sábado, 11 de maio de 2013

Conto - Eclipse


Eclipse

Havia um guerreiro mascarado a afrontar infindáveis cavaleiros e, assim, exército diante de exército, guerreavam.
Ele era um soberano. Trajado no mais negro dos metais, portador da lâmina cuja extensão media-se de acordo com a escuridão da noite, ele ostentava um poder que poucos homens têm a capacidade de sonhar. Brilhava em seus olhos, sob o metal do elmo cerrado, a vermelhidão do sangue despejado no campo de batalha, um tom rubro doloroso de se admirar, e cada gota reprimia um grito de angústia e sofrimento que, por vezes, nunca fora capaz de abandonar a garganta previamente decepada. Brilhava, também, o mais soturno lampejo do aço negro que lhe protegia o corpo, inerte num passo vagaroso, tomado por lamúria, com o qual o tirano trespassava o campo de batalha a despejar caos e desordem com cortes e mortes.
Sob o elmo escuro como a noite, havia tudo, exceto piedade. A mente que reinava aquele corpo de físico insuperável não mais se contentava com o mundano, o comum, sequer se felicitaria com o natural que os homens poderiam oferecer. Os pensamentos eram caóticos, obscurecidos por degraus de uma infelicidade constante, a mesma infelicidade depressiva e assombrosa que corrompe o mais puro dos cavaleiros divinos, que faz quedar o mais límpido dos paladinos, que faz de um deus de luzes e preces a criatura mais hedionda que um plano há de conhecer. Ali, não havia um cavaleiro, um paladino ou um deus; não havia sequer um homem.
Havia um guerreiro mascarado, e ele matava sem pensar, sem hesitar, sem ter medo da morte ou da vida.
—Senhor, ele é forte demais! —urrava um dos cavaleiros, trêmulo pelo temor criado na aura da presença daquela entidade na forma de um guerreiro de espada negra.
—Todos nós somos fortes demais —bradou um general, e seu grito era ordem, valentia e domínio. —Todos nós somos mais do que apenas um ser!
O mesmo general tombou num só golpe, um golpe impossível de se avistar ou imaginar ou descrever, mas um golpe que existiu, cerrou carne e ossos e fez ceder a fortaleza de músculos que era Hadril, o líder dos Nobres do Sul, como um punhal faz ceder a folha verde de uma árvore simplória.
—Nós não podemos enfrentar algo assim! —oscilavam as vozes mais distantes.
—Por favor, não nos mate —imploravam, e morriam por implorar a vida, da mesma forma que morreriam por aceitar a derrota.
—Salvem-se, ele é forte demais! —gritavam as vozes restantes, longínquas das ordens dos comandantes mais insanos, ansiosos por um combate sem vitória a ser almejada, vozes de homens que pensavam apenas em retornar para suas casas, para suas famílias, carregando não a conquista, mas sim somente a sobrevivência.
O Guerreiro do Escuro cerrou o dia, e a noite caiu como um trovão, à sua vontade. O mundo girava à sua vontade. O ar era respirado à sua vontade. A espada nas mãos era Eclipse, a forma lapidada de uma deusa antiga e cadavérica, a única capaz de garantir a um homem a realização de todos os seus desejos.
E ali estava um homem com todos os seus desejos realizados: destruído pelo interior, sem nada além da morte nas mãos e nos olhos, sem nada além do sangue na arma e na armadura. Sem nada além do ódio na mente e no coração.
Eclipse uivou, como uma matilha de lobos atrozes não seria capaz de uivar, e matou como os maiores desastres naturais seriam incapazes de matar.
Acima de todas as coisas, o Guerreiro do Escuro respirava com prazer. Ele gostava daquilo. Ele amava aquela sensação. Por dentro do aço negro, por trás dos olhos escarlates, um homem que não mais era homem sorria, ansioso pelos gritos e pelos fins de ciclo que sua lâmina mágica traria, disposto a destruir o que sequer fora criado para satisfazer o vazio que jazi na imensidão de seus macabros pensamentos. Caminhando sem pressa, desfrutando da agonia de ingênuos cavaleiros que ousavam afrontar os poderes de uma entidade impiedosa e descontrolada, o Cavaleiro da Sombra cortava, ceifava e dava fim a vidas e mais vidas, escutando cada grito como uma história. Havia o conto do pai de família, o conto do filho mais novo que não retornaria, o conto do amante que morria ao lado do amigo que traíra, o conto do ferreiro que produzira armas para todos durante a vida toda sem saber que um dia teria de utilizá-las, e outros contos e afins. Contos de mortes. Contos sussurrados no vento gélido que ululava na morte de cada homem, de cada cavaleiro, de cada pessoa. Contos que faziam o Senhor do Caos vibrar no anseio de ser quem era, de ser o quê era.
De dar fim ao que, um dia, teve um começo.
Ceifando, aquele monstro de armadura obscura via espectros de famílias que chorariam em enterros cujos corpos não existiam para se homenagear; via mães e esposas carentes da companhia dos amados, via filhas agarradas às pernas de mulheres frágeis na esperança de que a ruína que suas vidas se tornariam não lhes fizesse ceder a vontade de prosseguir, de continuar, de dar um passo atrás do outro na subida fervorosa da escada da vida.
Diferente de todos aqueles homens que morriam, o Cavaleiro da Sombra não tinha uma história. Ele não tinha um nome, não tinha um passado, não tinha um presente ou um futuro. Ele tinha Eclipse, e só. Todos os desejos teriam de ser realizados, mas talvez tudo não fosse nada. Assim sendo, ele não tinha nada, nada além do vazio de nada ser, de nada ter e nada saber.
Mas não fora sempre assim.

Cavalgando a três dias com poucas paradas, Rasthar começava a alucinar sobre o couro escudado de Sunai, o corcel mais ágil das Terras do Leste.
O céu postava-se num azulão interminável, coberto pelo algodão singelo de nuvens carregadas. Mais tarde, antes do anoitecer, talvez, choveria. Uma tempestade, Rasthar pensava. Uma tempestade que lavaria sua alma e levaria para longe de si as dúvidas, os medos e as incertezas, mas não o ódio e a sede de vingança.
Naquela noite, e não além da madrugada daquele dia hediondo, um homem morreria nas mãos de Rasthar.
Não um homem qualquer, no entanto. Tratava-se do Senhor do Escuro, o Tirano do Caos, o Cavaleiro da Sombra. Entre títulos honrosos de obscuridade serena, aquele era um guerreiro caótico, oriundo das profundezas do inferno, responsável pela queda de exércitos e impérios. Possuía, nas mãos, a arma mais poderosa de todo o Reino dos Renascentes, e os magos mais antigos do Protetorado ousavam apontá-la como a mágica mais poderosa do mundo. Eclipse, seu nome, fazia tremular os joelhos firmes de cavaleiros épicos, e mesmo os mais experientes e destemidos viam falhar a bravura diante da pronúncia daquela palavra que, outrora, carregava um significado comum, do belíssimo espetáculo de um abraço entre lua e sol.
Como a tantas outras fortalezas e castelos, Rasthar viu seu lar, a Morada dos Valentes, quedar, e viu, junto dos muros defensivos do castelo, um mundo ruir. Sua vida, sua história, sua família, tudo aquilo ficava para trás conforme as casas incendiavam no caos e na morte que se arrastavam na lâmina negra de Eclipse, e ele assistia àquilo incapaz, com as pernas sob os destroços de uma das barricadas, aguardando pela morte que, naquele momento, parecia tão convidativa. Aprisionado na própria tolice, Rasthar viu sua esposa ceder ao corte laminado daquela mágica impura, e o grito se perdeu no silêncio da maior das dores. Viu, em seguida, o mesmo corte livrar o mundo da vida de suas filhas, as lindas gêmeas Anabela e Elisa, e elas tombaram como um terremoto na paisagem cinzenta e inacabada daquela pintura sofrida. Preso como estava, era apenas mais um e, como mais um, era nada diante daquele homem. Daquele ser, pois homem algum haveria de ter tamanho poder. Mortal algum haveria de carregar a força de uma deusa nas mãos, como o Lorde das Trevas carregava.
Alguém tinha de dar um fim ao reinado da escuridão.
Rasthar sentou-se ao lado de Sunai, e as memórias pareciam vívidas em sua mente. Via sua recuperação: a dor maior não era nos membros feridos, mas sim na mente em ruínas. Via sua melhora, seu crescimento físico e espiritual, via o ódio que crescia dentro de si. Os outros também viam, e poucos aprovavam os sentimentos que corroíam o sangue daquele cavaleiro que, um dia, fora um herói para o povo. Agora, Rasthar era a sombra de um grande homem, a simples sombra negra de alguém que nasceu para reinar, para governar e proteger o povo, mas que fora destinado a uma desgraça capaz de puir a linha dos destinos mais perfeitos e transformá-los em vidas pacatas e sem cor.
—Nós estamos perto, Sunai —disse ele. A voz lhe pareceu estranha. Há meses não conversava com ninguém além do espelho que refletia sua angústia. Há semanas não ouvia nem mesmo o espelho. E há dias não abria a própria boca, a menos que fosse para saciar a fome ou a sede que lhe aturdiam. —Posso sentir. Estamos perto.
O ar tornou-se úmido, e os galhos das árvores começaram a se remexer. As planícies ganhavam um vento soprado em carícia, nada além de uma brisa agradável do prelúdio de uma chuva forte. Qualquer cavaleiro sabia que, em horas como aquela, deveriam levantar acampamento e parar, perder a noite, repousar enquanto a natureza fazia seu trabalho. Rasthar também sabia disso, mas tinha algo a fazer, e não tinha tempo para descansar.
—Vamos —levantou-se, puxando as rédeas do cavalo que mal se aguentava em pé. —Podemos comer enquanto andamos. Beba sua água. Você vai precisar.
Sunai bebericou um vasilhame de água, e galopou mastigando, pois assim mandava seu rei.
A primeira gotícula de chuva alcançou Rasthar junto de uma imagem que lhe garantiu sentimentos obscuros: um castelo negro, de muros escuros e torres altíssimas, mostrou-se nas proximidades do horizonte. Estavam perto, muito perto, tão perto que ele podia ver o que ninguém mais via. Lá estava Tártaro, a última das Fortalezas Sombrias do Reino dos Renascentes, a morada do Senhor das Trevas, do Cavaleiro da Sombra. Do maldito que dera um fim à vida, à história e aos sonhos de Rasthar.
—Eu vou vingá-las —ele repetia, não para Sunai. Falava consigo mesmo. Falava com suas filhas e com sua esposa, com sua família. Falava com os fantasmas de seu passado glorioso, com o espectro de sua honra, com as sombras de suas virtudes. —Eu vou vingar todas vocês.
A chuva chegou, e era mesmo tempestuosa.
Sunai teve dificuldade de cavalgar conforme a terra se tornava barro, e seus passos diminuíram, perderam velocidade, tornaram-se pesados e lamacentos. Rasthar insistiu ao seu limite, mas o cavalo arfava, exausto, alcançando o limite que um animal haveria de ter. Rasthar era incansável, insaciável em sua busca pelo extermínio, pela vingança; Sunai era apenas uma montaria sem destino, sem sonhos ou motivações.
—Você me acompanhou durante toda uma vida, amigo —disse o cavaleiro, desmontando seu animal, que quedou de joelhos, ofegante. —Sou muito grato a você. Ao fim de tanto tempo, de tantos anos, ofereço-lhe aquilo que nenhuma montaria dos Renascentes recebeu nos últimos séculos: a liberdade.
O cavalo não deveria entender tais palavras, mas algo em seus olhos mudou. Havia um brilho incerto, um fosco hesitante, um desejo impossível. A liberdade garantida aos animais era bela, singela e agradável, um ato admirável de um cavaleiro, raro e quase que inexistente. Mas não era uma honra. Um cavalo livre poderia ser uma boa montaria, mas ainda era uma montaria abandonada por seu amo. Ele não servira mais. Não poderia levá-lo, ou levar quaisquer outros cavaleiros, a lugar algum. Galoparia pelo resto de seus dias sem destino, sem rumo ou rota de fuga, sem nada.
Sunai não desejava aquilo.
—Obrigado, Sunai. Você foi mais que um cavalo: foi um cavaleiro, como eu. Os títulos que alcancei se originam em suas costas rígidas, companheiro. A glória que um dia obtive se marca no relincho da montaria que os exércitos temiam. Agradeço pela vida que me ofereceu, e hoje lhe ofereço uma vida muito melhor.
Não era aquelas as palavras esperadas pelo corcel.
—Vá embora, amigo. Vá, seja livre. Corra para onde o vento te mandar.
Um coração de animal doía, mesmo sem entender o porquê.
—Eu não preciso mais de você.
Rasthar não chorou na despedida. Tempos atrás, talvez, choraria, mas não naquele dia. Não havia mais lágrimas naquele homem. Não havia dor maior do que já sentira, não havia pavor maior do que aqueles que lhe aturdiram até então. Ele não chorou, sequer acenou para o cavalo que deixou para trás. Apenas virou-se com as mãos na espada que jazia embainhada em sua cintura, e caminhou com passos lentos, depois rápidos, sumindo na linha do horizonte que a visão de Sunai alcançava.
O cavalo não galopou para longe, livre. Sentia-se preso, mais do que nunca. Deitou-se para descansar, e nunca mais reergueria os olhos ou os desejos.
Além do companheiro abandonado, Rasthar seguia na tempestade.
O metal que lhe protegia arrastava-se nos campos barrosos que circundavam aquela construção onipotente. Da prata, pouco se via; restava o marrom natural do mundo, o verde lamacento do musgo, o cobre da ferrugem que o tempo lhe trouxera. Da prata, restava somente o coração de Rasthar, que parecia inerte, impossibilitado de bater após tamanho sofrimento. A espada nas mãos cantarolava no silêncio, e sua voz metálica parecia miar um som dos bardos, uma canção de valentia, de drama e tragédia.
E quando tombarem os montes, e quando restarem colinas
Postar-me-ei diante desta vida cristalina
E quando ceder a vontade, e quando acabar a esperança
Postar-me-ei fortalecido por sorrisos de criança
Rasthar deixou escapar um sorriso tristonho e desesperado.
—Não existem mais crianças para sorrir —murmurou, pensando alto. —Não existem mais motivos para sorrir.
Só existia a morte.
Os muros escuros pareciam altos demais.
Entre duas torres sinistras, erguia-se um portão de aço negro, o metal fosco que ilustrava a armadura daquele que pusera fim ao legado de um futuro rei. Rasthar apenas aguardou, e o portão se abriu, permitindo sua entrada. Para o caos, era sempre divertido ver o bem ousar afrontá-lo. Era sempre motivo de risos quando um único homem chegava até ali, diante do ser que derrubara exércitos e impérios, na esperança de que uma arma comum, sem nome ou mágica, pudesse enfrentar Eclipse, a Espada das Espadas, a Lâmina da Noite, o Vulto do Luar. No fundo, Rasthar sabia que espada alguma faria frente àquela monstruosidade negra. Sabia que mortal algum seria forte o suficiente para enfrentar o Filho do Aço Negro, o Caos Abroquelado, o Servo dos Nove Infernos. Ele não era diferente.
Por isso buscara forças no que vinha além da compreensão.
Subindo as escadas daquela fortaleza, Rasthar lembrava-se dos anos que lhe custaram caro demais. Ele precisava de força, precisava de uma força que seu mundo não tinha. Seu motivo era a vingança, seu sentimento era o ódio. Assim sendo, quando requisitou aos anjos, o céu o renegou. Uma vez antes, fora escutado pelos seres além das nuvens, mas não mais. Ele não era mais aquele homem de virtudes e pureza. Não era mais aquele jovem determinado a mudar o universo com um sorriso. Era uma sombra, o que restara de um príncipe e, como tal, fora rejeitado pelo céu. Nenhuma ajuda viria dos anjos naquele dia, e nenhum agradecimento nasceria dos lábios de Rasthar.
Restaram somente suas palavras, tomadas por rancor.
—Eu não preciso do céu. O que tem de quedar na terra, tem de ser enfrentado pela terra.
Ou pelo que existe sob os domínios do mundo.
Sem escolhas ou esperanças, Rasthar desceu até o inferno em busca de poder. O inferno não tinha sol ou lua; só havia dor, gritos e desespero, lamúrias e prantos doentios. Havia peste, fome, guerra e morte, como pregam os cavaleiros do apocalipse. Havia pragas e árvores de crianças mortas, fortalezas de ossos e órgãos, assentos de dentes e unhas, torturas intermináveis, castigos hediondos. Havia o inferno, e além do inferno Rasthar se atirou, gritando para quem lhe escutasse que ele precisava de ajuda, que precisava de poder, que precisava de uma luz que afrontasse Eclipse.
Ou de uma sombra ainda maior.
—Eu posso lhe ajudar —disse uma voz no escuro.
—Quem é você?
—Não direi que sou amigo, pois amigos inexistem nestas terras. Sou o quê você procura, nada mais. Sou a sombra além das sombras, o escuro além do breu, a morte além da morte.
—E o que você quer de mim?
O que todos os monstros e demônios sempre querem: a alma.
Rasthar subia as escadas da fortaleza, recordando-se que vendera sua alma para alcançar aquele lugar esperançoso, poderoso o suficiente para derrubar o indestrutível.
No terraço daquele local, no escuro de um trono de aço negro, lá estava ele. Sentado em sua imponência, como um governante de todos os reinos, como um lorde de todos os mundos, o Cavaleiro da Sombra aguardava, sem um sorriso ou um temor. Havia somente um elmo metálico e obscuro, sem expressão. Por trás do aço, cintilavam olhos escarlates, rutilava uma mente sem histórias ou virtudes. Por trás do aço, erguia-se um gigante imortal, um deus que tinha uma deusa nas mãos.
Eclipse estava lá, onipotente e esplendorosa. Recebera este nome pois, à frente do brilho nos olhos de um mortal, ela era como a lua sobre o sol: tudo se tornavam sombras. Toda esperança se cegaria num simples desejo de Eclipse.
Rasthar não hesitou.
Ele já não tinha brilho nos olhos.
Ele já não tinha esperança alguma.
Na tempestade, sua voz ecoou, como a de um rei:
—As cicatrizes desta noite farão do mundo um lugar diferente, Soberano da Malevolência. Nada restara do Exército de um Homem Só. Nada restara do Domínio do Aço Negro. Nada restara de você ou de seus planos, maldito. Nada restara do infeliz que acabou com a minha vida.
Eclipse parecia respirar nas mãos do cavaleiro de aço negro, mas não ele. Ele era como uma estátua, inerte e inexpressiva. Assistia, ouvia, vivia, e só.
—Levante-se e morra com a honra dos cavaleiros —dizia Rasthar, que pouco entendia de honra ou de cavaleiros naquele instante. Sua mente palpitava nas memórias de sua esposa e de suas filhas. Ele escutava os gritos, as dores, e chorava por dentro, mas nunca mais choraria por fora. Os olhos eram ódio e fúria, nada mais. —Ou morrerá sem glória alguma, digerido pelos pecados que lhe abraçam, tirano.
O Senhor das Trevas não se levantou.
Rasthar tirou sua espada da bainha, e o fogo que o consumiu era intenso. Deu-lhe asas, deu-lhe brilho, deu-lhe o vigor de uma fênix. Sua arma não era mágica: ele era. Ele era o fogo, a força, a luz.
Ele era o próprio inferno.
Seus olhos queimavam nas chamas que acolhiam toda sua glória. A espada se ergueu, girou no ar, riscou o mundo com um fogo escarlate e brilhoso. A lâmina era tomada por cicatrizes, fraquejando diante de tamanho poder, da magia que era incompreensível. O cabo se incinerava no simples toque de Rasthar, mas ele não sentia dor ou medo. Ele era o inferno, queimava como todo o fogo dos mundos não queimaria. Queimava por coragem, por bravura, por poder. Queimava por vingança.
Seus passos fizeram a fortaleza oscilar, trêmula, fizeram o Lorde do Escuro se postar em pé, tomar Eclipse nas mãos.
O fogo engoliu a ambos num só golpe, e queimou. Queimou sonhos e pesadelos, queimou lembranças e desejos, queimou vontades e determinações. O fogo abraçou Eclipse como uma velha conhecida, sorriram juntos, e as chamas tornaram-se negras, enclausuradas nas sombras da Lâmina da Noite. Rasthar gritou, flamejante num anseio que sequer se lembrava, cortou a noite, as nuvens, a chuva e o mundo com sua espada de ferro simples, e ela se partiu, mas as chamas não se dispersaram. Ele tinha uma espada de puro fogo, uma espada de inferno, e ela gritava como almas castigadas, chorava como crianças torturadas, urrava como almas destinadas ao sofrimento eterno. Eclipse sorriu, poderosa, mas o fogo a engoliu também, e então se engolfou na noite chuvosa e, por fim, desapareceu.
Um cavaleiro sem nome caiu de joelhos ao chão, sem forças.
Nada restara do Lorde do Escuro. O fogo o levou para sempre, assim como levou todo o resto.
Restara um homem que nascera para ser rei, para ser bom, mas que se enganara nas escolhas. Restara um homem sem nome, sem glória, sem honra, passado ou virtudes. Restara um homem sem nada, mas com uma espada.
Uma espada negra como a noite.
Ele se levantou, escorado na amurada da fortaleza. Tomou Eclipse do chão, admirou-a, umedecida pela chuva fria. Era uma bela espada aquela. Uma espada capaz de realizar quaisquer desejos. Uma espada capaz de fazer de um homem comum um deus.
—Diga-me o que desejas, mortal —a voz ecoava na mente do cavaleiro sem nome. Vinha da espada, mas vinha de além. Vinha de sobre as nuvens, de sob o mundo. Vinha de todos os lugares.
Pensou.
Em sua mente, nada havia. Não se lembrava de nada. Não desejava nada.
Assim, deixou que a própria espada o tomasse, e seu desejo foi o mesmo de tantos outros que, antes dele, tocaram a Lâmina da Noite.
—Caos —sussurrou, e aquela seria sua última palavra por toda uma vida.

Havia um guerreiro mascarado a afrontar infindáveis cavaleiros e, assim, exército diante de exército, guerreavam.
Ele tivera um nome, um dia. Tivera uma história, um passado. Amou e foi amado. Sofreu, como aqueles ao seu redor sofriam. Mas teve seu desejo realizado e, agora, tinha o caos ao seu domínio.
Hadril se reergueu. Morrera, sim, mas a morte não lhe era um obstáculo. Nada lhe seria um obstáculo naquela noite de guerra. Ele se ergueu como uma fênix, e o metal de seu corpo e de sua arma cintilou, coberto de fogo. Ganhou asas, ganhou força, ganhou mágica. Nada em si era encantado: ele o era. O fogo que o acolhia não era um fogo qualquer; era mais. Era um fogo acima do fogo de todos os mundos.
Era o próprio inferno.
Hadril sofrera nas mãos do Cavaleiro da Sombra. Perdera sua família, sua honra, seus sonhos. Perdera tudo. Desejava vingança, acima de qualquer coisa. Desejava ser forte para tirar a vida de quem lhe tirou o desejo de viver. Desejou poder, um poder que o céu não lhe ofereceu.
Um poder que encontrou somente no submundo.
—Eu posso lhe ajudar —disse uma voz no escuro de suas lembranças.
—Quem é você?
—Não direi que sou amigo, pois amigos inexistem nestas terras. Sou o quê você procura, nada mais. Sou a sombra além das sombras, o escuro além do breu, a morte além da morte.
—E o que você quer de mim?
O que todos os monstros e demônios sempre querem: a alma.
Hadril aceitou, e agora era o inferno encarnado. Tinha o fogo que consumia o mundo, e o Lorde do Escuro se viu quedar. Eclipse tocou o solo, fortalecida. Ela sempre se fortalecia. Os Mestres do Aço Negro sempre quedavam, mas ela sempre estava ali, poderosa. Ela sempre os enganava no Plano Inferior. Ela sempre os dominava em seus próprios mundos.
Ela sempre extinguia a luz com uma escuridão assombrosa.
Como um eclipse.

2 comentários:

  1. Puta. Que. Pariu. É um conto realmente Épico. Salvas infinitas para quem o escreveu. Infinitas!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Agradeço mesmo pelo comentário Elder, e fico feliz que tenha gostado! Não deixe de conferir os próximos contos do blog! Abraço!

      Excluir