X
Antes,
tivera um nome.
Eu
fora apaixonada, também. Até mesmo o vento amou.
Antes
de vento, houve um homem, um garoto, um ser vivente. Ele tinha sentimentos,
emoções, ainda que todas elas se confundissem no entrelaço da passagem dos
dias. Eu amei, e o vento também amou, e nós nos amamos.
Antes
do vento, houve um garoto.
Seu
nome era simples, bem como o meu, mas de que nomes me serviriam? Eu o assistia
na insegurança, via-o antes de tê-lo visto em vida. Ele não sorria. Não tinha
amigos, mas inimigos tinha aos montes.
Ele
odiava a guerra.
Eu
o vi se rebelar contra aqueles que zombavam de sua pessoa, usar da mágica que
tinha em seu corpo para se vingar, se arrepender depois. Tudo se perdia quando
lince se tornava, antes de vento, depois de garoto. Como animal, nada lhe
importava. O mundo era outro, e o maior dos estrondos era o silêncio.
Ele
não me aceitou de imediato, mas eu insisti. Senti nele a esperança que não mais
era capaz de encontrar. Achei-o fascinante, ainda que, até então, sequer era
capaz de imaginá-lo como mago que era. Segui-o, deixei tudo para trás, perdi o
pouco que tinha até que o pouco fosse nada. Mas eu o tinha, e isso era o
suficiente. E ele tinha a mim, e achei que serviria.
Não
servi.
Minha
morte veio por suas mãos, uma vez antes. Agora, como vento, viria novamente.
O
vento tomava a silhueta de um ser, um humanoide deformado pela corrupção, pelo
caos, pela dor e pela sede. Ele tinha fome, mas nada o saciaria. Odiava tudo, e
tudo tinha de se perder. Ele tinha fome, e tudo o que podia devorar eram almas,
espectros, fantasmas, como aqueles que tinham histórias.
Como
eu.
Vi
em suas mãos o resquício de uma alma. Um garoto de sonhos imensos, de desejos
avassaladores, que por pouco não o mantiveram vivo pela eternidade tamanha a
força daquela determinação. Ele também me era familiar. Rob? Eu sabia seu nome.
Eu sabia o nome dele, sabia sua história. Via-o chorar por não se tornar o mais
famosos dos escritores numa terra onde não havia história para ser escrita.
Via-o sofrer por desfalecer sem que suas vontades tão poderosas pudessem
afrontar a mais poderosa das ameaças, que partira da guerra, do caos, daquele
em quem mais confiara na vida.
E
eu me recordava de tudo, como se revivesse cada um daqueles momentos.
Como
se fosse outra vez Camila, e o vento negro, o homem que amei, outra vez
Raymond.
Senti
o rosto banhado por lágrimas, e o pranto era tão espectral quanto eu mesma era
capaz de ser. Desabei num choro terrível, sem soluçar. Era ele, não era? Aquele
que amei, aquele que me amou. Aquele que me tirara a vida.
Fora
um erro.
Atrás
de seu sopro esfomeado, a voz. A voz interna, a voz de criança, a voz de quem
não sabe o que faz. Ela me chamava, dizia para que eu me aproximasse. Era nada
além de um sussurro, nada além de um murmúrio dolorido, doloroso, aterrador. Me
chamava, e então sussurrava mais, mas eu não entendia. Desculpas? Ódios?
Impossível diferenciar.
Entre
o vento negro, tudo era igual, pois nada importava.
Ele
me abraçou. Num primeiro instante, quente e aconchegante, e eu o amei outra
vez. Pensei ser capaz de falar, mas não o era. Movi os lábios, e a leitura
labial mais simplória identificaria meus sentimentos jorrando naquelas palavras
caladas, naquela declaração emudecida, mas ele não ouviu, não viu, não sentiu,
não se importou. Ele apenas me
abraçou, quente e aconchegante, e ali ficou por um tempo que me pareceu
infinito.
Quando
o infinito acabou, o abraço se tornou gélido.
Eu
morria. Não era especial. Morrera uma vez antes pelas mesmas mãos, e agora não
seria diferente. Uma vez antes, fora tirada da vida por seu descontrole, e
agora seria levada à inexistência, sem chance alguma, sem vontade de persistir.
Eu
o amava e, se ele não me amava, eu não tinha motivos para perdurar.
O
vento soprou forte sem sair do lugar. O abraço era frio, um frio que eu não
imaginei ser capaz de sentir. Eu congelava, inexistia. Era um tufão, um rugido
ensurdecedor, um estrondo cortante e angustiante.
Num
último instante, eu abri os olhos. Fitei-o, cacei a voz que implorava, que me
chamava, que ainda demonstrava a humanidade que não se deixava abater, ainda
que oprimida por anseios perversos. Levantei os olhos, a mente, a alma,
reunindo todas as minhas forças para que, uma última vez, pudesse deixar jorrar
o meu amor para seus olhos, na esperança de que isso fosse o suficiente para
que sua vida negra ganhasse cores.
Em
vão.
Naquele
vento negro e devastador, naquele sopro catastrófico e sombrio, tudo era caos e
escuridão, e eu me deixei levar pelas sombras ao perceber a impossibilidade de
encontrar em seu rosto os olhos que um dia me conquistaram.
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