eclipse, seu nome, fazia tremular os joelhos
firmes de cavaleiros épicos, e mesmo os mais experientes e destemidos viam
falhar a bravura diante da pronúncia daquela palavra que, outrora, carregava um
significado comum, do belíssimo espetáculo de um abraço entre lua e sol.
Como a tantas outras fortalezas e
castelos, Rasthar viu seu lar, a Morada dos Valentes, quedar, e viu, junto dos
muros defensivos do castelo, um mundo ruir. Sua vida, sua história, sua
família, tudo aquilo ficava para trás conforme as casas incendiavam no caos e
na morte que se arrastavam na lâmina negra de Eclipse, e ele assistia àquilo
incapaz, com as pernas sob os destroços de uma das barricadas, aguardando pela
morte que, naquele momento, parecia tão convidativa. Aprisionado na própria
tolice, Rasthar viu sua esposa ceder ao corte laminado daquela mágica impura, e
o grito se perdeu no silêncio da maior das dores. Viu, em seguida, o mesmo
corte livrar o mundo da vida de suas filhas, as lindas gêmeas Anabela e Elisa,
e elas tombaram como um terremoto na paisagem cinzenta e inacabada daquela
pintura sofrida. Preso como estava, era apenas mais um e, como mais um, era
nada diante daquele homem. Daquele ser, pois homem algum haveria de ter tamanho
poder. Mortal algum haveria de carregar a força de uma deusa nas mãos, como o
Lorde das Trevas carregava.
Alguém tinha de dar um fim ao reinado da
escuridão.
Rasthar sentou-se ao lado de Sunai, e as
memórias pareciam vívidas em sua mente. Via sua recuperação: a dor maior não
era nos membros feridos, mas sim na mente em ruínas. Via sua melhora, seu
crescimento físico e espiritual, via o ódio que crescia dentro de si. Os outros
também viam, e poucos aprovavam os sentimentos que corroíam o sangue daquele
cavaleiro que, um dia, fora um herói para o povo. Agora, Rasthar era a sombra
de um grande homem, a simples sombra negra de alguém que nasceu para reinar,
para governar e proteger o povo, mas que fora destinado a uma desgraça capaz de
puir a linha dos destinos mais perfeitos e transformá-los em vidas pacatas e
sem cor.
—Nós estamos perto, Sunai —disse ele. A
voz lhe pareceu estranha. Há meses não conversava com ninguém além do espelho
que refletia sua angústia. Há semanas não ouvia nem mesmo o espelho. E há dias
não abria a própria boca, a menos que fosse para saciar a fome ou a sede que
lhe aturdiam. —Posso sentir. Estamos perto.
O ar tornou-se úmido, e os galhos das
árvores começaram a se remexer. As planícies ganhavam um vento soprado em
carícia, nada além de uma brisa agradável do prelúdio de uma chuva forte.
Qualquer cavaleiro sabia que, em horas como aquela, deveriam levantar
acampamento e parar, perder a noite, repousar enquanto a natureza fazia seu
trabalho. Rasthar também sabia disso, mas tinha algo a fazer, e não tinha tempo
para descansar.
—Vamos —levantou-se, puxando as rédeas do
cavalo que mal se aguentava em pé. —Podemos comer enquanto andamos. Beba sua
água. Você vai precisar.
Sunai bebericou um vasilhame de água, e
galopou mastigando, pois assim mandava seu rei.
A primeira gotícula de chuva alcançou
Rasthar junto de uma imagem que lhe garantiu sentimentos obscuros: um castelo
negro, de muros escuros e torres altíssimas, mostrou-se nas proximidades do
horizonte. Estavam perto, muito perto, tão perto que ele podia ver o que ninguém mais via. Lá estava
Tártaro, a última das Fortalezas Sombrias do Reino dos Renascentes, a morada do
Senhor das Trevas, do Cavaleiro da Sombra. Do maldito que dera um fim à vida, à
história e aos sonhos de Rasthar.
—Eu vou vingá-las —ele repetia, não para
Sunai. Falava consigo mesmo. Falava com suas filhas e com sua esposa, com sua
família. Falava com os fantasmas de seu passado glorioso, com o espectro de sua
honra, com as sombras de suas virtudes. —Eu vou vingar todas vocês.
A chuva chegou, e era mesmo tempestuosa.
Sunai teve dificuldade de cavalgar
conforme a terra se tornava barro, e seus passos diminuíram, perderam
velocidade, tornaram-se pesados e lamacentos. Rasthar insistiu ao seu limite,
mas o cavalo arfava, exausto, alcançando o limite que um animal haveria de ter.
Rasthar era incansável, insaciável em sua busca pelo extermínio, pela vingança;
Sunai era apenas uma montaria sem destino, sem sonhos ou motivações.
—Você me acompanhou durante toda uma
vida, amigo —disse o cavaleiro, desmontando seu animal, que quedou de joelhos,
ofegante. —Sou muito grato a você. Ao fim de tanto tempo, de tantos anos,
ofereço-lhe aquilo que nenhuma montaria dos Renascentes recebeu nos últimos
séculos: a liberdade.
O cavalo não deveria entender tais
palavras, mas algo em seus olhos mudou. Havia um brilho incerto, um fosco
hesitante, um desejo impossível. A liberdade garantida aos animais era bela,
singela e agradável, um ato admirável de um cavaleiro, raro e quase que
inexistente. Mas não era uma honra. Um cavalo livre poderia ser uma boa
montaria, mas ainda era uma montaria abandonada por seu amo. Ele não servira
mais. Não poderia levá-lo, ou levar quaisquer outros cavaleiros, a lugar algum.
Galoparia pelo resto de seus dias sem destino, sem rumo ou rota de fuga, sem
nada.
Sunai não desejava aquilo.
—Obrigado, Sunai. Você foi mais que um
cavalo: foi um cavaleiro, como eu. Os títulos que alcancei se originam em suas
costas rígidas, companheiro. A glória que um dia obtive se marca no relincho da
montaria que os exércitos temiam. Agradeço pela vida que me ofereceu, e hoje
lhe ofereço uma vida muito melhor.
Não era aquelas as palavras esperadas
pelo corcel.
—Vá embora, amigo. Vá, seja livre. Corra
para onde o vento te mandar.
Um coração de animal doía, mesmo sem
entender o porquê.
—Eu não preciso mais de você.
Rasthar não chorou na despedida. Tempos
atrás, talvez, choraria, mas não naquele dia. Não havia mais lágrimas naquele
homem. Não havia dor maior do que já sentira, não havia pavor maior do que
aqueles que lhe aturdiram até então. Ele não chorou, sequer acenou para o
cavalo que deixou para trás. Apenas virou-se com as mãos na espada que jazia
embainhada em sua cintura, e caminhou com passos lentos, depois rápidos,
sumindo na linha do horizonte que a visão de Sunai alcançava.
O cavalo não galopou para longe, livre.
Sentia-se preso, mais do que nunca. Deitou-se para descansar, e nunca mais
reergueria os olhos ou os desejos.
Além do companheiro abandonado, Rasthar
seguia na tempestade.
O metal que lhe protegia arrastava-se nos
campos barrosos que circundavam aquela construção onipotente. Da prata, pouco
se via; restava o marrom natural do mundo, o verde lamacento do musgo, o cobre
da ferrugem que o tempo lhe trouxera. Da prata, restava somente o coração de
Rasthar, que parecia inerte, impossibilitado de bater após tamanho sofrimento.
A espada nas mãos cantarolava no silêncio, e sua voz metálica parecia miar um
som dos bardos, uma canção de valentia, de drama e tragédia.
E
quando tombarem os montes, e quando restarem colinas
Postar-me-ei
diante desta vida cristalina
E
quando ceder a vontade, e quando acabar a esperança
Postar-me-ei
fortalecido por sorrisos de criança
Rasthar deixou escapar um sorriso
tristonho e desesperado.
—Não existem mais crianças para sorrir
—murmurou, pensando alto. —Não existem mais motivos para sorrir.
Só existia a morte.
Os muros escuros pareciam altos demais.
Entre duas torres sinistras, erguia-se um
portão de aço negro, o metal fosco que ilustrava a armadura daquele que pusera
fim ao legado de um futuro rei. Rasthar apenas aguardou, e o portão se abriu,
permitindo sua entrada. Para o caos, era sempre divertido ver o bem ousar
afrontá-lo. Era sempre motivo de risos quando um único homem chegava até ali,
diante do ser que derrubara exércitos e impérios, na esperança de que uma arma
comum, sem nome ou mágica, pudesse enfrentar Eclipse, a Espada das Espadas, a
Lâmina da Noite, o Vulto do Luar. No fundo, Rasthar sabia que espada alguma
faria frente àquela monstruosidade negra. Sabia que mortal algum seria forte o
suficiente para enfrentar o Filho do Aço Negro, o Caos Abroquelado, o Servo dos
Nove Infernos. Ele não era diferente.
Por isso buscara forças no que vinha além
da compreensão.
Subindo as escadas daquela fortaleza,
Rasthar lembrava-se dos anos que lhe custaram caro demais. Ele precisava de
força, precisava de uma força que seu mundo não tinha. Seu motivo era a
vingança, seu sentimento era o ódio. Assim sendo, quando requisitou aos anjos,
o céu o renegou. Uma vez antes, fora escutado pelos seres além das nuvens, mas
não mais. Ele não era mais aquele homem de virtudes e pureza. Não era mais
aquele jovem determinado a mudar o universo com um sorriso. Era uma sombra, o
que restara de um príncipe e, como tal, fora rejeitado pelo céu. Nenhuma ajuda
viria dos anjos naquele dia, e nenhum agradecimento nasceria dos lábios de
Rasthar.
Restaram somente suas palavras, tomadas
por rancor.
—Eu não preciso do céu. O que tem de
quedar na terra, tem de ser enfrentado pela terra.
Ou pelo que existe sob os domínios do
mundo.
Sem escolhas ou esperanças, Rasthar
desceu até o inferno em busca de poder. O inferno não tinha sol ou lua; só
havia dor, gritos e desespero, lamúrias e prantos doentios. Havia peste, fome,
guerra e morte, como pregam os cavaleiros do apocalipse. Havia pragas e árvores
de crianças mortas, fortalezas de ossos e órgãos, assentos de dentes e unhas,
torturas intermináveis, castigos hediondos. Havia o inferno, e além do inferno
Rasthar se atirou, gritando para quem lhe escutasse que ele precisava de ajuda,
que precisava de poder, que precisava de uma luz que afrontasse Eclipse.
Ou de uma sombra ainda maior.
—Eu posso lhe ajudar —disse uma voz no
escuro.
—Quem é você?
—Não direi que sou amigo, pois amigos
inexistem nestas terras. Sou o quê você procura, nada mais. Sou a sombra além
das sombras, o escuro além do breu, a morte além da morte.
—E o que você quer de mim?
O que todos os monstros e demônios sempre
querem: a alma.
Rasthar subia as escadas da fortaleza,
recordando-se que vendera sua alma para alcançar aquele lugar esperançoso,
poderoso o suficiente para derrubar o indestrutível.
No terraço daquele local, no escuro de um
trono de aço negro, lá estava ele. Sentado em sua imponência, como um
governante de todos os reinos, como um lorde de todos os mundos, o Cavaleiro da
Sombra aguardava, sem um sorriso ou um temor. Havia somente um elmo metálico e
obscuro, sem expressão. Por trás do aço, cintilavam olhos escarlates, rutilava
uma mente sem histórias ou virtudes. Por trás do aço, erguia-se um gigante
imortal, um deus que tinha uma deusa nas mãos.
Eclipse estava lá, onipotente e
esplendorosa. Recebera este nome pois, à frente do brilho nos olhos de um
mortal, ela era como a lua sobre o sol: tudo se tornavam sombras. Toda
esperança se cegaria num simples desejo de Eclipse.
Rasthar não hesitou.
Ele já não tinha brilho nos olhos.
Ele já não tinha esperança alguma.
Na tempestade, sua voz ecoou, como a de
um rei:
—As cicatrizes desta noite farão do mundo
um lugar diferente, Soberano da Malevolência. Nada restara do Exército de um
Homem Só. Nada restara do Domínio do Aço Negro. Nada restara de você ou de seus
planos, maldito. Nada restara do infeliz que acabou com a minha vida.
Eclipse parecia respirar nas mãos do
cavaleiro de aço negro, mas não ele. Ele era como uma estátua, inerte e
inexpressiva. Assistia, ouvia, vivia, e só.
—Levante-se e morra com a honra dos
cavaleiros —dizia Rasthar, que pouco entendia de honra ou de cavaleiros naquele
instante. Sua mente palpitava nas memórias de sua esposa e de suas filhas. Ele
escutava os gritos, as dores, e chorava por dentro, mas nunca mais choraria por
fora. Os olhos eram ódio e fúria, nada mais. —Ou morrerá sem glória alguma,
digerido pelos pecados que lhe abraçam, tirano.
O Senhor das Trevas não se levantou.
Rasthar tirou sua espada da bainha, e o
fogo que o consumiu era intenso. Deu-lhe asas, deu-lhe brilho, deu-lhe o vigor
de uma fênix. Sua arma não era mágica: ele era. Ele era o fogo, a força, a luz.
Ele era o próprio inferno.
Seus olhos queimavam nas chamas que
acolhiam toda sua glória. A espada se ergueu, girou no ar, riscou o mundo com
um fogo escarlate e brilhoso. A lâmina era tomada por cicatrizes, fraquejando
diante de tamanho poder, da magia que era incompreensível. O cabo se incinerava
no simples toque de Rasthar, mas ele não sentia dor ou medo. Ele era o inferno,
queimava como todo o fogo dos mundos não queimaria. Queimava por coragem, por
bravura, por poder. Queimava por vingança.
Seus passos fizeram a fortaleza oscilar,
trêmula, fizeram o Lorde do Escuro se postar em pé, tomar Eclipse nas mãos.
O fogo engoliu a ambos num só golpe, e
queimou. Queimou sonhos e pesadelos, queimou lembranças e desejos, queimou
vontades e determinações. O fogo abraçou Eclipse como uma velha conhecida,
sorriram juntos, e as chamas tornaram-se negras, enclausuradas nas sombras da
Lâmina da Noite. Rasthar gritou, flamejante num anseio que sequer se lembrava,
cortou a noite, as nuvens, a chuva e o mundo com sua espada de ferro simples, e
ela se partiu, mas as chamas não se dispersaram. Ele tinha uma espada de puro
fogo, uma espada de inferno, e ela gritava como almas castigadas, chorava como
crianças torturadas, urrava como almas destinadas ao sofrimento eterno. Eclipse
sorriu, poderosa, mas o fogo a engoliu também, e então se engolfou na noite
chuvosa e, por fim, desapareceu.
Um cavaleiro sem nome caiu de joelhos ao
chão, sem forças.
Nada restara do Lorde do Escuro. O fogo o
levou para sempre, assim como levou todo o resto.
Restara um homem que nascera para ser
rei, para ser bom, mas que se enganara nas escolhas. Restara um homem sem nome,
sem glória, sem honra, passado ou virtudes. Restara um homem sem nada, mas com
uma espada.
Uma espada negra como a noite.
Ele se levantou, escorado na amurada da
fortaleza. Tomou Eclipse do chão, admirou-a, umedecida pela chuva fria. Era uma
bela espada aquela. Uma espada capaz de realizar quaisquer desejos. Uma espada
capaz de fazer de um homem comum um deus.
—Diga-me o que desejas, mortal —a voz
ecoava na mente do cavaleiro sem nome. Vinha da espada, mas vinha de além.
Vinha de sobre as nuvens, de sob o mundo. Vinha de todos os lugares.
Pensou.
Em sua mente, nada havia. Não se lembrava
de nada. Não desejava nada.
Assim, deixou que a própria espada o
tomasse, e seu desejo foi o mesmo de tantos outros que, antes dele, tocaram a
Lâmina da Noite.
—Caos —sussurrou, e aquela seria sua
última palavra por toda uma vida.
Havia um guerreiro mascarado a afrontar
infindáveis cavaleiros e, assim, exército diante de exército, guerreavam.
Ele tivera um nome, um dia. Tivera uma
história, um passado. Amou e foi amado. Sofreu, como aqueles ao seu redor
sofriam. Mas teve seu desejo realizado e, agora, tinha o caos ao seu domínio.
Hadril se reergueu. Morrera, sim, mas a
morte não lhe era um obstáculo. Nada lhe seria um obstáculo naquela noite de
guerra. Ele se ergueu como uma fênix, e o metal de seu corpo e de sua arma
cintilou, coberto de fogo. Ganhou asas, ganhou força, ganhou mágica. Nada em si
era encantado: ele o era. O fogo que o acolhia não era um fogo qualquer; era
mais. Era um fogo acima do fogo de todos os mundos.
Era o próprio inferno.
Hadril sofrera nas mãos do Cavaleiro da
Sombra. Perdera sua família, sua honra, seus sonhos. Perdera tudo. Desejava
vingança, acima de qualquer coisa. Desejava ser forte para tirar a vida de quem
lhe tirou o desejo de viver. Desejou poder, um poder que o céu não lhe
ofereceu.
Um poder que encontrou somente no
submundo.
—Eu posso lhe ajudar —disse uma voz no
escuro de suas lembranças.
—Quem é você?
—Não direi que sou amigo, pois amigos
inexistem nestas terras. Sou o quê você procura, nada mais. Sou a sombra além
das sombras, o escuro além do breu, a morte além da morte.
—E o que você quer de mim?
O que todos os monstros e demônios sempre
querem: a alma.
Hadril aceitou, e agora era o inferno
encarnado. Tinha o fogo que consumia o mundo, e o Lorde do Escuro se viu
quedar. Eclipse tocou o solo, fortalecida. Ela sempre se fortalecia. Os Mestres
do Aço Negro sempre quedavam, mas ela sempre estava ali, poderosa. Ela sempre
os enganava no Plano Inferior. Ela sempre os dominava em seus próprios mundos.
Ela sempre extinguia a luz com uma
escuridão assombrosa.
Como um eclipse.
Puta. Que. Pariu. É um conto realmente Épico. Salvas infinitas para quem o escreveu. Infinitas!
ResponderExcluirAgradeço mesmo pelo comentário Elder, e fico feliz que tenha gostado! Não deixe de conferir os próximos contos do blog! Abraço!
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