sexta-feira, 24 de maio de 2013

Conto - O Destemido Hawk Coração de Vento

Para uma grande amiga apaixonada por piratas...

O Destemido Hawk Coração de Vento

Na mesa de madeira surrada e maltrapilha, um único pergaminho, aberto. Sobre ele, pena e tinta e ideias. Nas mãos de um escrivão, as armas para uma guerra ilimitada.
O homem sentado àquele local escrevia:

Dentre tantas quantas são as lendas dos Nove Mares da Dinastia, uma muito me fascina: a famigerada história do Capitão Hawk, o Coração de Vento. Não o conhece? Ora, meu caro, se este é seu caso, tenho pena de ti. Disperso por este mundo, deixou de se inteirar de um dos maiores homens a navegar pelas temíveis ondas dos oceanos. Não serre os pulsos por isso, jovem (pois, presumo eu, se não conhece, jovem és, ou passou anos de uma vida sem aprendizado algum, infelizmente...), pois cá estou eu, hoje como narrador de uma lenda viva, para contar-lhe as proezas de Sir Hawk.
Havia, nos confins do arenoso solo do norte, uma miúdo vilarejo de singelos habitantes. Ali, ninguém de suma importância nascia ou nasceria em anos, pois o destino não reservara nada para um local que não podia alcançar. Mas o destino, por sua vez, brinca nas cordas da ironia e, numa das viagens mais assombrosas do já ranzinza Capitão Iggol, das Asas Negras, seu navio acabou por ceder. Após perder toda sua tripulação numa intensa batalha contra os monstros dos Nove Mares, Iggol mergulhou, assistindo à destruição de sua embarcação. Com os sonhos ruindo à sua frente e a vida lhe escapando por entre um ferimento que lhe mutilara uma das pernas, Iggol nadou, por mais de dois mil metros, até encontrar-se numa praia vaga e ventosa. Ali, nas proximidades da vila onde ninguém, pelo destino, seria importante, Iggol encontrou seu fim, mas não sem antes encontrar alguém para assisti-lo morrer: um garoto. Ainda jovem, sem sonhos, sem metas, sem nada. Distante dos pais, da vida familiar, das amizades. Seu nome? Krauser N. Hawk. Não me pergunte sobre o N., acredito que ninguém até hoje saiba de onde vem tal abreviação. E nunca o chame de Krauser, pois ele não admira seu nome. Hawk. Gostava de ser chamado assim. Sentia-se melhor, mais valente, aventureiro. Iggol chamou-o de Krauser, por todas as vezes, e por isso Hawk o odiou, mas não sem antes amá-lo. Ouviu, com o sangue dos lábios de Iggol jorrando em seus ouvidos, as últimas palavras do temido Capitão dos Nove Mares: “Meu sonho hoje desfalece, moleque. Siga-o, além das montanhas e das nuvens; siga-o nas águas. É nas águas que se escondem as maiores verdades, e também as maiores mentiras. Nas águas que os maiores homens se encontram.”
Hawk, possivelmente, não nascera para brilhar; não era estrela, muito menos sol.
Mas, agora, era mais que honra.
Crescera nas ruas, sem pais. Perdera-os para as dificuldades da vida, e somente uma criança poderia se salvar naquele vilarejo. O álcool acabara com a vivacidade da mãe, fizera do pai um escravo. Assim, Hawk tornou-se um homem feito aos onze anos. Tinha fome, roubava; tinha sede, bebia o que encontrasse, adoecia, recuperava-se. Tinha vida, e vivia, acima de qualquer coisa, por mais que, na maioria das vezes, tudo o que pudesse fazer fosse sobreviver.
Aos dezessete anos, depois de doze semestres de aprendizado nas ruas, de estudos escondidos nos becos com livros roubados das escolas cuja pobreza não lhe permitia frequentar, algo mudou naquele vilarejo. Não por dentro, porém; algo veio de longe. Piratas. Como o Capitão Iggol, porém perversos. Não buscavam sonhos, mas sim riquezas. Não buscavam metas, mas sim mortes. Queriam sangue, vidas retiradas nos ganchos metálicos pelo simples prazer de sentir-se um guerreiro. Hawk viu gente morrer. Ansiou pelo conflito, mas a valentia não estava ao seu lado naquela tarde vermelha. Não morria de amores por seus companheiros de cotidiano, mas eles ainda eram companheiros, ainda eram parte de sua vida. Queria poder dizer que sentiu ódio, que desejaria vingança, mas não. O que viu não foi o massacre, não o holocausto, não a morte de um povo que há muito já era esquecido.
O que viu foi uma oportunidade.
O navio atracado, ancorado, disponível. Sem guardas, sem proteções. Corsários ingênuos, tolos. Foi fácil de roubar. Hawk subiu a bordo, mal sabia como funcionava uma embarcação. Subiu as velas, mudou de curso, livrou-se dos pesos extras, navegou. Perdeu-se nos Nove Mares ela primeira vez, com medo dos ventos, das ondas, das feras, mas ainda excitado, exaltado, despreparado, mas ansioso. Deixava os cabelos sacudirem ao ar, sedosos. Aquela era sua vida. Não era uma estrela, tampouco um sol, mas aquele era o seu dia de brilhar.
Por vezes, Hawk se envolveu em perigos que a fantasia de um mundo terreno será para sempre incapaz de contar. Em suas viagens, aprendeu a arte da esgrima, da espada, de tantas quantas eram as lâminas. Em suas viagens, conheceu a mágica, a arte, a escrita, sua melhor arma. Em suas viagens, conheceu o mundo, um mundo sujo, emporcalhado, tão enorme quanto os mapas lhe diziam, tão minúsculo quanto o vilarejo onde nascera.
Em suas viagens, conhecera Saddie Harmônica.
Evitando o transtorno de uma história de romance exacerbado e drama demais, deixo tal parte do conto de Hawk para depois. Não quero perder minhas notas aventureiras com um amor que muitos sabem como surgiu. Se não sabe, sinto muito, mas terá de conter sua curiosidade por mais algum tempo. Mas confesso que é uma bela história, a ser contada em outra ocasião, enfim.
Pois bem, Hawk e Saddie eram unha e carne, inseparáveis, apaixonados, da maneira que os piratas se apaixonam, obviamente. Viajavam juntos, e ambos eram desbravadores. Hawk escrevia, Saddie cantava, e música e histórias se deleitavam no mesmo vento que carregava a embarcação pelos Nove Mares, dispersa em sonhos perdidos, aventuras predestinadas e confusões irremediáveis. Por mais de uma vez, Saddie e Hawk se envolveram em perigos cuja probabilidade mortífera era grande demais para apenas um casal. Sempre contornavam a situação. Giravam ao redor de um abismo de pavores, afrontavam quaisquer que fossem os medos. Hawk era um mestre nas lâminas; Saddie carregava uma harpa que, por si só, era um exército. Lutavam sempre diante de música, som que fascinava, por sua vez. Lutavam, melodiosos, com tempo de trocar bravatas, declarações e beijos. Sempre venciam.
Pergunta-me sobre a alcunha Coração de Vento? Quase me esqueço de tal conto.
Vamos ao que interessa, então.
Hawk e Saddie já navegavam juntos quando aconteceu. A embarcação não era das melhores, precisava de reparos, muitos deles urgentes. Quando atracaram no porto de uma cidadela ao sul, a âncora pesava mais que suas dignidades. Gastaram muito das economias para que um mecânico de navios pudesse ajudá-los na manutenção necessária. Seis dias, disse-lhes o velho, seis dias e o navio seria outro, como se novo. Por seis dias, teriam de suportar a terra, o mundo sem água, sem ondas.
No primeiro deles, foram aprisionados.
Não pela milícia, pela marinha ou qualquer força similar. Foram aprisionados por uma feiticeira. A bandeira presa ao mastro sempre chamava atenção de caçadores de recompensa, mas bruxas? Isso era novidade. A velha senhora, quando notara o crânio esquelético da águia e a harpa, sabia de quem se tratava. Eram famosos, valiosos... bom, quase isso. Enfim, ela sabia quem eles eram. Sabia que tinham o que ela precisava: coração de aventureiros. Muitos dos rituais pedem por corações humanos, ainda a palpitar, preferencialmente, mas alguns cobram mais do que isso: pedem por sangue de aventureiros. Um coração cujo frescor se comparasse a uma batalha nas ondas furiosas que se criam nas oscilações de um Kraken, o sangue de homens cujo maior dos medos é não ter o que temer. Ela precisava da adrenalina de desbravadores, e também do corpo jovial de uma bela mulher, e quem mais bela do que Saddie? Capturou-os, abusando das artimanhas que somente uma bruxa pode ter, e os deixou apodrecer em sua torre subterrânea. Para aqueles que se enojam da terra comum, devido ao costume com a maresia, o quê seria pior do que o subsolo? Claustrofóbicos, Saddie e Hawk juraram por todos os deuses que desacreditavam que aqueles seriam seus últimos dias. Quatro se passaram no silêncio, no escuro. Tinham fome, tinham sede, tinha vontade de respirar os Nove Mares outra vez.
Foi quando a velha surgiu.
Hawk a atacou, de imediato. Ela esperava por isso. Tinha, nas mãos, a curva metálica de um gancho pirata, roubado de um aventureiro anterior. Era velha, mas não tola; a mágica a mantinha sagaz, repleta de uma energia eficaz, catastrófica. Lutou como criança, quase venceu. Hawk não tinha suas lâminas, mas tinha sua agilidade, sua presteza e, acima de tudo, sua vontade de vencer. Sua vontade de ser livre.
Até que o gancho se cravou em seu peito, e ele cuspiu toda sua vontade junto de muito sangue.
Saddie gritou, apavorada. A feiticeira sorria, salivava de excitação.
Hawk morria.
Ou talvez não.
Com olhos ensandecidos, vagos e perdidos, Hawk debochou da bruxa. Puxou seu gancho para dentro do peito, aumentou o ferimento, sem medo. A velha se espantava. Ele, gargalhava.
“Você quer meu coração, velha maldita? Eu sinto muito. Meu coração eu dei a Saddie muito tempo atrás. Aqui, dentro do meu peito, só vai encontrar a liberdade do vento, e talvez um pouco de rum.”
E, para surpresa da bruxa, Hawk ventou. Não um vento comum, mas um vento mágico. Ela foi empurrada para trás com violência, e seu gancho perfurou a carne. Pelo ferimento que tardaria a cicatrizar, a bruxa viu o interior de Hawk e, juraria para todas as feiticeiras de má índole que encontrasse em seu caminho desde então, nada havia em seu peito além de vento.
Assim, em seis dias, Hawk e Saddie voltaram para a embarcação, cujo reparo estava, enfim, terminado. Puseram-se outra vez diante dos Nove Mares, e ali permaneceriam pelo resto de suas vidas, se houvesse um resto depois daqueles curativos no peito de Hawk, claro.

Alguém se aproximou sem que o escritor percebesse e, num movimento ríspido, retirou o pergaminho e leu.
―Saddie Harmônica? ―a mulher estranhou. ―De onde você tira essas coisas?
―É que ―
―E que história é essa de peito aberto? Você sabe que aquela bruxa nem te atingiu, não é?
Hawk respirou fundo.
―Eu só aumentei um pouco mais a história, Saddie!
Hawk ventou. Ah, cara, isso é muito viadinho, na boa. Você enganou aquela mulher, seu larápio.
―A gente sobrevive como pode ―riu Hawk, e se levantou. ―O que temos pro almoço de hoje?
―Se você não cozinhar, nada. É a sua vez, lembra? Ou vai escrever nas suas histórias que eu sou realmente a mulherzinha do casal? ―Jogou na direção de Hawk um pano que, algum dia, fora branco. ―A louça também é sua, hoje. Terça-feira, lembra? Felicidades com a sua pia.
―Felicidades com a minha esposa, isso sim!
Havia, ali, um amor sem igual, sem medidas. E sem respeito, também, mas enfim. Diante da embarcação recém-consertada, Hawk tinha uma vida de aventuras. Os Nove Mares ainda lhe mostrariam muitas coisas, mas nunca, nunca mesmo, uma mulher igual Saddie.
Acima de seus ouvidos, no convés, a harpa ressoou num ensaio.
Ele sorriu. Enrolou seu pergaminho, deixando a história para trás. Faria algumas cópias daquele conto e distribuiria ao mundo em garrafas lacradas. Precisava de mais fama, e talvez isso cuidasse de resolver. Deixou-se levar pela música harmoniosa, feliz. Mais um dia de vida, mais um dia de aventuras. Saddie era a sinfonia; Hawk, as palavras.

E, apenas por aquele dia, era também o cozinheiro.

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