sábado, 30 de junho de 2012

Conto - O Triste Empenho de Viver

Olá, companheiros.
Conto escrito em pouco tempo, sem intenção alguma senão livrar a cabeça de pensamentos ruins, haha. Espero que gostem, é bem filosófico e livre da fantasia que tenho costume de escrever, mas enfim, faz parte.
Até a próxima!


O Triste Empenho de Viver

Havia certo desleixo para com a minha vida.
Em termos, sequer saberia lhes dizer se realmente habitava em mim vida alguma, ou se era eu nada além de um vasilhame. Talvez esta fosse a afirmação correta: vivia num vazio, um recipiente preenchido pelo ar, senão por nem mesmo tal elemento. Dentro, excluindo órgãos e o sangue frio que me corria as trilhas de veias, nada. Zero emoção, zero sentimentalismo, ou talvez muito mais do que conta alguma pudesse calcular. Um vazio, um excesso, um turbilhão de concludentes com nada concluído.
A manhã gélida me açoitava a pele. Cá estou, noutro momento de desaprovação. Incompleto, irreal, inválido na imensidão, apenas mais um. Há tantos outros em mesma condição, ou sou só eu a fraquejar diante de escolhas póstumas? Digo póstuma, pois já me considerava um cadáver, sem tempo e espaço hábeis que pudessem resgatar-me da forca a que fora imposto. Levantei-me já em pé, apoiando em pedregulhos de meus rochosos pensamentos. Respirei, o ar era sujo, ou eram minhas narinas a impregnar o universo. Que estranho. Logo eu, sempre distante de tais sensações, banhado por uma maré de horrores e atrocidades.
Parecia ironia.
Recordava-me de bons dias, bons tempos, boas pessoas. Sorrisos e abraços, brincadeiras ingênuas, contato. Hoje, não mais. Silhuetas, apenas, sequer em sonhos, pois, nestas vozes, nada além de pesadelos encontraria. Tantos que ofereceram as mãos para levantar, tantos a quem eu apoiei em infindáveis quedas. Os mesmos a me derrubar quando lhes pareceu conveniente. Todos amigos, todos inimigos, mascarados como somente os homens sabem se provar.
Atravessei a rua ao som de buzinas. Ninguém me atropelaria, de certo, mas não se incomodavam em acentuar minha desatenção. Sequer os escutei, ou assim fingi. Prossegui, dei de encontro a uma bela mulher, desculpei-me. Ela sorriu com simpatia, seria falsa? Percebi-me incapaz de acreditar em muito do que via, e em nada do que escutava. Acenei, uma mesura simplória, e deixei-a para trás, sem entender. Dei de ombros. Eu também não entendia.
Alguém me cumprimentou, respondi sem vontade. Na segunda vez, fingi não escutar. Eram amigos, estes, ou assim se diziam. Eram presentes, tão ausentes quando a própria ausência, tão ao lado quanto os gracejos e festejos da família. Responsáveis por sorrisos, por glórias e vitórias, mas ainda amigos, como tantos outros foram. Amigos, inimigos, mascarados? A similaridade entre os homens me fazia refletir em possibilidades infames, dificultava o nobre ato do confiar. Desabei os olhos para a calçada cinzenta e vi, no cinza do cimento maltrapilho, a cor que melhor ilustraria meus dias.
Eu não estava triste. Não era tristeza a me assolar, pois tristeza se dispara em lágrimas, se livra após o pranto no ombro daquele disposto a ouvir, seja por educação, por falsidade, por incentivo ou simplesmente por estar ali. Tristeza se cura com facilidade, diferente do que eu sentia.
O que eu sentia era decepção, e tal sombra não nos liberta sem um conflito de propriedades catastróficas. Dentro de mim, relutava em acreditar. Era eu como todos eles? Tinha de mudar, de aceitar, de seguir em frente, mas hesitei ao perceber que já seguia. Tempo se passou, tempo que eu não perdi, tempo que eu não perderia de maneira alguma. Houve felicidade, houve tristeza, houve de tudo o que tinha de haver. Vieram e se foram, momentos e instantes, na velocidade inconstante do sonoro movimento dos ponteiros de um relógio. Vieram e se foram, mas a decepção ficou, e até quando ficaria? Desconfiança cravada em meu peito, trespassando o vermelho pulsante que me mantinha de olhos abertos, que fazia minha pele em sua coloração costumeira.
Há algo além da decepção?
Era uma doença, presumi. Sem nome, sem característica, de sintomas que tardariam a desaparecer. Para doenças, é necessário um tratamento, mas este não existe. Optei pelo esquecimento, mas não se esquece o que não nos machuca. Aquela doença não me feria. Fortalecia-me, isso sim, tornava-me enrijecido pela insegurança quanto aos meus próprios. Tão rijo que, ao caminhar, enxergava meus braços como membros de um androide, programado, ajustado e abandonado. De certa forma, assim seria melhor. Se tivesse de ser um robô para me diferir da nojeira nauseante que por anos presenciara, assim o faria sem pestanejar.
Peguei-me num pensamento tolo: seriam as máquinas capazes de adquirir uma sensibilidade similar à dos homens?
Sorri na ironia da resposta que surgiu em minha mente. Da máquina às feras, qualquer irracionalidade capaz de pisotear o solo poderia extravasar uma sensibilidade superior aos homens. Ninguém dentre estes é sensível a ponto de esquecer a si mesmo para oferecer o melhor ao próximo. Ninguém.
Eu era o errado naquele lugar, e por isso adoecera.
Uma voz me perguntou se eu estava bem. Percebi que tinha os olhos marejados. Quem me abordara era uma amiga, recente e presente, distante num só instante, mas sempre disposta a bater à porta e sorrir, gargalhar, exaurir da vida tudo o que ela pode nos garantir. Fiz que sim, prossegui, ela me acompanhou. Perguntou uma ou duas vezes, ignorei-a, achando-me o pior dos piores. Nunca antes o fizeram para comigo. Nunca antes ofereci apoio e escutei o silêncio, acompanhado de lábios cerrados daquele que cruzava os braços em desaprovação do mundo. Agora, o fazia, e assim não seria melhor. Não estaria curado da doença, e certamente faria com que aquela que escorou se afugentasse, achando-me tolo ou inventor de maus momentos.
Não foi o que aconteceu.
Ela se manteve ali, calada, seguindo meus passos. Mudou de curso, diversificou sua jornada, usou do celular algumas vezes, mas ali, ao meu lado. Por que ela fazia aquilo? Por que não me deixava sozinho, embasbacado pela tolice dos enojáveis, pelo repugno dos que um dia se mostraram tão ausentes quanto o nada que nos circundava?
Fez de seu modo, pois era amiga.
Ela chamou, outros vieram.
Eu os via chegar. Eram rostos antigos, rostos recentes, rostos inexpressivos. Vinham de longe, de perto, de onde quer que estivessem. Um momento antes, estava eu sozinho a discutir a trilha de meu viver, e agora aquilo. Tantos olhos me observando, alguns piedosos. Não queria pena. Não queria nada. Queria livrar-me da decepção, mas como o faria?
Substituindo-a?
Há aqueles que me fizeram ver o quão podres são os homens. Tão fétidos quanto os casos que televisionam, dentre os quais exalto preconceito e inveja e similares. Temos o costume de caracterizar tais situações como novelescas, impossíveis ou raras, mas elas ocorrem, e assim me ocorreram sem que esperasse. Deixei-os para trás, não precisava de algo mais falso do que o oxigênio que nos permite o dom da vida. Seriam substituíveis?
Olhando nos olhos de cada um dos que me observavam, vi que não.
Não se substituí a escória. Ela se mantém cravada na pele, como erro que fora, para que assim não se repita. São lanças e agulhas, fincadas à pele daquele que se deixou aventurar em terras inóspitas, choramingando na lamúria de todos os lábios submersos em mentiras, irradiando a bravura de acompanhar o povo que se julga melhor, mas que de melhor nada possui. Deixá-los-ia para trás, mas eles sempre estariam ao meu lado, em meu peito, e isso não me faria pior.
Olhando nos olhos de cada um dos que me aconselhavam, por mais que seus conselhos fossem nada além de palavra, vi que, por um dia conhecer os piores, somos capazes de diferenciar aqueles que realmente nos fazem bem.
Hoje, não mais sou inocente como fora. Sem ingenuidade, sem infantilidade quanto ao trato dos ser humano, sem vestígios do abobalhado amigo para todas as horas. Sou homem, como homens eram aqueles que me derrubaram quando eu já estava para cair. Descrente de suas atitudes, me vi decepcionar com todos, mas noto a diferença entre os sorrisos que hoje me rodeiam. É notório realçar que, mesmo eles, também são homens, como os anteriores o foram. Não há nada além de nós mesmos, de nossa ganância e ambição, todos estão sujeitos a se ajoelhar diante do deus as desavenças que é o egoísmo. Posso me decepcionar outra vez mas, diferente de tal ocasião, estarei esperando. Cairei novamente, pois homens, como homens, hão de quedar em suas andanças. E, novamente, hei de me levantar, sobrepondo todas as línguas que me sobrepujarem com calúnias, defletindo tantas mentiras quantas forem capazes de inventar as nascentes de peçonha existentes em cada mente que me enoja.
No lapso de tal momento, senti tantos abraços quantos eram possíveis sentir. Não eram muitos, como um dia foram, mas eram verdadeiros. Estavam ali, para todos os momentos, e me livravam da lacuna da desistência, guiando-me às cegas para o cume da superação. Sem esquecer, sem abandonar, somente aceitando o exemplo e me fortalecendo em seus pudores, de olhos abertos e limpos, de lábios cerrados e risonhos.
O desleixo se foi, não o vi.
Minha vida me importava como nunca antes importou.
Não o faria pelos demais. Faria por mim. Talvez egoísmo, mas de egoísmo todos nós somos feitos, criados a partir da sobrevivência além da vivência. Um egoísmo saudável, no entanto. Sem livrar-me dos que me acompanhariam, faria tudo por mim, pois, mantendo a nós mesmos vigorosos e fluídos, faremos de todos os que realmente se importam, e realmente merecem, tão fortes como pudermos ser. A vontade que nos faz existentes é a mesma que faz de nossos leais aliados felizes, e é feita por si mesmo. Em mim, encontro todos os sorrisos, todas as virtudes, todas as fraquezas e cicatrizes; encontro-me.
Ao me encontrar, permito que todos me encontrem como sou, felicitem ou entristeçam, fiquem ou partam. Aos que se afastam, desejo-lhes sorte, tanta sorte quanto nunca serei capaz de ter. Aos que permanecem, não há necessidade de desejo algum. Farei por mim, e tudo o que encontrar de vantajoso em minhas andanças será dividido para com aqueles que ali estão, ao meu lado, num baile de sombras aos nossos pés, irradiadas pelo astro que ilumina o céu que cerca a nós todos.
O dia alcança seu término, e nele encontro boas lembranças. Novas, não só lembranças, são reconstruções. É um novo edifício a se formar em meu peito, melhor e mais resistente, e nele nascerá tamanha juventude, bem como alegria, e ambas me farão confundir os dias viventes com os sonhos mais improváveis que hei de sonhar no repouso aconchegante de minha moradia.
Assim, entendo que a vida —entre altos e baixos, trancos e solavancos, rumos e passos no escuro —é facílima, uma facilidade de tamanha complexidade que se torna impossível por nossos próprios obstáculos. Há um empenho surreal, uma dor mais que irreal, hesitante e conflitante como se paranormal, mas ela está ali, viva, pois é assim a vida; como um desenho, cobra-nos o empenho e a vontade de viver, fecha-nos os olhos ante a dor, deixa-nos ferir em agulhas antes visíveis por escondê-las, joga-nos no abismo e assiste à queda interminável de nossas imobilidades.
Assim, entendo que a vida é tão fácil quanto impossível; entre o ser e o não ser, triste é somente o empenho necessário para viver.

Conto - Chagas de um Herói de Iberin

Olá, companheiros!
Trago agora um conto que escrevi há algum tempo, e que venceu o concurso Contos de Mirr, um universo desenvolvido por Claudio Villa, autor dos romances 'Pelo Sangue e Pela Fé' e também de 'Vento Norte', ambos ambientados neste cenário. No concurso, organizado em parceria com a Revista Fantástica, foram oferecidas diversas localidades e características do mundo para que pudéssemos ambientar as histórias.
Deixo bem claro que as citações quanto ao mundo não me pertencem, e sim ao seu devido criador.
Espero que gostem, e até a próxima!


Chagas de um Herói de Iberin

Morria.
O sangue lhe turvava os olhos, abismados com a vida que se exauria, com o esforço para cada respiração. Exausto, os punhos, suas únicas armas, já privados de seu uso, debilitados. A mente era revoltosa, incrédula, sem esperanças. Buscava por sua esposa, mas a visão não lhe permitiu encontrá-la. Sentiu a dor da perda e, acima de tudo, valorizou a vida que perdera ao lado da amada.
Avisou a todos, não lhe deram ouvidos. Os sonhos contavam histórias, cenas de um futuro em tragédia, banido das mentes dos mais crentes. Os sonhos mostraram-lhe a verdade, mas a verdade dolorosa é vista como mentira, e a mentira que conforta e agrada é a realidade almejada pelos homens. Contou, ignorado, excluso. Soube que morreria, por enxergar além do que seus olhos lhe mostravam.
Morreriam todos, por estarem cegos, mesmo com olhos perfeitos.

***

Acordou, um bocejo preguiçoso, um salto acrobático, de início de manhã. Ainda suava, abatido pelo sonho mensageiro, pelo aviso indesejado. O cheiro do café o invadiu, as narinas agraciadas pelo aroma delicioso, que lhe enchia de vontade, de vida. Ergueu-se, ignorando os problemas, os olhos, incapazes, num esforço de entender o mundo. Fez sua oração diária à Shidis, a deusa de sua nação, e deixou o aposento.
Iberin era uma boa nação para se viver. Pacata e reclusa, postava-se no Continente de Altrarian, no hemisfério oeste, onde os monges reinavam. Nas cordilheiras, diversos monastérios se espalhavam, honrosos sob a glória da divindade que os protegia e guiava, o dragão de safira, viventes das próprias montanhas, mesmo que nenhum dos monges soubesse de seu lar. Comandava-os, distante, por sonhos ou mensagens, palavras destinadas ao herói —o Naukara Nilamani —do Xar, o livro simbólico do Shidaismo, nome dado à religião da deusa dragão. A cada escolha, um novo capítulo, uma nova história se formando no livro da deusa, sempre ao lado do escolhido, sendo este o líder do Monastério de Wangkor, responsável por auxiliar os moradores de Iberin nas condutas de Shidis.
Atualmente, o Naukara Nilamani era Sagan, um bom homem, de sabedoria admirável. Sob ele, diversos outros mestres se curvavam, recebendo suas palavras e guiando, assim, os jovens monges do reino, que cresciam munidos dos punhos e dos bastões, somados à valentia e à glória das cordilheiras. Esse era o caso do Mestre Dreardel, responsável por ensinar diversos jovens as artes marciais e a meditação.
Sob sua tutela, Hector se tornou o monge que era, mesmo com seus olhos ruins. Confiava tudo ao mestre, mas, há alguns dias, escondia um segredo, e isso o flagelava.
—Bom dia, Hector —sorriu a esposa, cumprimentando-o com um beijo delicado. Lia não era uma lutadora. Filha de camponeses, crescera no campo, plantando e colhendo, e o sol lhe presenteara com lindos cachos dourados, o oceano iluminando seus olhos azulados, o corpo esguio.
—Bom dia, meu anjo —respondeu ele, e sentou-se. Comeu, o café com sabor de carinho, melhor do que qualquer outra refeição. —Sonhei outra vez.
—Está se tornando frequente. Acho que deveria dividir esses vislumbres com Mestre Dreardel.
—Não sei —hesitava. Na mente, a preocupação da confiança. Poderiam acreditar em sua palavra, confiar no jovem. Ou poderiam vê-lo como um mentiroso, um golpe de lábia para abalar os moradores de Iberin, uma brincadeira de criança. —Talvez ele não entenda.
—Talvez, mas é sua única opção. Guarde a maldição para si e serás o amaldiçoado. Conhece o provérbio.
Conhecia. Lia estava certa. Precisava dividir aquela chaga, aquela ferida em sua mente. Shidis lhe chamava nos sonhos, sua voz nas cavernas de sua mente, jorrando sangue inocente, um poço de vermelhidão ingênua e pura. O dragão de safira profetizava, como um santo, e Hector ouvia, o fosco dos olhos envidraçados cintilando pelas lágrimas de um sofrimento que não era só seu. Sabia, no mais profundo dos pesares, o real significado da mensagem.
Iberin vai ser atacada.

***

Foi até Mestre Dreardel, que o escutou.
Ao fim de tudo, não conteve o riso.
—Hector, meu caro —começou, sentado frente ao monge, que o admirava, os olhos impassíveis. —São apenas sonhos, tenho de lhe dizer. Shidis nos mostra nossas vidas, guia nossos caminhos. Não falaria com outro, além do Mestre Sagan, em nossos tempos. Sabe que apenas o líder de Wangkor pode escutar suas profecias, não sabe?
Engoliu em seco.
—Mas Mestre, eu —
—Não recuse a verdade da vida, jovem Hector. O que vê é apenas a magia de sua mente, criativa e infantil. Aprenda a entender as diferenças entre fé e fantasia.
Mestre Dreardel era um homem velho, mas sábio, e suas palavras mudariam mesmo o mais firme dos governantes. Não lábia, mas conhecimento. O rosto era uma tábua, inexpressivo como tal, e as emoções escapavam miúdas pela brecha de um sorriso amigável, e isso era tudo.
Discordar seria um erro.
—Sim, Mestre Dreardel.
Hector se calou, e partiu, sob o olhar pesado do Mestre.

***

Poderia ter voltado à sua casa. Poderia ter meditado sob a calmaria das nuvens, assistido às águas da fonte central, orado para a divindade, buscado por respostas nos incontáveis cleros que se diziam oráculos. Não o fez.
Encontrou Mestre Sagan nas proximidades, circundado por monges de Iberin, atônitos por sua presença. Não se conteve.
Chamou por seu nome, sem abusar do respeito, e contou suas visões a ele.

***

Fora humilhado, perante todo o seu povoado.
Mestre Sagan gargalhou, uma exaltação de sua sabedoria, os súditos que o acompanhavam zombando em murmúrios. O povo o baniu, pela vontade do Mestre, e então retornou à sua casa, choroso pela raiva, sem respostas, sem vontade. Quase desejou que Iberin caísse sob o veneno de seus vislumbres, mas o shidaismo pregava uma educação que Hector respeitava, e mantinha.
—Hector, acalme-se —pediu Lia, carícias nos cabelos do amado.
—Ninguém acredita —bufou. —Se for verdade —
—Esqueça disso, por enquanto —interrompeu. —Se for verdade, saberemos, e se arrependerão de duvidar de teu conhecimento. Nós, por outro lado, estaremos preparados. —Estendeu os braços, abraçou, o calor de seu corpo apaixonando o monge, os problemas destruídos. —Eu te amo.
—Eu a amo muito, Lia.
—Vamos às cordilheiras? —Sorrindo, como da primeira vez.
Concordou, e o céu claro irradiou uma trilha de passos para o casal, as mãos unidas, os sorrisos fervorosos, uma conversa animada que afastava os espectros da preocupação.
O ar cheirava a plantas, flores, natureza.
E morte.

***

As cordilheiras de Iberin estavam secas, um verão de calmaria e serenidade, os campos revelados pela temperatura agradável, mesmo que fria. Eram montes de um branco singelo, quando inverno, mas agora a grama e a terra se mostravam altivas, o cheiro das plantas e das flores deslizando pelo ar como um perfume de natureza. Lia era apaixonada por aquilo, talvez mais do que por Hector, e ambos se sentiam unidos, por mais que separados pelos campos montanhosos da nação. Shidis abençoava aquelas terras, e a safira estampava o céu, somado ao alvo das nuvens macias e à extrema esfera alaranjada que era o sol.
—Veja —apontava a esposa, os lampejos rutilantes do sol forçando-a a estreitar os olhos, os dedos guiando a lugar nenhum. —Não existem problemas, Hector. A vida é bela, e Iberin nos acolhe em conforto, como o abraço aconchegante de uma mãe amável.
—Mas a melhor de todas as mães será você, Lia —o monge sorriu, e a pureza do momento inundou seus olhos.
—Teremos uma linda camponesa, não concorda?
—Ou um grandioso homem de punhos —o pai, o orgulho do filho na mente.
—Chega de guerreiros. Basta o pai.
—Nunca bastam —ríspido.
—Uma linda camponesa, Hector —repreendeu. —Para cuidar das flores e dos pássaros, e da vida, apenas.
Refletiu. Sentiu-se como um louco, e se arrependeu.
—Pois bem —ao fim. —Uma camponesa. Contanto que seja tão linda quanto a mãe.
Sorrisos, e beijo, o silêncio como uma música esplendorosa, o canto das aves agudo e sincero, um canto de felicidade e amor, acima de tudo.
Não havia problemas. Não havia nada que pudesse abalar aquele momento. Eram eles, Hector e Lia, e nada mais. As cordilheiras eram, e para sempre seriam, o palco daquela união, daquela paixão incondicional.
Sozinhos, perdidos no fervor da atração, falharam ao sentir o que se aproximava.

***

Doze.
Talvez fossem mais, mas doze eram o suficiente. Malignos, sombrios e ásperos, apoiados nos bastões de caminhada, chutando as rochas conforme arrastavam as pernas mórbidas. Vestiam-se como Hector, como os monges de Wangkor, os tecidos esbranquiçados cobrindo a pele cinzenta e exótica, sem evitar o mau cheiro que se espalhava, contaminando a natureza das cordilheiras. As crias de Zurt proliferavam pela maldade, de acordo com a vontade de seus mestres, seus conjuradores, e por eles morreriam, sem medo.
Por eles, matariam, sem hesitar.
Executores, seus nomes. Mortos, de olhos serenos e falsos, os apoios de madeira suspensos pelos braços raquíticos, que escondiam força sem tamanho. Levantavam-se das tumbas pela arte negra da necromancia, ao comando da malícia de um lorde da magia obscura.
Cercavam o casal, fitando o amor absurdo, inacreditável. Aquele mal era banido da nação dos monges, e ninguém acreditaria em sua existência. Hector, agora famoso pelas mentiras de suas visões, jamais seria escutado. Abriu os olhos, ao fim do beijo da amada, e a alegria se perdeu como um trovão, um estrondo de felicidade se calando num silêncio mortífero e tenebroso. Lia silvou, um brado estridente pelo temor da situação, buscou proteção, encontrou apenas nos braços do monge. Acariciou seu rosto, declarou-se, livrou-se da esposa, pediu que se escondesse. Seria, como prometido, seu protetor, a defesa que lhe custaria a vida, se necessário.
Lia correu para longe, encostou-se às rochas, abraçou o vento, mas ele não a esquentava como Hector. Desesperou-se, em pranto. Descobriu que saber é muito pior do que ver. E sabia como aquilo tudo acabaria.
O guerreiro desarmado ergueu os punhos, arfou, firmou as pernas trêmulas, a postura ensinada por Mestre Dreardel, desde sempre. Ali, à frente de sua esposa, era um mago, mesmo que a magia não lhe servisse. Era um paladino, mesmo sem armadura ou espada. Era um bárbaro, de inteligência bruta como músculos.
Era invencível.
E mesmo isso não seria de grande ajuda.

***

Doze.
E cada um deles se transformou, a pele enegrecendo, pouco a pouco, os olhos de mestres vermelhando pela ira, rutilando de encontro ao sol, que já se preparava para partir. A pele se colou aos ossos, apodrecendo pela noite que se aproximava, espalhando o odor de putrefação pelos montes de Iberin. A madeira se rompeu, trincas revelando as lâminas escondidas pela magia em ambos os lados do que antes fora um bastão, agora uma foice de dois gumes, o fio demonstrando seu poderio mesmo à distância.
A brisa gélida arrepiou o que restara dos fios de Hector, que se manteve impassível. Respirava, sem pressa, e cada punho era uma arma branca, perfurante como lança, resistente como escudo. A palma de ferro estrondou, e o primeiro golpe partiu daquele que deveria se defender, e a pele se rompeu em sua fúria, o peito aberto vomitando vermes e sangue esponjoso sobre o corpo do monge, a camisa de aço como sua única proteção.
Salto, uma cabeça de degrau, ganhou as alturas. Fincou-se no solo, como seta de arco e flecha, derrubou um executor, desarmou, girou sua foice para longe. Chute, o corpo rodopiando veloz, pancada que desregularia um cérebro, se houvesse. A lâmina curva rompeu o ar, uivou, a lua derrubava a noite como uma cortina de teatro atrás de si. Estrelas surgiram, em brilho, ofuscadas pelo chamejar das faíscas que saltaram do solo, que se ergueu em rochas e poeira, mas a arma não encontrou seu alvo. Hector estava ao vento, outra vez, agilidade felina predominante em seu combate, pernas e braços tão afiados quanto o ferro que tentava lhe privar da vida.
Acima de Hector, um estandarte ilusório se erguia, movido pelo sopro de uma aura inexistente. O dragão de riscos azulados, as gemas rubras que eram seus olhos, uma bandeira que ostentava a glória daquele homem, do guerreiro que lutava por sua honra, por sua família, por seu povo, mesmo que este não acreditasse em suas palavras. Ali estava a prova, que ninguém além dele próprio veria. Lia o admirou, ainda que o medo a atormentasse. Sentiu-se apaixonada, outra vez. Acima disso, sentiu-se orgulhosa, pelo exemplo de homem que era seu companheiro.
Manobrou, esquivou-se de um corte, errou no segundo ataque, a lâmina arranhou seu estômago, cuspiu sangue, banhou-se pelo vermelho. O cheiro da vida fresca fortaleceu os mortos-vivos, as línguas mórbidas lambendo os lábios arroxeados, a pele exalando a secreção de sua excitação. Nove, agora, que atacaram de uma só vez, Hector como um lince. Guinchou, mudou o estilo de batalha, os punhos se abrindo, a defesa abandonada pelo pânico. Golpe, derrubou um, afastou um segundo, atordoou o terceiro, dedos perfurando os olhos do próximo.
Sentiu a vida exaurir, cuspiu sangue. Encontrou o sangue no solo, e soube que era o seu. Ofegou.
—Hector! —Um grito, que talvez fosse de Lia, mas não soube dizer.
Uma das foices trespassara a carne de seu corpo, a ponta reluzindo pelo luar, através de suas costas, brilhosa e mortal. O executor derrubou seu corpo, trouxe a lâmina para si, jorraram órgãos. Presas, a fome de lobos vorazes, mordiscaram cada peça, cada canto do corpo de Hector, que urrou. Lia chorava, as pernas impedindo-a de se aproximar, a vontade inferior ao temor de perder a própria vida. Caiu, joelhos nas pedras, e apenas assistiu, ouvindo os gritos, sentindo o cheiro da morte de seu amado, a solidão preenchendo os seios, os olhos se fechando como ao término de uma peça.
E Hector se viu morrer.
A dor lhe fez tombar, os olhos mortos e foscos enxergando além do momento. Desejou dizer a Lia que a amava, que a desejava como mulher para toda a vida, como mãe de seus filhos. Não conseguiu. Ainda assim, não chorou. Não se permitira, o orgulho sustentando sua moral, sua força de vontade. Viu escurecer, e não era a noite.
Era a morte, que enfim chegara.
O sangue deixou de cheirar. Os monstros pararam de destroçar seu corpo. À frente, viu Lia, sozinha. Rezou por ela, e estendeu os braços, Shidis acompanhando todo o trajeto. Rezou por Iberin, rezou por Wangkor, rezou para que uma luz iluminasse os monges daquela nação, lhes mostrasse a verdade, o perigo.
A dor parou.

***

—Ele foi um bom homem, Lia —a voz surpreendeu.
Horas se passaram, e as cordilheiras ainda eram lar para a camponesa, olheiras grotescas de uma tristeza sem lágrimas, escassas pelo sofrimento. Mestre Dreardel a encontrou, na madrugada, as mãos sábias tocando seus ombros. Ingênua, ergueu-se, abraçou o velho, se tranquilizou.
—Os gigantes da montanha são cruéis, minha cara —disse o Mestre. —Não devemos nos aproximar de suas terras.
Engoliu em seco.
—Não! —tartamudeava, exausta, a voz manhosa. —Não foram os gigantes! Foram os executores! Eles...
Abraçou-a, e o sofrimento deixou de existir. Por um momento, Lia era ela, alegre, contente, sem medo ou arrependimento. Por um momento, esqueceu-se de seu nome, e de todo o resto.
—Minha jovem, não existem executores nas cordilheiras. Os gigantes mataram Hector, tão próximo de suas furnas. Pobre monge, não pôde se defender, não pôde protegê-la. Felizmente, nada lhe aconteceu, Lia. Os gigantes a pouparam.
E Lia viu os gigantes matarem Hector, a realidade diferente em sua mente, a confusão destruída pelos pensamentos que se perdiam, de acordo com a vontade da magia que lhe tomava. Oprimiu os sonhos, misturou as lembranças, perdeu-se nas memórias e nas ilusões. Saliva escorreu por seus lábios.
—Lembra-se dos gigantes, Lia?
—Sim, Mestre —uma marionete.
—Uma triste história. Mas vamos. A vida é bela, minha cara. Não deixe que a tristeza lhe abata. Erga seu rosto puro, retome sua existência. Exiba sua beleza em Iberin, faça de seus dias mais alegres.
—Sim, Mestre.
E se foi, sem olhar para trás. Não se lembraria daquele dia, quando despertasse.
Não se lembraria de Hector.

***

—Precaução, Dreardel —a voz surgiu junto do nascer do sol. —Os loucos sonham conosco.
—Acalme-se, Mestre —disse o velho de Iberin, a posição de meditação tranquilizando-o. —Tudo segue como tínhamos em mente. Shidis não poderá nos impedir, por mais que se esforce.
Risos.
—Assim espero. Não precisamos de mais heróis como este jovem. —Dreardel concordou, os olhos ainda fechados. —Iberin, Wangkor, e logo a Terra de Outrora.
—Os passos são vagarosos, meu Mestre.
—E precisos. Não desaponte o Naukara Nilamani, Dreardel. —Malícia, num sorriso perverso. —A Conquista vem sorrateira, feito um gatuno. A pancada é furtiva, e o shidaismo vai ceder sem sequer entender o que lhe aconteceu. Não quero dragão algum em minha nação. Nem mesmo monges.
Dreardel abriu os olhos, a magia cintilou, violácea, um vestígio que logo se desfez em brumas.
Ergueu-se, o corpo em ardência. Respirou.
—Sim, Mestre.

Light Novel - Novo Projeto a Caminho?

Olá, companheiros!
Logo mais estarei iniciando a terceira e última parte da Light Novel Delirium, com seus diversos atos. Após esta, tenho um novo projeto para postar no blog, também de Light Novel. Essa, diferente das duas primeiras, é uma história prevista para ter mais de uma edição, mas vamos ver como ela se desenrola. Trata-se de 'Desejos de Juno', uma série mais aventureira e desinibida, com traços marcados por combates e personagens mais jovens, diferente da perspectiva mais adulta e psicológica que utilizei em A Balada do Caçador e Delirium. Apesar da diferença, espero que também interesse a vocês a leitura desta. De qualquer forma, ainda demorará um tempo para começar a postá-la, portanto, aproveitem Delirium até então.
Em comemoração às quase 200 postagens do blog Elhanor, que completa um ano de existência somente em setembro, trago a sinopse de Desejos de Juno - A Cauda do Escorpião, que é o primeiro volume dessa série que logo dividirá espaço com outras histórias do blog.


E se um dia você descobrisse que pode realizar qualquer desejo?
Na cidade-nação de Ylenia, Dylan Lorenzo, o atual campeão de Armor Boxing da região, disputa sua luta final pelo título mundial de sua categoria. Surpreendido por um fenômeno incomum, Dylan vê toda a sua vida ruir perante seus olhos, passando da fortuna à desgraça em instantes.
Não lhe resta escolhas: terá de confiar na voz de Oriol, uma criatura exótica que lhe oferece a melhor oportunidade de sua vida: ter tudo o que amou de volta.
Envolvido numa batalha de proporções épicas, Dylan vai precisar superar seus próprios limites para alcançar seu único desejo. Para isso contará com a ajuda de seu Uberein, assim como dos amigos conquistados nas aventuras, todos cercados por seus próprios mistérios. Muitos outros nomes circundam a existência de Juno, a entidade caçada para a realização dos pedidos pessoais. O Pranto da Lua é muito mais do que parece ser, assim como a batalha que o envolve em ganância e ambição.
Entre perigos e confrontos, Dylan vai entender muito mais do que o mundo deixa transparecer. Mas seu primeiro passo é bastante doloroso, carregado do veneno agudo expelido pela cauda do escorpião.


E aí, o que acharam?
Até a próxima!

Light Novel - Delirium - Caso 2 / Ato XIV

Olá, companheiros!
Trago-vos hoje mais um ato do segundo caso de Delirium, a nova Light Novel do blog Elhanor, e assim declaro encerrada a segunda parte da história. Falta apenas um caso, espero que estejam gostando do texto e não deixem de comentar e criticar, opiniões são sempre bem-vindas!
Sem mais demoras, vamos à postagem propriamente dita.
Até a próxima!


XIV

“Doutor? O senhor está bem?”
Não estava, obviamente. Trevor empalideceu em um instante, impossibilitado de disfarçar o mal-estar que aquela visão lhe causou, assim como causaria a qualquer pessoa.
“Eu estou bem.”
Mentia. Não estava, e não estaria enquanto tivesse de afrontar aqueles amaldiçoados olhos verdes.
“Não vai me responder?”
“Acho que seria incapaz de fazer algo do tipo, Miley.”
Teve de se esforçar por um momento para que recordasse o nome daquela garota, e outro instante para se lembrar qual era a pergunta.
“Será mesmo? Não acredito muito nos homens, doutor. Se há algo que aprendi de minha mãe é a desconfiar de cada atitude, de cada palavra. Assim, não somos surpreendidas jamais.”
“Você está certa. É horrível ser surpreendido.”
“Não é? Mamãe é muito inteligente, doutor. Ela poderia ser uma filósofa, ou uma médica, como o senhor.”
“Com o que sua mãe trabalha, Miley?”
“Ela não trabalha. Ela vive em casa, trancafiada pelo ciúme. Papai não quer que ela veja o restante do mundo, por isso ela também não está aqui hoje.”
Trevor escutou com atenção as proximidades, não encontrando resquício algum de Joe Hill e sua curiosidade.
“Seu pai é uma pessoa ruim, Miley?”
“Eu o odeio, doutor. Odeio meu pai. Odeio aquele filho da puta que me causou tanta dor, que me fez sangrar por tanto tempo apenas por sua incompetência.”
Por um momento, aquela garotinha ingênua pareceu uma assassina sádica e cruel.
“Miley!”
“Me desculpe, doutor, mas é o que penso. Odeio ele! Odeio meu pai, com todas as minhas forças!”
“Talvez este seja o seu problema. Você tem que entendê-lo, tentar aprender com seus atos. Podem parecer erradas num primeiro momento, mas cada atitude tem sua finalidade quando se cuida de uma família. Cada passo tem de ser planejado com maestria ou então...”
“Ou então o quê? Ele não escutava minha mãe, nem mesmo me escutava! É um maldito egoísta! Abusava de sua força para realizar todas as suas vontades. Ele gostava da mamãe, eu sei que sim, mas tudo mudou depois que eu nasci. Não sei o que aconteceu, mas papai se tornou outra pessoa. Se tornou mau.”
“Não é culpa sua, Miley. As pessoas tendem a mudar quando se tornam chefes de família. Imagine a sensação de se responsabilizar por duas mulheres. Consegue pensar em algo assim? É uma coisa complexa para se lidar, se é que me entende. Talvez o senhor Joe não estivesse preparado para ter uma filha.”
“Ou talvez eu fosse uma filha muito especial para ele.”
“Especial?”
“Você não me acha especial, doutor?”
“Certamente, pequena Miley, você é especial, como todos nós somos. Sempre há alguém no mundo que precisa de nossa existência, que reza ao Deus em que acredita por nosso conforto e comodidade, apenas por acreditar que somos especiais. Você não é diferente.”
“Não sei. Talvez eu seja diferente. Um pouco mais especial do que as especiais, se é que me entende.”
A ironia em suas palavras era espantosa.
“É mesmo? Por que acha isso, minha amiga?”
“Eu tenho poderes, doutor. Destruí um relacionamento ao nascer.”
Riu, como se realmente houvesse graça em seu comentário.
“Miley, você está dificultando as coisas.”
“Não é nada difícil, doutor. Difícil é ver um homem aceitar a opinião de outra pessoa. Vocês são egoístas, na maior parte do tempo. Não há como negar que as coisas mudaram quando eu nasci. Antes, tudo era perfeito, um mar de rosas. Olhe agora, doutor. Estou conversando com um psiquiatra! Estou sendo tratada como louca, e meu próprio pai é o responsável por isso tudo!”
Uma pequena parcela de Trevor sentiu-se incomodada ao escutar a palavra psiquiatra escapar entre os lábios daquela garota, mas a conversa prendia sua atenção como um todo.
“Miley, o que realmente...”
Joe Hill entrou na sala. Não parecia abalado, ainda que seus olhos estivessem manchados pelas lágrimas. Recomposto, caminhou entre Miley e Trevor, aproximando-se do espelho da verdade.
“Posso ajudá-lo, senhor Joe?”
“Acredito que não, doutor. Se nem mesmo consegue ajudar minha filha, acho que nunca poderá resolver meu problema.”
“Estamos tendo progresso.”
“Progresso? Escutou metade do que essa garota lhe falou, doutor? Ainda assim consegue chamar isso de progresso? Ela está revoltada com a própria família! Eu fiz tudo o que podia fazer, Trevor, fiz mesmo! Me esforcei, garanti carinho e afeição, tentei oferecer até mesmo amor! Mas não deu certo. Quando essa criança nasceu, fui abandonado.”
Miley choramingou, cobrindo o rosto com as mãos delicadas. A situação estava fugindo do controle.
“Senhor Joe, isso não está ajudando.”
“E o que vai ajudar? Ficar quieto do outro lado da porta escutando todas essas malditas verdades não me fará bem, doutor. Se ela precisa disso para se curar, vai acabar me enlouquecendo antes, e não pretendo deixar isso acontecer.”
Miley gritou:
“Eu quero a minha mãe!”
“Sua mãe está aqui, Miley, assim como seu pai.”
“Você me disse que o papai entenderia, mamãe! Ele é um egoísta! Eu estraguei o amor de vocês!”
Trevor se confundiu. As palavras não faziam sentido para ele. Não se manifestou.
“Não é sua culpa, minha filhinha. Talvez não houvesse mais amor. Talvez esse homem fosse o cretino que pareceu desde o início, atuando como todo ceifador tem de atuar em algum momento de sua vida. Talvez tenha me enganado, nos enganado, apenas para se esbaldar em meu corpo, em minhas virtudes.”
“Ele mentiu para mim, mamãe! Disse que jamais seria capaz de matar a própria filha! Disse que homem algum seria capaz de fazer coisas do tipo!”
“Veja bem, Miley, as mentiras que movem a sociedade dos homens. Eles matam por dinheiro, por ganância, às vezes sem motivo algum. Depois disso, cospem em nossa cara ao nos chamar de demônios, incendeiam nosso corpos em seus devaneios. Quem são os verdadeiros demônios agora, Trevor?”
O psiquiatra estava paralisado. Era como um trem desgovernado, de súbito escapando dos trilhos por onde rumava para ganhar um caminho inesperado e destruidor, capaz de enlouquecer mesmo o especialista da mente que ali se encontrava.
De súbito, como a magia que bem conhecia, não mais existia Joe Hill. Em seu lugar havia uma mulher atraente, de cabelos negros e pomposos, vestes provocantes e tatuagens nos braços, ilustrando seu conhecimento de todas as cores e formas. O metal polido brilhava em seu lábio e em suas orelhas.
“Não pode ser!”
Trevor estava incrédulo. Também não havia mais Miley. A garota bela e energética dera lugar a um rascunho de pessoa, um corpo mastigado por lâminas, coberto de sangue e pus, que exalava um odor nauseante e incômodo. A pele estava ressecada, os cabelos desapareceram, os lábios estavam carcomidos por vermes grotescos.
Mas os olhos verdes ainda brilhavam.
“Vocês...”
“Sim, Trevor, somos nós. Não somos simples criaturas, como aquelas que você enfrenta em sua profissão. Não pode se livrar de nós como se livra daqueles fracos, ceifador. É um homem, e como tal deveria se orgulhar de ser um Sangue Azul.”
“Não, isso não pode estar acontecendo. Como você pode estar aqui? Como isto... Como ela pode estar aqui?”
“Por que me maltrata dessa maneira, papai?”
A criatura gemia com mil vozes, aterrorizava. O som despejado pela furna que era sua boca torturava o ceifador, crepitando seus ouvidos como um fogo invisível e infernal.
“Eu não sou seu pai!”
“Ainda me recusa dessa maneira? Mamãe, ele ainda me recusa!”
“Pois assim são os homens, minha filha. A resolução de um problema, por vezes, é muito mais simples quando nos esquecemos dele. E os homens são fracos, são tolos, são medrosos por natureza. Trevor, você tem um grande problema aqui. Poderíamos chamar de trauma, como você mesmo classifica às vezes. Sabe, aprendi bastante nos anos que convivi com você. Talvez pudesse te ajudar.”
A mulher ergueu um dos braços, uma poltrona confortável surgiu abaixo de seu corpo, se acomodou. Um aceno trouxe o bloco de anotações e o gravador de áudio de Trevor para suas mãos, posicionados como se fosse ela a psiquiatra.
Trevor não relutou.
Não poderia enfrentar aquele ser em seu mundo. Não poderia, pois ela era um demônio liberto da prisão de sonhos, uma fugitiva do inferno verdadeiro. Enquanto ele, naquele lugar, era um simples homem, um psiquiatra, um médico que escuta.
E a culpa era dele mesmo.
“Não se sinta entristecido pela situação, pobre Trevor. É difícil aceitar a loucura quando ela nos assola. Abra-se comigo. Vamos encontrar o que está lhe causando problemas.”

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 2 / Ato XIII

Aproveitando o tempo livre para uma postagem dobrada.
Ato XIII para vocês, espero que apreciem!


XIII

Trevor Kraepelin viu o inferno.
Era sombrio, escuro e perverso, ardendo numa chama negra e avassaladora. Nuvens deformadas avançavam num céu mutilado, gritando por torturas indizíveis, ganindo como animais estripados para saciar a fome dos necessitados. Sangravam no céu negro, e o sangue escorria brilhoso, quente e esponjoso, tocando o solo como uma chuva estalante.
Trovejava. A cada clarão, tornavam-se visíveis monstros em cada canto, em cada esquina rochosa, sobre cada nuvem grotesca a circundar aquele lugar tenebroso. Os trovões incendiavam os céus, brilhando com fulgor, queimando os olhos e as almas daqueles que ousavam se aventurar nos confins mais temíveis da existência.
O simples fato daquele local existir era um pesadelo. Sonhar com o inferno era algo terrível, sempre variando suas formas e atrocidades de acordo com a criatividade e originalidade de cada pessoa, de cada pesadelo. Imaginar e descrever era algo doentio, capaz de sangrar ouvidos e atordoar os cérebros mais perversos, simplesmente pelo fato de se pensar no inferno, em algo além da vida, além da morte, uma punição eterna para pecadores.
Ali, entretanto, Trevor via o inferno. Não sonhava ou imaginava, estava lá, presente na terra dos mortos, daqueles que desmereciam o paraíso. Sabia ser o inferno, pois estava familiarizado àquela ideia, conhecia com perfeição cada curva daquele mapa rascunhado por diabos no enxofre congelado.
Sabia ser o inferno, pois já esteve lá uma vez antes.
(O que aconteceu?)
Uma pergunta sem resposta.
(Como cheguei aqui?)
Mas não chegara. Não em corpo, ao menos. Voejava por aquelas paisagens apocalípticas, forçado a assistir ao julgamento final, ao fim do mundo em três oportunidades distintas. Via o mandado dos tiranos, a ordem dos ditadores, os cultos secretos espalhados por seu mundo. Via tudo, entendia nada. Já assistira tudo aquilo uma vez antes, e nada fizera diferença em sua vida. Não poderia mudar o mundo, pois o mundo é a união das pessoas, e ele era apenas um homem para tentar mudar todas as pessoas.
O que estava ao seu alcance, porém, fora feito como deveria ter sido feito.
Um erro.
(O que aconteceu?)
Nada havia acontecido. Era um simples vislumbre, uma visão destrutiva e incômoda para qualquer espírito, um castigo para sua ousadia. No inferno, Trevor via-se novamente queimar, ainda que estivesse distante daquele local. Sentia a pele não-presente praguejar pela ardência, chamuscando lentamente ante a treva chamejante que jorrava de cada rochedo.
No inferno, Trevor via a si próprio, e a todos os seus erros. Via ela. Sua filha, ainda viva. Estremeceu, por medo próprio, por medo de todo um mundo.
Viu sangue fervente jorrar, atirado por golpes de mãos pesadas e violentas, rasgando a inocência de uma criança para toda a eternidade. A sensação o corroeu de dentro para fora, impregnou seus órgãos, fulminou seu coração como um infarto faria. Não se deixou abater, mantendo-se impassível, mas a tortura o mostrava cenas que não gostaria de rever.
Durou menos que um piscar de olhos. Logo estava novamente em seu consultório, sentado à frente de uma garota loira, encontrando seu sorriso debochado e malicioso.
“Mas e o senhor, doutor? Seria capaz de pensar em matar a própria filha para se livrar de todos os problemas?”
Encontrara o inferno naqueles olhos verdes.

Light Novel - Delirium - Caso 2 / Ato XII

Olá, companheiros.
Sem enrolações, vamos ao ato XII de Delirium. Até a próxima!


XII

Miley se debatia em suas amarras, girando o corpo no tapete do consultório. Em seus movimentos revoltosos, derrubava vasos e decorações, livros e peças de louças antigas. Por pouco não se chocou contra o espelho da verdade, que se mantinha escondido nos tecidos costumeiros.
“Miley, se acalme!”
Trevor correu até a garota, tentou acalmá-la com a voz e as mãos, ela parecia insana. Gritava coisas sem sentido, idiomas inventados por sua loucura, ameaças e palavrões misturados a elogios e cantigas de ninar americanas.
O psiquiatra tentou imobilizá-la com os braços, mas a garota estava descontrolada. Parecia forte, uma força impossível para o corpo frágil de uma garotinha, por vezes arrastava o doutor junto de si. Sacudia os cabelos para todos os lados, chicoteando o ar com seus fios cor-de-sol.
“Fique calma, Miley, eu só quero lhe ajudar!”
O pior de tudo eram seus olhos. Aquele par de olhos verdes familiares e torturantes. Eram idênticos aos olhos que tanto atormentavam os sonhos de Trevor, traziam memórias de momentos inacreditáveis. Perdido nas íris verdejadas daquela garota, Trevor escutava gritos do momento e do passado, via uma loucura recente e antiga. Tudo se misturava, se confundia, o mundo ao seu redor parecia girar junto do corpo de Miley.
“Acalme-se!”
A voz estava exaltada pela situação, soou quase como um grito de fúria. Não era a intenção, mas a garota pareceu se intimidar pelo bramido do doutor, pois parou de se debater. Acomodou-se, relaxou o corpo, abafou os gritos com ganidos tristonhos.
“Faça parar, faça parar!”
“Tudo vai parar, Miley, você só precisa se acalmar. Vai ficar tudo bem.”
Após seu surto, Miley desabou em lágrimas, um pranto soluçante e infantil. Mostrou-se delicada e ingênua como parecia, esfregando os olhos com a suavidade das mãos, deixando o córrego de seu choro escorrer nas roupas.
“Quem é você?”
“Eu sou o doutor Trevor Kraepelin, Miley. Estou aqui para lhe ajudar. Quero apenas o seu bem. Pode me entender? Eu sou seu amigo.”
“Você é meu amigo, doutor Trevor?”
“Sim, Miley. Eu sou seu amigo.”
“Onde eu estou?”
“Em meu consultório, na Alemanha.”
“Alemanha? Eu quero voltar! Quero voltar para casa com a minha mãe! Quero estar com ela em Nova Iorque!”
“Fique calma, eu estou aqui. Vamos conversar um pouco, Miley. Assim você esquecerá seus problemas. O que acha dessa ideia?”
A garota respondeu com um aceno de cabeça.
Trevor ajudou Miley a se levantar, colocou-a sentada sobre a mais confortável de suas cadeiras. Desatou os cintos que a amarravam, libertando os braços e as pernas daquela criança indefesa. Por um momento, achou que aquele ato fora um pouco doentio da parte de Joe.
“Você está solta agora, pode fugir ou me bater, se preferir. Mas eu confio em você, Miley. Sei que não vai me desapontar, não quer me ferir. Você quer apenas ver tudo isso passar, não é?”
“Eu só quero poder sorrir outra vez. Quero viver de verdade, doutor.”
(Viver de verdade?)
Por dentro, Trevor mergulhava num turbilhão de lembranças.
“Vamos cuidar disso, minha amiga. Pode contar comigo para qualquer coisa.”
“Obrigado, senhor Kraepelin.”
“Pode me chamar apenas de Trevor, Miley.”
“Trevor?”
“Exatamente.”
“Trevor. É um belo nome.”
“Não tanto quanto o seu.”
Trevor se afastou sem pressa, sentando-se numa cadeira mais distante de sua paciente. Ligou o gravador de áudio em sua mesa, mas Miley parecia desinteressada naquele objeto. Então alcançou seu bloco de anotações.
“O senhor é um médico, Trevor?”
“Podemos dizer que sim. Mas eu não vou curar você, Miley, pois você não está doente. É uma garota forte, resistente e corajosa, nada poderia te derrubar. Eu sou um outro tipo de médico.”
“Você é um médico de loucos?”
Trevor sorriu com simpatia.
“Você se acha louca?”
“Não. Quer dizer, não sei. Às vezes, eu escuto vozes. Vejo sombras e... coisas que se movem. Mas podem ser apenas brincadeiras da minha cabeça, não é?”
“Certamente o são. Você não é louca. Eu não sou um médico para loucos, apesar de parecer. Sou uma espécie de médico que existe para escutar as pessoas.”
“Escutar?”
“Exatamente. Muitos dos nossos problemas podem ser resolvidos com apenas uma conversa tranquila. Sabia disso, Miley?”
“O papai não é bom em escutar a mamãe.”
“Não?”
“Não. Talvez seja por isso que nossos problemas nunca se resolvem.”
“Me conte mais.”
“Não tenho muito para contar. Eles estavam sempre brigando, discutindo por bobeiras. Num dia, se elogiavam, faziam poemas e declarações. No outro, gritavam pela conta do telefone, por ciúme bobo. Papai estava sempre gritando, sempre mesmo.”
“E a sua mãe, Miley? Como ela reagia a isso tudo?”
“Mamãe é uma boa pessoa. Ela poderia ser uma médica de escutar. Sempre me escutou quando precisei, sempre estava lá. Faz algum tempo que ela mudou. Antes, parecia disposta a tentar resolver as coisas. Agora, parece que desistiu do papai.”
“As pessoas podem demonstrar coisas diferentes do que estão pensando, Miley. Por que sua mãe desistiria de seu pai?”
Miley baixou os olhos, visivelmente desanimada.
“Quem é que gostaria de viver para todo o sempre ao lado de uma pessoa que só sabe gritar e causar problemas?”
Trevor estacou. Admirou as bochechas ruborizadas de Miley, tentando entender todo o sofrimento que a assolava. Passara por coisas similares em sua infância, mas nada daquilo poderia lhe abalar agora. Ela, entretanto, era apenas uma criança. Uma menina disputada pelos pais como um prêmio, um troféu. Não era algo simples de se suportar.
Os ouvidos de Trevor nunca lhe abandonavam, sempre atentos a qualquer ruído. Assim, mesmo antes do soluço, escutara os passos vagarosos de Joe, que se aproximava para espreitar a conversa de sua filha. Pai algum gostaria de escutar aquelas palavras ditas por Miley, mas o que ele poderia fazer? Como dissera anteriormente, grande parte da culpa de todo aquele transtorno era dele próprio. Restava se esconder próximo à porta de madeira e escutar a decepção daquela que carregava seu sangue.
“O papai é o grande responsável por todos esses problemas, doutor. Acho que ele pensa que eu sou um empecilho.”
“De maneira alguma, Miley! Seu pai é um bom homem! Mas, como todos os outros homens, ele tem problemas para lidar. Todos nós estamos sujeitos ao stress do cotidiano, às humilhações do trabalho, às intrigas internas e pessoais. Muito disso reflete em nossa personalidade, atinge precisamente as pessoas que estão ao nosso redor.”
“A mamãe nunca passou por isso, doutor. Ela também tem problemas, também tem dificuldades. Mas ela nunca deixou que isso afetasse seus dias. Estava lá, sempre sorrindo, sempre brincando comigo! Qual a diferença entre eles?”
“Não há diferença, mas certamente sua mãe disfarça grande parte de seus problemas.”
“Às vezes eu acho que deveria morrer, senhor Trevor. Talvez meus pais não precisassem brigar tanto se não tivessem que disputar minha atenção.”
A respiração de Joe se tornou um choro pesado, mas logo se afastou da porta onde se postava. Trevor observava aquela menina com admiração, orgulhoso de sua força para enfrentar tais problemas, ainda que a piedade falasse mais alto. Era contrário à ideia de sentir pena de uma pessoa, mas não pôde evitar sentir-se daquele modo ao pensar na situação que afrontava a pequena Miley.
“Morte nunca é uma solução, Miley.”
“Tem certeza, doutor?”
“Certamente, minha amiga.”
“Será que nem mesmo como uma última escolha, como uma atitude desesperada, um pai pensaria em matar sua própria filha?”
Havia um certo ar de superioridade naquela pergunta, impregnada por uma dose miúda de deboche e ironia. Trevor sentiu-se mal, mas hesitou. Talvez estivesse alucinando, o que seria irônico, já que ele deveria cuidar dos sonhadores. Era apenas uma coincidência, isso, um infortúnio da vida.
“Seu pai jamais pensaria em algo assim, Miley.”
Por um momento, Trevor acreditou ver um sorriso no rosto daquela criança.
“Mas e o senhor, doutor? Seria capaz de pensar em matar a própria filha para se livrar de todos os problemas?”