Até a próxima!
Grunhido
no Escuro
Allana
sentiu a presença de Juno desaparecer.
“Ela
não está mais aqui. Perdemos esta noite, Liam.”
“Tudo
bem, irmãzinha, não foram horas perdidas. Você enfrentou seu primeiro Guardião,
conseguiu derrotá-lo, não teve medo. Foi um momento proveitoso para nós dois.”
“Não
sente que estamos nos unindo cada vez mais?”
“Sim,
irmãzinha.”
“Quero
que nos tornemos apenas um, Liam. Quando isso acontecer, vou sentir que estou
completa.”
Liam
riu, simpático.
Então
parou.
“Tem
alguém nos observando.”
Allana
preparou a lança. As espiãs saltaram à sua frente, eram idênticas, como se dois
espelhos surgissem na rua, interceptando a passagem da Vongeist. Uma tinha
cabelo azulado, a outra, um ruivo rosado e atraente.
“Quem
são vocês?”
“Não
se altere, garotinha. Somos amigas, em termos. Meu nome é Luna.”
“Eu
sou Coral. Se nos ajudar, poderemos lhe ajudar também. Só precisamos que nos
escute.”
Liam
alertou Allana para que ela não baixasse sua arma, e assim ela fez.
“Como
posso confiar em vocês?”
“Não
confie. Pouco nos importa. Estamos aqui para trazer uma mensagem, e um convite.”
“Mensagem?”
“Nós
sabemos sobre sua história, garota. Sabemos sobre seus pais.”
Allana
se surpreendeu, baixou a guarda. Liam falou algo dentro de sua mente, mas ela
não conseguiu escutar.
“Como
sabem?”
Foi
Luna quem respondeu.
“Temos
contatos nas raízes de Elizei, e a milícia nos fornece todas as informações
necessárias. Sabemos tudo o que aconteceu naquele dia. Não estamos aqui para
culpá-la por algo de anos atrás.”
Coral
continuou, a partir da pausa da irmã.
“A
vida é a pior das prisões, Allana, logo vai descobrir que o castigo carregado
pelos anos é tão trágico quanto um quarto escuro e abafado. Não é preciso um
chicote para ferir.”
“Vocês
não sabem de nada. Essa é a mensagem que me trouxeram?”
“Exato.”
“E
quanto ao convite?”
“Uma
visita. Apenas um reencontro. Deveria sentir-se honrada, Allana. Alguém muito
importante pediu por um momento com sua pessoa. Você certamente tem algo de
especial.”
“De
quem estão falando?”
Luna
sorriu. Seus olhos brilhosos permitiam que enxergasse os sentimentos de uma
pessoa, e este era um hábito que jamais perderia. Sentia prazer ao notar a
confusão, o turbilhão de pensamentos e emoções que se desvirtuavam na mente de
Allana, tão confusa quanto uma criança numa brincadeira de adultos. Enquanto
admirava seu passatempo favorito, Coral disse o nome que nenhuma das gêmeas
gostava de dizer.
“Razvan.”
Allana
sentiu o rosto avermelhar, não por timidez. A lança em suas mãos oscilou,
pareceu mais pesada graças àquele nome que tanto desprezava. Recordava-se pouco
daquela pessoa, e mesmo este pouco era o suficiente para forçá-la a se lembrar
de momentos trágicos e dolorosos. Razvan não era um bom homem, nunca seria.
Fizera mal aos seus pais, à sua família. Era o motivo de brigas e discussões,
de lágrimas e sofrimento. Era o grande culpado por aquele dia, por aquele ato
grotesco. O que poderia desejar com Allana?
“Qual
a sua resposta, Allana?”, perguntou Luna.
“Eu
tenho o direito de responder?”
“Não.”
“Imaginei
que seria assim.”
As
irmãs esticaram os braços, Allana entrelaçou os dedos com elas.
“Vai
sentir-se enjoada por algum tempo. A magia geralmente traz efeitos do tipo em
quem não está acostumado.”
“Tudo
bem.” Allana sorriu. “Eu estou.”
***
A
paisagem mudou por completo.
Seria
um sonho?
Estavam
no subterrâneo, um lugar desconhecido para Dylan. A fama o deixava sempre nas
áreas mais importantes de Ylenia, pouco conhecia sobre o Subúrbio, sobre os
Abrigos. Sabia das histórias; algumas pessoas chegavam a comentar sobre
fantasmas e assombrações. Não acreditava naquelas coisas, mas achou que, em
toda sua vida, nunca conheceria um Abrigo pessoalmente.
Achava,
também, que jamais teria de se afastar de Rachel. Seus erros trouxeram-lhe uma
dor imensa.
“Acredito
que ambos saibam sobre os Abrigos do Subúrbio, estou certo?”
Altair
estava lá, não era um sonho. Toda aquela confusão tinha realmente acontecido.
Os monstros, o homem-escorpião, a mulher de sorriso dourado. Mesmo o próprio
Altair, coberto de penas sombrias, era real. Tudo era real, e isso dificultava
as coisas.
“Conheço
algumas histórias”, admitiu Dylan. “Nunca andei por esses lados. Sequer
atravessei o Arco de Gael em minha vida.”
“Já
morei no Subúrbio, muito tempo atrás”, contou Derek. “Não é um bom lugar,
sabem? As pessoas matam e roubam para sobreviver. Vocês, acostumados à mordomia
da Terra da Realeza, jamais seriam capazes de residir deste lado.”
“Ylenia
é uma das piores cidades-nação, quando se fala em desigualdade social”, começou
Altair. Falava como um professor. “Até mesmo Abigail consegue distribuir seu
povo de uma maneira mais digna. Aqui, os ricos vivem de um lado, os
desfavorecidos são excluídos. As coisas não deveriam ser assim.”
Altair
guiou-os por alguns túneis, viram pessoas espalhadas por lá. Aquele Abrigo era
o que chamavam de lar, o chão era suas camas, as paredes largas e protegidas contra
guerras eram as mesmas que guardavam famílias do frio e dos perigos das ruas.
Nem mesmo Elizei ousava se aventurar naquele lado de Ylenia, mas talvez não por
medo. Não era necessário. Ali, a justiça era cega, surda e muda. O que era
feito era cobrado; a lei dos mais fortes imperava.
Era
uma vida difícil.
Chegaram
a uma porta peculiar, Altair a abriu com um código veloz. Passando por ela, o
homem-pássaro observou, verificando se não tinham sido seguidos. Constatando a
segurança, Altair cerrou a porta atrás de si, acendeu algumas lamparinas de
cores distintas, fez do ambiente claustrofóbico um cômodo quente e maltrapilho.
“Sei
que não é o melhor dos lares, mas é o que consegui. É seguro, e isto é muito
mais importante do que o conforto. Puxem aquelas cadeiras, sentem-se em algum
lugar. Não tenho uma televisão de plasma para alegrar nossa noite, mas posso
preparar alguma coisa para comer.”
E
desapareceu por outra porta, deixando Derek e Dylan sozinhos.
Sentaram-se
próximos, apoiados numa mesa improvisada por uma madeira sobre barris.
“O
que acha desse cara?”, Dylan cochichou, cobrindo a boca com as mãos. “Acha que
podemos confiar nele?”
“E
temos opção? Até ontem eu pensava que Armor Boxing era a coisa mais perigosa do
mundo. Hoje fiz um acordo com um ser que não posso ver, ganhei uma espada
encantada e tive de fugir de um gato com três rabos e um polvo-motosserra. Acho
que confiar num homem com penas não é algo ruim, no fim.”
Dylan
riu.
“Como
é a sensação?”
“Que
sensação?”
“A
sensação de ser um campeão. De ser importante, famoso, de ganhar dinheiro
enfrentando outros caras da sua idade, derrubá-los com socos precisos. Como
você se sente quando pisa no ringue, quando o gongo soa, quando começa a luta?
Sempre imaginei essas coisas.”
“Não
é das melhores. É gosto trocar socos quando se está de corpo quente. Depois de
um tempo, quando as feridas começam a lembrá-lo que você é humano, dá vontade
desistir dessa profissão.”
“Duvido!
Se eu pudesse socar todos aqueles mimados e receber por isso, seria um
milionário hoje em dia! Não sabe o quanto eu brinquei de boxe na minha
infância! Me aproveitava do meu irmão caçula e distribuía socos adoidado. Uma
loucura.”
“Imagino
que sim.”
“E
você? Já pensava em lutar desde pequeno?”
Aquela
pergunta pegou Dylan desprevenido. Nunca sonhou em ser lutador. Pensar em sua
infância lembrava-o de que, não fosse por Oriol, o Uberein que oferecera um
acordo durante aquela briga, Dylan seria uma criança reclusa até os dias
atuais. Era estudioso, inteligente, mas não sabia brigar. Não tinha forças.
Então, de um dia para o outro, tudo mudou. Aquela determinação, aquela vontade,
aquele dom, alterando sua vida como nada antes o fez. Por vezes, pegava-se
pensando se aquilo era verdade, se era ele mesmo, ou se estava sendo
influenciado por desejos externos.
“Não.
Na verdade, não cheguei a pensar em nada quando criança.”
“Quem
diria, o campeão de Ylenia sequer sonhava em ser um lutador! As coisas costumam
ser diferentes daquilo que a gente planeja. É normal e...”
Aparentemente,
o assunto alcançara algo delicado para Derek, era fácil notar. O garoto baixou
os olhos, pensou sozinho, sem dizer nada. Era impossível dizer o que se passava
em sua mente.
“Bom,
vamos deixar isso para lá. Voltando ao homem-pássaro, não sei quais são suas
intenções.”
“Não
sei nem mesmo as minhas, Derek.”
Riram
juntos.
“Dylan,
posso te fazer uma pergunta?”
“Mas
é claro.”
“Por
que você aceitou o Reiseziel?”
“E
nós tínhamos escolha?”
“Talvez
não, mas não acredito que seja simples assim. Seu Uberein falou sobre Juno, não
falou? Ele te explicou sobre as recompensas, o tal desejo que pode realizar
tudo, certo?”
“Sim,
Oriol me contou sobre tudo isso.”
“Então
você certamente tem um objetivo! Você é famoso, tem dinheiro, tem uma carreira
de sucesso! O que mais poderia desejar?”
Rachel.
“Eu
perdi tudo, Derek. Naquela noite, na qual eu deveria alcançar o maior objetivo
de minha vida, eu perdi todos aqueles que amava. Estou aqui por eles. Se essa
história de Juno for real, como cada vez mais acredito que seja, vou pedir para
que me tragam de volta aquilo que perdi. Caso contrário, não serei capaz de
viver em paz.”
“Entendo.
É por isso que enfrentou o Guardião daquela maneira, não é?”
“Não
sei. Naquela hora, não estava pensando em muita coisa. Mas, agora ou depois,
teremos de enfrentar essas coisas. E danem-se os Guardiões ou todo o resto. Eu
enfrentaria o inferno para conseguir ter aquilo que desejo de volta.”
Derek
sorriu.
“Fico
feliz por sua determinação, Dylan, e mais ainda por encontrar em você um motivo
justo. Fico feliz, mas ao mesmo tempo fico triste.”
“Por
que?”
“Eu
também tenho um motivo, algo muito importante para mim. Não pretendo desistir.
Não pretendo deixar que ninguém me vença. E isso inclui você, Dylan.”
Aquelas
palavras foram disparadas como flechas, ferindo o corpo de Dylan como nenhum
oponente foi capaz de ferir. Pensar daquela maneira era a maior tortura daquele
jogo. Todos eram concorrentes. Todos aqueles envolvidos na caçada de Juno
tinham o mesmo objetivo, um objetivo que apenas uma pessoa poderia alcançar.
Haveria amigos, grupos e organizações, mas no fim, apenas uma pessoa seria
vitoriosa. Parecia um castigo grande demais.
“Acho
que podemos pensar nisso mais tarde”, disse Dylan, sorrindo de maneira
desajeitada. “Vai me contar qual é o seu desejo?”
Passos.
“Outra
hora.”
Altair
surgiu novamente no cômodo, trazendo consigo uma garrafa de chá e torradas. Não
era a melhor das refeições, mas algo muito mais incrível do que Derek e Dylan
pensavam. Sentados à mesa, abriram espaço para que o pássaro se sentasse entre
eles, e então se serviram. O sabor era agradável, mas o aroma era mais
delicioso do que o próprio chá seria capaz de ser.
“Sou
bom com ervas”, contou Altair, com um sorriso estranho em seu rosto de penas. “Sei
preparar chás e medicamentos com quase todos os tipos de plantas existentes
aqui em Ylenia, e além.”
Derek
tomou um gole de chá, então perguntou:
“As
pessoas do Abrigo não se assustam com sua aparência? Digo, não é por mal, mas
ninguém está acostumado a ver pássaros andando por aí, entende?”
Altair
riu alto.
“Vocês
podem me enxergar assim, mas nem todas as pessoas podem. Os moradores do
Abrigo, assim como qualquer pessoa das ruas, me veem como um velho de barba e
cabelo comprido. O Seiren nos camufla, engana as pessoas. Apenas outros
usuários de Seiren conseguem ver a verdade por trás de nossas falsas imagens, a
menos que nós mesmos desejemos o contrário.”
“Essas
coisas são muito complexas.”
“É
só a ponta do iceberg! Tem muito mais para vocês aprenderem sobre o mundo e
seus perigos. Mas, antes disso, preciso falar com vocês sobre outro assunto.”
“E
qual é?”
Altair
bebericou o chá.
“O
que sabem sobre Juno?”
Derek
refletiu, mas Dylan respondeu mais rápido.
“É
uma espécie de entidade capaz de realizar desejos, caso seja aprisionado. Ao
menos, é o que me parece.”
“Em
termos. Juno é muito mais do que isso, Dylan, pode ter certeza. Mas é o
suficiente, neste momento. Seus Uberein vão lhes auxiliar na busca por Juno, ao
mesmo tempo em que vão ajudá-los nas batalhas contra aqueles que os desafiarem.
Acima de tudo, precisam saber como se defender, como contra-atacar. Mais
importante ainda: têm de saber como farejar
Juno.”
“Farejar?”
“Sentir
a sua presença. Esta noite, Juno estava lá, em algum lugar de Ylenia. Muitos
Vongeist, como vocês mesmos, começaram a caçada sem saber o que fazer. Os
Guardiões estão sempre famintos por novatos, precisam ter cuidado, saber como
enfrentá-los. Não vou negar que alguns dos inexperientes morreram durante a
primeira de suas caçadas, mas este é o ciclo da vida. Além do mais,
entendam-nos como concorrentes fora da disputa.”
Era
um método um pouco frio para se
pensar, mas Dylan e Derek não comentaram nada.
“Vocês
fugiram, fortaleceram aquelas criaturas com seus medos. Alguns dos novatos
conseguiram enfrentar os Guardiões, por não terem medo. Não são mais ou menos
fortes do que vocês. Apenas enfrentaram aqueles monstros sem temer, aprendendo
a utilizar a Seiren que carregam.”
“E
o que podemos fazer com essa Seiren? É como magia, não é? Podemos voar,
explodir as coisas?”
“Vá
com calma, Derek. A Seiren é poderosa, mas muito perigosa. Com ela, vocês podem
fazer tudo. A magia é ilimitada, de acordo com a vontade daquele que a utiliza.
Cada um de vocês recebeu uma Gier, um presente pós-Reiseziel, e ela os
acompanhará até o fim dessa batalha. A Seiren, entretanto, é diferente. É um
dom, uma habilidade. Aquilo que vocês desejarem poderá ser feito, desde que
suas mentes estejam aptas a controlar este poder.”
Dylan
parou para pensar. Durante todos aqueles anos de Armor Boxing, enfrentara
oponentes com uma habilidade sobrenatural. Quando era alvejado, Dylan enxergava
tudo em câmera lenta, sabia prever os movimentos, criava infindáveis
estratégias para se esquivar, para evitá-los e contra-atacar. Aquilo também era
Seiren?
“Uau,
isso parece incrível! Eu poderia incendiar essa minha espada com um fogo dourado
e explodir aquele polvo-motosserra em milhões de pedaços! Onde está o seu Deus
agora?!”
Nem
mesmo Altair conseguiu segurar o riso.
“Sua
energia me deixa admirado, Derek, mas você precisa ter cuidado. Caso usada de
maneira incorreta, a Seiren não hesitará em atacar o próprio usuário.
Precisamos pensar bastante antes de recorrer a este tipo de poder. Em níveis
extremos, a Seiren pode anular uma
pessoa ou objeto, apagá-lo da existência. É muito diferente de destruir algo; é
como se nunca houvesse existido.”
“Por
que está nos contando isso?”, Dylan perguntou.
Não
que não estivesse interessado, pelo contrário, era fabuloso saber de todas
aquelas coisas. Estranho era ver um homem que acabaram de conhecer contar a
eles todos aqueles segredos que a maior parte do mundo desconhecia.
“Porque
vocês precisam saber com o quê estão lidando, Dylan. Caso contrário, os preços
serão muito altos, e não é o que desejo para vocês.”
“O
que tem de especial em nós? O que fez você se voluntariar para nos ajudar?”
Altair
terminou seu chá, engoliu uma última torrada, apressado. Então encontrou os
olhos de Dylan.
“Você
é inteligente. Realmente, tenho interesse em vocês, assim como em todos os
demais Vongeist. Algo em vocês me parece familiar,
vamos dizer assim. Sinto-me na responsabilidade de oferecer auxílio. E só.”
“Você
não respondeu. O que tem de especial em nós?”
“E
por que haveria algo de especial em vocês? São como crianças neste mundo,
Dylan. Quero apenas que aprendam antes de sair por aí criando problemas. Se não
estiver de acordo com isso, pode partir. Não estou prendendo-os aqui. São
livres.”
“Dylan!”
Derek
parecia inconformado, mas Dylan estava exaltado. Como um morador da Terra da
Realeza, a área de Ylenia onde viviam os ricos, não estava acostumado com
pessoas prestativas, muito menos com alguém oferecendo ajuda sem pedir nada em
troca. Algo estava estranho naquela situação, mas talvez fosse apenas ele.
“Me
desculpe.”
“Entendo
seu lado. Sei que deve parecer estranho ver um velho surgir do nada e
oferecer-se para ensinar, para ajudar, mas quero que confiem em mim. Tenho meus
motivos para fazer isso. Talvez, se todos pensassem deste modo, as coisas
teriam sido diferentes no passado.”
Aquele
foi um comentário estranho, mas muito profundo, ao menos para Altair. Perdido
em seus pensamentos, o velho-pássaro se levantou da mesa, carregando consigo a
garra de chá e as xícaras.
“Vou
lavar essas coisas. Logo estarei de volta para apresentá-los aos seus quartos.”
“Quartos?”,
Derek não entendeu.
“Sim,
quartos. Vão passar essa noite aqui, senão todas as outras. Ou pretendem voltar
para suas casas e levar a batalha até lá? Isto é um Abrigo, garotos, estamos
protegidos no subterrâneo. Não tenho o conforto de suas camas, mas tenho um
escudo contra mísseis nucleares.”
E
saiu, rindo sozinho.
“O
que deu em você?”
Derek
parecia realmente sentido com o comportamento de Dylan.
“Eu
não sei, só achei estranho.”
“Ele
está tentando nos ajudar, e você o tratando dessa maneira! Talvez todas as
pessoas da Terra da Realeza sejam assim, mimadas!”
“Tudo
bem, eu já pedi desculpas.”
Derek
deu um tapa amigável na cabeça de Dylan.
“Para
aprender. E também para realizar meu sonho de bater num lutador profissional.”
Sorriram.
Eram amigos agora. Por quanto tempo?
“Vai
ficar aqui?”
“Minha
tia vai ficar preocupada, mas acho que esse lugar é melhor do que um hospital.
Posso mandar notícias, mais tarde. Duvido que ela vá acreditar, de qualquer
modo. Eu acabei de acordar de um coma e saltei do décimo primeiro andar de um
prédio.”
“As
coisas estão ficando insanas.”
“Nem
me fale.”
***
Altair
ajeitou as coisas para que Derek e Dylan descansassem. Os colchões eram
surrados, sem lençóis ou travesseiros, mas nada seria melhor do que a sensação
de proteção oferecida por aquele lugar. Cheirava a metal enferrujado, suor e
fezes, mas naquele momento, era o mais próximo de um lar.
Ainda
que Altair não fizesse um bom papel de pai.
Derek
adormeceu de imediato, roncava como um monstro. Dylan se revirou por algum
tempo, mas sua mente estava focada em outras coisas. Levantou-se, sentou-se
naquilo que chamavam de cozinha, bebeu uma água preservada num refrigerador
gasto. Tinha gosto de ferrugem, mas refrescava ainda assim. Guardou o
recipiente de volta e, por um simples momento, acreditou ver um vulto.
Dylan
era curioso. Assim sendo, levantou-se de seu assento e seguiu pelo corredor
mais escuro daquele Abrigo, apoiando-se nas paredes para que não se perdesse.
À
frente, havia alguém, não fora uma alucinação. Era uma criança, uma garota com
pouco mais de seis anos, saltitando sorridente e alegre. Tinha cabelo e olhos
escuros, chamava por Dylan.
“Quem
é você?”
Não
teve resposta. Chamava-o com uma das mãos, apontava uma porta lacrada com a
outra. Dylan se aproximou, a garota se afastou da porta. Seja o que for que
estivesse lá dentro, Altair não desejava que fugisse de lá, pois cerrara mais
de dez cadeados largos e resistentes.
“O
que tem aqui?”
Dylan
era curioso. Naquele momento, percebeu que aquilo era uma grande desvantagem.
Espreitou
por uma pequena lacuna no metal, uma abertura para passagem de comida,
provavelmente. Estreitou os olhos, mas só via escuridão, nada além do completo
breu.
Então,
grunhidos.
Começaram
com tranquilidade, então aumentaram até que se tornassem berros, rugidos de uma
criatura colossal. A porta sacudiu pelo impacto, o estrondo no metal era
impressionante. Dylan escutou passos, soube de imediato que Altair estava a
caminho, não queria ser encontrado. Correu para um canto qualquer, tentou se
esconder, desejou mais do que tudo que pudesse ser uma sombra, que pudesse
desaparecer junto da penumbra.
Desapareceu.
Altair
surgiu correndo, colocou o rosto na lacuna da porta, como Dylan fizera pouco
antes.
“Fique
calma, fique calma. Sua comida já está aí! Sua água acabou? O que aconteceu?”
O
ser grunhiu algumas vezes, mas se acalmou. Muito diferente de Dylan, Altair
fora capaz de tranquilizar aquela criatura, fosse o que fosse.
“Você
tem que esperar mais um pouco, só mais um pouco, eu prometo! Estamos perto,
muito perto. Fique tranquila.”
Virou-se
para o canto onde Dylan estava, fitando-o, mas Dylan soube que ele não
conseguia vê-lo. Via outra coisa, porém: a garotinha.
“Você
estava incomodando outra vez, não é, Eva? É melhor se afastar dessa porta. Não
tem nada para se ver aqui dentro.”
A
garota risonha dançou, como se ignorasse Altair. O homem-pássaro suspirou,
murmurou alguma coisa para si mesmo e retornou ao seu quarto. Eva girou no ar,
e sumiu.
Só
então Dylan pôde respirar.
***
O
dia seguinte foi exaustivo.
Altair
os acordou cedo, Derek parecia destruído. Chamou-os como um pai chamaria um
filho para ir à escola, sem se importar com delicadezas ou mesuras. Preparou
uma refeição simplória, deu-lhes liberdade para que fizessem sua própria
comida. Os bons tratos se resumiram ao primeiro dia de estadia; agora, fazia
parecer o que realmente era: um estranho.
“Não
vou cuidar de vocês como se fossem crianças, se é que me entendem. Disse que
iria ensiná-los, e o farei, mas não esperem por carícias. Aqui terão proteção,
comida, conhecimento. Em contrapartida, terão de trabalhar, mostrar que
realmente é isso o que desejam. Vamos trabalhar o corpo, a mente e o espírito,
fazer com que estejam prontos para qualquer batalha. Entenderam?”
“Sim,
senhor!” Derek forçou uma continência, Altair riu. Dylan manteve-se quieto.
“Permissão para comer, senhor.”
“Comam
logo.” Virou-se para Dylan. “Você está bem?”
“Estou
sim”, mas mentia. Estava assustado, confuso pelos acontecimentos da noite
anterior. Por tudo aquilo, na verdade, mas aquele grunhido, aquela sala
trancada, aquela coisa aprisionada lá
dentro. O que seria aquilo? O que poderia ser tão mau a ponto de Altair
precisar trancafiar? “Dormi um pouco mal, mas vou me acostumar.”
“Espero
que sim, não trarei novos colchões para vocês. Esta não é a minha casa, muito
menos a de vocês. É apenas um Abrigo, uma proteção, uma medida necessária para
a batalha que nos engloba. Sem ela, estaremos nos arriscando. Aqui, entretanto,
temos de aprender a deixar o conforto de lado.”
Derek
engoliu um pedaço de pão duro, apressado.
“Não
seria mais fácil trazer o conforto para cá?”
“Experimente.
É difícil dividir o espaço com todos esses sem-teto, imagine dividir uma cama
com trinta e seis deles!”
“Pelo
menos nunca passaríamos frio.”
“Continue
enxergando o lado bom em todas as coisas, vai facilitar bastante.”
Enquanto
Derek e Altair conversavam sobre assuntos distintos, Dylan se deixava voar.
Lembrava-se da garota, Eva, da porta apontada por ela, daquilo que vivia após o metal. Teve medo, mas não do ser.
Teve
medo de Altair.
“Você
tem certeza que está bem, Dylan?”
Assustou-se
com as palavras do pássaro.
“Ah,
sim, claro.”
“É
uma pena que tenha dormido tão mal. Vai precisar se esforçar um pouco.”
“Estou
acostumado.”
“É
mesmo?” Havia um sorriso malicioso em meio àquela pergunta. “Ora, isso me tranquiliza.”
Talvez
não estivesse.
Após
a refeição, Altair os guiou para o mais fundo dos Abrigos, onde era impossível
para um homem viver. O ar era pesado e fedorento, o calor era infernal, ninguém
se aproximava daquela área por motivo algum. Era o lugar perfeito.
“Vou
ensiná-lo sobre Seiren hoje”, contou Altair. “A manifestação de energia
utilizada pelos Vongeist, assim como por outras pessoas, para realizar atos
sobre-humanos. Exemplos são saltar onze andares de um prédio, ou derrotar
Guardiões sem uma Gier, como eu fiz.”
“Espere
aí, você estava me observando desde o hospital?”
“Não
é algo importante para nossa lição, Dylan. Prosseguindo, com a Seiren você pode
criar, modificar ou destruir qualquer coisa. É poderosa, mas muito perigosa. Há
histórias de homens que queriam prejudicar apenas um adversário, mas acabaram
por modificar todo o desenvolvimento da humanidade. Portanto, não tentem ser
Deus. Vocês não o são.”
Derek
pigarreou.
“Que
tal começar pelo que podemos fazer, então?”
“Ótimo.
Vejo que estão empolgados. Vamos pular um pouco da teoria, partir para uma
prática mais agitada. Venha cá, Derek. Traga sua Gier consigo.”
Derek
caminhou até perto de Altair, levando nas mãos a espada oferecida por seu
Reiseziel.
“Pronto.”
“Vou
te ensinar a usar a Seiren. Tudo se resume a três passos. Sem detalhes, sem
teoria, você precisa apenas se concentrar nessas três palavras: vontade,
pensamento, realização.”
“Parece
fácil.”
“Claro.
Todo mundo pode fazer isso. Quero que tente me queimar.”
“Como
é?”
“Isso
mesmo que ouviu, quero que tente me queimar. Faça fogo, Derek. Faça fogo e o
arremesse em minha direção.”
Derek
hesitou. Não era como alguém pedir um isqueiro emprestado ou ajuda para
carregar as compras. Altair estava pedindo para que ele o queimasse, jogasse um
fogo inexistente em seu corpo. Decidiu tentar.
“Vontade,
pensamento e realização, não é?”
Altair
fez que sim.
“Vamos
lá. Vai, fogo!”
Nada.
“Acho
que não deu certo.”
Fechou
os olhos, pensou naquilo que queria fazer.
“Fogo,
vá!”
Nada.
Suspirou:
“Tá
legal, eu não sei fazer isso. Vamos devagar, como você sugeriu e...”
“Por
que ir devagar se podemos ir direto para o que é mais legal?”
Zombando
daquela maneira, Altair estalou os dedos, e o fogo se criou. Do nada, cobriu do
chão ao cabelo de Derek num piscar de olhos, crepitando em frenesi. O garoto
gritava, urrava em pavor, corria de um lado para o outro. Dylan se precipitou,
saltou sobre ele, tentou apagar as chamas. Elas não queimavam.
Altair
riu. O fogo desapareceu.
“Viram?
É assim que se faz fogo.”
Derek
se pôs em pé.
“Você
é louco, cara? Eu poderia ter morrido!”
“Não
poderia. Esse fogo não seria capaz de te queimar, Derek. Nem mesmo Dylan e sua
intervenção inteligentemente veloz poderia ser ferido pelas chamas. Vocês
poderiam estar mortos, mas esse fogo era meu, e eu não quis que ele os
machucasse. Assim é a Seiren. Quando você a entende, pode fazer coisas
incríveis. Caso contrário, pode ficar gritando até que o fogo salte de suas
mãos.”
Derek
ruborizou, sentiu-se tolo, mas não era o único.
“Vão
me deixar explicar as coisas sem pressa?”
Fizeram
que sim com as cabeças, visivelmente abalados pela imprudência.
“Assim
as coisas serão mais fáceis. Vamos partir do princípio, sem pressa, sem prática
antes da teoria. Podem me dizer o que é a Seiren, garotos?”
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