Até a próxima!
Hallucinations
Cody
se sentia estranho.
Apoiado
nas paredes de um corredor mais apertado do que deveria, podia sentir a madeira
fria congelar suas mãos. Sentia, também, a vibração no chão envernizado, o
contato dos pés descalços com o tapete de veludo, a brisa serena que entrava
por pequenas frestas nas janelas.
Sentia
tudo isso, mas não sentia a si mesmo. Era como um cadáver, mas ainda era capaz
de andar, por mais que seus passos mais parecessem o deslizar de um caramujo.
Ainda
lembrava de seu nome, e isto era tudo o que tinha. Seguindo com passos que
faziam todo o local ranger, Cody não se livrou do apoio das paredes,
cambaleando de um lado para o outro enquanto atravessava uma infinidade de
portas seladas. Cada uma delas tinha uma figura, um emblema variado e incomum,
todas trancadas. Tentou forçar uma ou duas, jogou o corpo contra uma terceira,
o ombro quase cedeu ante o impacto. Achou melhor deixar essa ideia de lado e
continuar sua breve caminhada.
A
cabeça doía sem explicação. Martelava na mente dúvidas incessantes: onde estava
e como chegara ali? Franzindo o cenho, Cody conseguia se lembrar de outra casa,
um lar com vozes alegres, com
sorrisos, com pessoas felizes. Ele estava lá, tinha uma família.
Então
despertava para a realidade, notando-se sozinho num lugar desconhecido.
—Tem
alguém aí?
A
intenção era gritar, mas hesitou por um instante. E se houvesse alguém? Poderia
ser sua esposa, seus filhos, mas não sabia dizer se realmente possuía alguém
tão próximo. Talvez fosse um velho abandonado, um homem largado para morrer.
Talvez sempre estivera sozinho, e todas aquelas sensações aprisionadas em seus
pensamentos não eram nada além de devaneios de sua loucura.
Não,
não podia acreditar naquilo.
—Papai!
Uma
criança o chamava.
—Minha
filha?
—Papai!
—Onde
você está?
Onde eu estou?, pensava com ironia.
—Papai,
eu estou aqui!
Mais
à frente. Apertou os passos, passando por janelas entreabertas, os vidros
embaçados revelando um céu negro e limpo. A noite caía com tranquilidade sobre
um solo congelado, recoberto pela neve esbranquiçada do inverno que chegara
ainda mais cedo do que no ano interior. A neve estava ali, clara e fria, mas
estava distante. Cody estava numa casa da árvore, longe do solo firme. Sentiu
náuseas ao pensar desse modo.
—Venha
cá, filha!
Chamava
por alguém que sequer tinha certeza de existir.
Súbito,
um guincho rompeu o ar. Cody parou de se mover, parou de respirar. Encostou-se
a uma parede, uniu os braços ao corpo, esgueirou-se como se esperasse que algo
—ou alguém —passasse à sua frente, mas estava sozinho. Aguardou alguns
segundos, deixou o ar escapar pelas narinas, sentiu cócegas. O clima estava
estranho, um tanto quanto gélido. As janelas pareciam cada vez mais congeladas.
—O
que foi isso? —perguntou para si mesmo. Não esperou uma resposta, e ela
realmente não veio.
Uma
porta chamou sua atenção. Aproximou-se, girou a maçaneta: aberta. Com
vagarosidade, empurrou a madeira com o ombro, encontrou um cômodo amplo e
vazio. Não havia janelas, ou mesmo alguma outra porta. Era um quarto sem
móveis, sem luzes, sem nada.
Atrás
de Cody, a porta se fechou num baque, como se empurrada por um vento que
inexistia. Tentou abri-la outra vez, mas ela estava emperrada. Estava preso.
—Ótimo.
—Papai!
—Filha!
O
que estava acontecendo?
Ouviu
gritos outra vez, a nuca e os braços arrepiaram. Eram lamúrias, dores de uma
garota, de uma mulher, de várias. Gritavam, choramingavam, gemiam enquanto
imploravam por perdão. Mas Cody estava sozinho e, por saber disso, sentia-se um
inútil, um incapaz.
Agachou-se
sobre os joelhos, cobriu os ouvidos com as mãos frias.
—Eu
não quero escutar isso!
—Papai!
—Cale
a boca!
—Papai,
por favor!
—Cale
a boca!
Calou.
Restou
o silêncio.
Cody
se levantou, abriu os olhos que fechou sem perceber. O cômodo era o mesmo, mas
agora havia uma mesa e três cadeiras sobre a madeira do pequeno quarto. Uma
delas era alta, outra mediana, a terceira menor do que as botas que o homem
vestia. Em cada uma das cadeiras, sentava-se um urso de terno e gravata.
—Ora,
se não temos um ilustre visitante —disse o primeiro deles.
—Sente-se
conosco —o segundo apontou um espaço no chão.
—Obrigado.
Estou procurando minha filha.
—Não
está em condições de procurar —anunciou o terceiro. Bebericou uma xícara de chá
que inexistia até então, o líquido escorreu por seus lábios, mesclou-se à sua
pelugem. —As coisas vão te encontrar.
Dois
dos ursos desceram de suas cadeiras. Apenas o miúdo continuou em seu lugar,
bebendo e comendo sem parar.
Cody
queria fugir.
—Papai,
pare!
—Filha.
—Pare,
papai, por favor!
Cody
não podia fugir, não com a voz da filha na mente, lhe implorando para ficar.
Colocou a mão na cintura, havia um facão preso por cordas rústicas. Brandiu-o
com vigor, degolou, decepou, cortou como um caçador. O sangue retocou suas
vestes, impregnou seu corpo como um perfume. Sorriu, nenhum urso se movia.
Sobre
os corpos dilacerados das criaturas, Cody vomitou.
—Meu
querido.
A
voz de sua esposa, ou assim presumiu. Tinha mesmo uma esposa?
—Amor?
—Estou
aqui.
Chutou
a porta, voltou ao corredor da casa da árvore. A faca desaparecera de sua mão,
mas o sangue ainda estava por toda a parte. Conforme corria, sentia a madeira
do chão sobre seus pés, estava descalço outra vez. O cabelo sacudia em sua
aceleração. Não o cortava há quanto tempo? Pareciam anos. A barba estava rala,
incômoda. Queria um espelho para se ver.
Como
um desejo realizado, encontrou um espelho.
Chocou-se
com o resultado.
Cody
estava péssimo. Os olhos tinham olheiras profundas, tão roxas quanto seria
possível para seu rosto claro. A pele esbranquiçava cada vez mais pela falta de
sol, o frio deixava os lábios verdejados. O cabelo e a barba estavam imundos,
muito maiores do que qualquer homem são seria capaz de permitir que ficassem.
Deu de ombros. Que diferença faria? Não sabia onde estava, nem mesmo como
chegara ali. Não sabia se tinha uma família, mas sabia que sua filha estava a
salvo, e também que havia outros precisando de sua ajuda.
—Meu
amor?
Como
ela.
—Querida!
—Não,
eu imploro.
—Querida?
—Não
faça isso.
Cody
socou o espelho com a mão nua, seu reflexo se despedaçou. Sentiu-se revigorado
ao livrar-se da imagem perturbadora que era ele próprio. O sangue que escorria
de seus dedos feridos se misturou ao sangue dos ursos.
—Não
vou deixar que te façam mal.
Correu
sem se cansar, encontrou uma nova porta entreaberta. Abriu-a com um chute, uma
mulher chorava. Tinha a boca amordaçada, os punhos e os tornozelos atados, os
olhos cobertos por uma venda. Parecia apavorada.
—Você
não é minha esposa.
Gritos,
cada vez mais gritos. Estavam em toda parte, incessantes.
—Faça
parar —pediu, mas a mulher chorava. Seu choro era provocante, como se dissesse estou rindo de você, otário.
—Meu
amor, você —
—Faça
parar —era uma ordem.
Ela
se revirou, tentou se mover, murmurou o que a mordaça permitiu que murmurasse.
Gritos, mais gritos, então silêncio, e novamente gritos. Alguma coisa se moveu
num dos cantos, não parecia viva.
—Eu
mandei parar.
A
mulher tombou para trás, inerte. Suas mãos e seus pés estavam livres, sem
explicação. Ela lambeu os lábios, levantou-se com velocidade, esticou os ombros
ao limite. Seus cabelos se moveram como serpentes, os olhos brilharam num
amarelo aterrorizante. Por um momento, Cody a temeu, como temeria uma Medusa,
caso elas existissem. No momento seguinte, Cody tinha seu coração nas mãos, seu
sangue na língua, sua vida se extinguia no frenesi indescritível daquele homem.
Ele
sequer sabia o que acabara de acontecer.
O
coração em suas mãos ainda palpitava, pulsando com fulgor; quente, úmido,
cantarolava uma marcha fúnebre, tossindo vez ou outra como um pequeno
monstrinho, e então se desfez numa poeira colorida.
Cody
estava novamente no corredor, e os gritos atordoavam seus pensamentos.
Uma
porta se abriu, convidativa demais.
—Tem
alguém aí?
Tinha,
mas não houve resposta. Estava muito escuro, e o ambiente noturno era tomado
por ruídos incomuns. Metal se arrastando no chão e nas paredes, baques de
martelos chocando-se contra aço, o som inoportuno de incontáveis gizes riscando
quadros negros. Abraçado pelas sombras, Cody imaginou que encontraria a
tranquilidade que o restante da casa não lhe permitia encontrar, mas acabou se
deparando com um tormento sem tamanho. Cobriu os ouvidos com as mãos, gritou
para evitar a loucura, mas ela já estava presente há tempos.
—Pare,
pare, fiquem todos quietos!
Nenhum
dos sons obedeceu. Correu de um lado para o outro, sem nada ver. Não havia mais
saída, ainda que ele sequer tivesse entrado naquele cômodo. Correntes, batidas,
riscos, gritos, choro, tudo de uma só vez, uma orquestra macabra e mortífera,
cicatrizando os tímpanos como tortura medieval.
—Fiquem
todos quietos!
O
brado de Cody foi maior do que todos os ruídos, tão insano quanto seus
pensamentos daquele instante. Quando ele se calou, a garganta dolorida pelo
urro, restou apenas o silêncio. Um silêncio de estacas pontiagudas, ferindo
como um jardim de rosas mutiladas, com espinhos venenosos e sedentos por
sangue. Cody respirou, mas mesmo suas narinas não produziam som algum. Tentou
gritar, socar-se contra o solo; silêncio. Um mundo calado, sem som, sem vida.
Sem
nada.
De
súbito, uma risada, e uma luz distante e minúscula.
Ei, amigo, vamos brincar de
esconde-esconde?
Era
um urso de pelúcia. Um brinquedo infantil de pelugem escura, rasgada em
diversos pontos, repetindo suas frases a cada passo cambaleante.
Ei, amigo, vamos brincar de
esconde-esconde?
—Eu
não quero brincar.
Cody
chutou o brinquedo para longe com tanta força que seu pé chegou a arder.
A
risada continuou.
Você não devia ter feito
isso.
Estranhou.
Um
grito estrondou no ar. Era uma criança. Um garoto.
Um
filho.
—Não!
Nós vamos brincar de
esconde-esconde, mas você não é um amigo.
—Papai
—o garoto chorava. O garoto que era seu filho, ou que precisava ser, chorava. —Papai...
—Filho!
Por que não começa a se
esconder?
Todas
as luzes se acenderam, mas não eram lâmpadas: eram sóis. Dezenas de astros e
estrelas num céu claro, estampado onde deveria existir um teto baixo de
madeira. Não havia nenhum sinal de uma casa da árvore. Havia, no entanto,
infinitas paredes de folhas num labirinto tão confuso quanto os demonstrados
nas inúmeras versões de Alice no País das Maravilhas. A diferença é que, ali,
não se mostravam maravilhas, mas sim terrores. Os muros gramados tinham presas,
bocarras medonhas, tão famintas que despejavam saliva ácida para todos os
lados. Vinhas dançavam nos ares, repletas de agulhas peçonhentas e olhos
vermelhos, todos eles voltados para a carne apetitosa da única opção a se mover
no labirinto.
A
melhor saída, possivelmente, seria não se mover. Foi quando o mundo se moveu, e
Cody percebeu que não havia saída alguma.
Estava
novamente na casa da árvore, mas dessa vez num quarto de prateleiras imensas.
Em todas elas, brinquedos. Brinquedos e mais brinquedos, bonecas, marionetes,
fantoches, bolas e cubos mágicos, muitos outros.
E
a voz.
Não vai se esconder?
Ela
não vinha de um dos brinquedos. Vinha de todos.
Então eu vou te pegar.
—Merda.
Cody
correu, sem acredita que aquilo que lhe perseguia era um exército de
brinquedos. Homenzinhos de lata, de madeira, de plástico ou alumínio, brandiam
armas ou pedaços de seus corpos, arremessavam lascas de metal e vidro na
direção do fugitivo. Coby passou por uma porta dupla, saltou uma amurada,
desceu uma escadaria em espiral; estava de volta ao corredor. Rolou por sob uma
saída de emergência, subiu um lance de degraus tingidos de azul, desviou-se
quando o corredor se dividiu numa bifurcação. Encontrou as mesmas portas, as
mesmas paredes, o mesmo lugar.
Atrás
dele, monstros infantis. Uma pelúcia rugia como um leão, com olhos caídos e um
corpo repleto de cicatrizes, por onde escapavam enchimento artificial e
entranhas; um bombeiro de plástico tinha um braço com uma fratura exposta, a
cabeça separada por um machado de aço, o peito despejando sangue e órgãos; uma
boneca de cabeça enorme e cabelos arrancados saltitava numa única perna, uma
muleta de carne humana sustentando o peso de seu corpo plástico, esmagando um
cérebro que grunhia ofensas terríveis.
Além
destas, havia outras inúmeras atrocidades, mas Cody não parou para examiná-las.
—Papai
—a voz agora soava distorcida, como um eco fantasmagórico abafado por um cone.
Bocas
surgiam nas paredes, urravam em desespero. Mãos espectrais buscavam o corpo de
Cody, esbarrando vez ou outra em seu corpo, rasgando a pele, cortando as
roupas. Agarravam uns brinquedos cuja agilidade incapacitava a esquiva, mordiscavam
seus corpos e vomitavam novas criaturas, cada vez mais medonhas, cada vez menos
crédulas.
A
casa devorava os brinquedos e paria
outros novos a cada instante.
—O
que está acontecendo aqui?! —Cody gritou, não entendia mais nada. Sua mente
estava confusa, perturbada. Tinha lapsos e ilusões, alucinava. À frente, tudo
se movia como uma geleia da cor da madeira; atrás, tentáculos asquerosos,
marionetes flutuantes, um batalhão de miniaturas com lanças no tamanho de
agulhas.
Assistia
a um filme enquanto fugia. Via uma bela casa de concreto, com azulejos claros e
paredes verdes, mobiliada num exemplo de elegância. Piscou, tudo estava
destruído, parte da cozinha em chamas. Os sofás estavam murchos, os pratos e
copos quebrados, os armários quedaram nas pancadas que precederam aquele
instante. Havia gritos, mas gritos reais, gritos de loucura e distúrbio. Alguém
corria pelos cômodos, debatia-se em todos os móveis, urrava como uma fera
descontrolada. Outros o perseguiam, imploravam para que se acalmasse, choravam pela
dor que não entendiam.
De
volta à realidade mais irreal que já vira na vida, Cody desistiu de sua fuga,
exausto. Olhou para trás, pensando numa alternativa diferente da escapada.
Nada
o perseguia.
—Para
onde vocês foram?! —descontrolado. —Onde vocês estão?!
Não
estavam em lugar nenhum. Havia algo diferente.
Algo
cheirava a podre.
Cody
recuou, não sabia o que esperar. Tropeçou em alguma coisa, visualizou, era uma
mão decepada. Dois dedos exibiam vermes sob as unhas, os demais sequer estavam
completos. Era uma visão horrível, mas poderia piorar, e o fez.
Ela
se moveu, bem como a madeira que sustentava o peso de Cody.
Gritos,
estalos, o mundo parecia crepitar. Havia espectros, fantasmas, mortos e mais
mortos, saídos das portas, das janelas, do nada.
O mundo desabou, o estrondo expurgando o grito apavorado de Cody, e logo após
silêncio. Não houve queda, pancadas, ferimentos, nada. Cody estava ali, sentado
num cômodo vazio, abraçado às pernas como uma criança temerosa. Tinha lágrimas
nos olhos e sangue nas roupas, mas não se recordava de nada. A casa ainda era a
mesma, mas alguma coisa estava diferente.
Parecia
mais real.
A
saliva tinha gosto de sangue. Cody limpou os lábios, mais sangue. Alguma coisa
estava errada. Forçou sua mente para lembrar-se do que podia, encontrou novas
memórias. Uma esposa, Jennifer, dois filhos, Pablo e Marina. Ela, loira e alta,
uma beldade trabalhadora e estudiosa; eles, esforçados, herdeiros dos olhos
claros da mãe, um ano de diferença nas idades. Moravam numa casa grande, uma avenida
populosa, próxima a muitos apartamentos e condomínios. Tiveram um problema, mas
ele não conseguia se lembrar os detalhes. Algum infortúnio do destino que os
fez desistir da residência, vender todos os bens, partir para uma casa no
campo. Gastaram muito, compraram uma fazenda com todas suas economias,
construíram uma casa na árvore. Os filhos adoraram, a esposa sentiu-se bem.
Não
era essa a intenção, entretanto, e o verdadeiro objetivo não foi alcançado.
A
porta à frente de Cody balançava pelo vento, rangendo sem pressa, um ruído
miúdo, ainda que incômodo. Com esforço, levantou-se da posição infantil,
apoiou-se nas paredes para evitar a queda, a tontura era um problema. Esperou
escutar novos gritos, reinava o silêncio. Alguma coisa estava errada, errada mesmo.
Caminhou
com passos incertos, abrindo a porta para uma cena que destruiu seu cérebro.
Aquele
era o seu quarto. Havia uma cama de casal, um trabalho minucioso na madeira da
própria árvore. Sobre ela, o corpo da esposa jazia sem vestimentas, os seios largos
jogados, separados por um corte grande o suficiente para receber os braços de
Cody. Havia órgãos estirados, um intestino quedava para o chão, sacudindo como
um pêndulo. As pernas tinham cicatrizes imensas, cobertas de sangue fresco,
recente.
Cody
vomitou.
Poderia
alguma coisa ser pior do que aquela visão?
Acreditava
que não, mas sua dúvida foi respondida com uma imagem ainda mais chocante.
Seus
filhos. Sempre amáveis, sempre adoráveis, sempre felizes. Agora, dependurados
nas paredes do cômodo, trespassados por facas e estacas. Ainda sangravam,
despejando os resquícios de suas vidas contra a madeira do chão, o som do
gotejar como um tic-tac indesejado.
Nas mãos de Pablo, brinquedos, um urso de pelúcia e um boneco militar. Nas mãos
de Marina, preso por uma tira de fita adesiva, um antigo livro de contos de
fadas, ilustrado com a imagem do Chapeleiro Maluco.
—Não
pode ser. —Cody engoliu em seco.
Havia
um diálogo em sua mente. Uma visita recente ao médico, ele acompanhado de sua
esposa. Sentados à frente de um doutor grisalho, ouviam recomendações sobre uma
certa doença que destruía, há algum tempo, toda a vida amorosa que o casal
chegou a ter.
—Esquizofrenia
—contava o senhor, —é um caso complicado de se resolver. Acredito que possa
lhes recomendar uma mudança. Abandonem o desnecessário, partam para algum lugar
tranquilo. Um campo, talvez, ou uma chácara. Construam uma casa na árvore!
Seria interessante para o tratamento do senhor Cody.
—Não
pode ser... —A cabeça de Cody estava prestes a explodir.
Havia
outros momentos rompendo as fronteiras de suas lembranças.
Escutava
gritos em sua mente, gritos da esposa, dos filhos. Violência demais, loucura
demais. Cody perdia o controle, quebrava móveis, batia em seus familiares.
Mudaram-se para a casa na árvore esperando que as situação fosse reparada, em
vão.
Ali,
Cody matou todos aqueles que amava.
—Você
é mau, Cody.
—Quem
disse isso?
—Você
é uma pessoa ruim.
Não
havia ninguém ali. Somente Cody, e os corpos da família que ele próprio
destruiu.
—Apareça!
—Eu
estou aqui. Eu sou tudo o que você
vê.
—O
que está falando?
As
paredes sorriram, o teto lacrimejou.
A
casa estava viva.
—Você
matou sua família.
—Eu
não sabia! Eu estava louco, estava perdido! Não sabia o que estava fazendo!
O
chão oscilou.
—Você
matou todos eles, Cody.
Cody
fugiu.
—Pare,
pare de me atormentar, pare!
Móveis
tombavam à sua frente, os vidros das janelas estilhaçavam. Lá fora, o tempo
estava bom, um sol fragilizado por nuvens graciosas. Era tão atraente, tão chamativo. Um céu belo, capaz de livrar um homem de todos os seus
problemas, de extinguir quaisquer que fossem as dores.
Cody
apoiou-se na amurada de uma das janelas.
—Até
quando pretende fugir?
—Pare
de me atormentar!
—Você
matou seus filhos!
—Pare!
—Você
destruiu tudo!
—PARE!
Puxou
o corpo para fora, a brisa o acolheu. Sentia-se uma pluma no vento, carregado
de um lado para o outro numa fantasia momentânea que durou somente um instante.
Não gritou, não chorou, não fez nada. Sentiu-se livre, pela primeira vez na
vida; ao fim, encontrara a chave para sua liberdade, e ela estava ali, na
queda, na morte.
O
estrondo do corpo contra o solo foi grande, mas ninguém escutou. Demorariam
alguns dias até que alguém encontrasse os corpos, mais outras horas até que
conseguissem entender o ocorrido. Mais tarde, noticiariam sobre a família que
fora assassinada por um esquizofrênico que suicidou logo a seguir, e então tudo
seria esquecido.
Ninguém
saberia sobre as alucinações, sobre os delírios, muito menos sobre a casa que
tanto o atormentou.
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