quinta-feira, 6 de setembro de 2012

WN - Baile de Espíritos - 10


X

Antes, tivera um nome.
Eu fora apaixonada, também. Até mesmo o vento amou.
Antes de vento, houve um homem, um garoto, um ser vivente. Ele tinha sentimentos, emoções, ainda que todas elas se confundissem no entrelaço da passagem dos dias. Eu amei, e o vento também amou, e nós nos amamos.
Antes do vento, houve um garoto.
Seu nome era simples, bem como o meu, mas de que nomes me serviriam? Eu o assistia na insegurança, via-o antes de tê-lo visto em vida. Ele não sorria. Não tinha amigos, mas inimigos tinha aos montes.
Ele odiava a guerra.
Eu o vi se rebelar contra aqueles que zombavam de sua pessoa, usar da mágica que tinha em seu corpo para se vingar, se arrepender depois. Tudo se perdia quando lince se tornava, antes de vento, depois de garoto. Como animal, nada lhe importava. O mundo era outro, e o maior dos estrondos era o silêncio.
Ele não me aceitou de imediato, mas eu insisti. Senti nele a esperança que não mais era capaz de encontrar. Achei-o fascinante, ainda que, até então, sequer era capaz de imaginá-lo como mago que era. Segui-o, deixei tudo para trás, perdi o pouco que tinha até que o pouco fosse nada. Mas eu o tinha, e isso era o suficiente. E ele tinha a mim, e achei que serviria.
Não servi.
Minha morte veio por suas mãos, uma vez antes. Agora, como vento, viria novamente.
O vento tomava a silhueta de um ser, um humanoide deformado pela corrupção, pelo caos, pela dor e pela sede. Ele tinha fome, mas nada o saciaria. Odiava tudo, e tudo tinha de se perder. Ele tinha fome, e tudo o que podia devorar eram almas, espectros, fantasmas, como aqueles que tinham histórias.
Como eu.
Vi em suas mãos o resquício de uma alma. Um garoto de sonhos imensos, de desejos avassaladores, que por pouco não o mantiveram vivo pela eternidade tamanha a força daquela determinação. Ele também me era familiar. Rob? Eu sabia seu nome. Eu sabia o nome dele, sabia sua história. Via-o chorar por não se tornar o mais famosos dos escritores numa terra onde não havia história para ser escrita. Via-o sofrer por desfalecer sem que suas vontades tão poderosas pudessem afrontar a mais poderosa das ameaças, que partira da guerra, do caos, daquele em quem mais confiara na vida.
E eu me recordava de tudo, como se revivesse cada um daqueles momentos.
Como se fosse outra vez Camila, e o vento negro, o homem que amei, outra vez Raymond.
Senti o rosto banhado por lágrimas, e o pranto era tão espectral quanto eu mesma era capaz de ser. Desabei num choro terrível, sem soluçar. Era ele, não era? Aquele que amei, aquele que me amou. Aquele que me tirara a vida.
Fora um erro.
Atrás de seu sopro esfomeado, a voz. A voz interna, a voz de criança, a voz de quem não sabe o que faz. Ela me chamava, dizia para que eu me aproximasse. Era nada além de um sussurro, nada além de um murmúrio dolorido, doloroso, aterrador. Me chamava, e então sussurrava mais, mas eu não entendia. Desculpas? Ódios? Impossível diferenciar.
Entre o vento negro, tudo era igual, pois nada importava.
Ele me abraçou. Num primeiro instante, quente e aconchegante, e eu o amei outra vez. Pensei ser capaz de falar, mas não o era. Movi os lábios, e a leitura labial mais simplória identificaria meus sentimentos jorrando naquelas palavras caladas, naquela declaração emudecida, mas ele não ouviu, não viu, não sentiu, não se importou. Ele apenas me abraçou, quente e aconchegante, e ali ficou por um tempo que me pareceu infinito.
Quando o infinito acabou, o abraço se tornou gélido.
Eu morria. Não era especial. Morrera uma vez antes pelas mesmas mãos, e agora não seria diferente. Uma vez antes, fora tirada da vida por seu descontrole, e agora seria levada à inexistência, sem chance alguma, sem vontade de persistir.
Eu o amava e, se ele não me amava, eu não tinha motivos para perdurar.
O vento soprou forte sem sair do lugar. O abraço era frio, um frio que eu não imaginei ser capaz de sentir. Eu congelava, inexistia. Era um tufão, um rugido ensurdecedor, um estrondo cortante e angustiante.
Num último instante, eu abri os olhos. Fitei-o, cacei a voz que implorava, que me chamava, que ainda demonstrava a humanidade que não se deixava abater, ainda que oprimida por anseios perversos. Levantei os olhos, a mente, a alma, reunindo todas as minhas forças para que, uma última vez, pudesse deixar jorrar o meu amor para seus olhos, na esperança de que isso fosse o suficiente para que sua vida negra ganhasse cores.
Em vão.
Naquele vento negro e devastador, naquele sopro catastrófico e sombrio, tudo era caos e escuridão, e eu me deixei levar pelas sombras ao perceber a impossibilidade de encontrar em seu rosto os olhos que um dia me conquistaram.

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