domingo, 2 de setembro de 2012

Light Novel - Desejos de Juno - Capítulo 4

Dando continuidade à Light Novel 'Desejos de Juno', a terceira que trago ao blog, trago hoje o quarto capítulo da saga de Dylan, o penúltimo desse volume. Espero que gostem da leitura, e não deixem de comentar!
Até a próxima!


Grunhido no Escuro

Allana sentiu a presença de Juno desaparecer.
“Ela não está mais aqui. Perdemos esta noite, Liam.”
“Tudo bem, irmãzinha, não foram horas perdidas. Você enfrentou seu primeiro Guardião, conseguiu derrotá-lo, não teve medo. Foi um momento proveitoso para nós dois.”
“Não sente que estamos nos unindo cada vez mais?”
“Sim, irmãzinha.”
“Quero que nos tornemos apenas um, Liam. Quando isso acontecer, vou sentir que estou completa.”
Liam riu, simpático.
Então parou.
“Tem alguém nos observando.”
Allana preparou a lança. As espiãs saltaram à sua frente, eram idênticas, como se dois espelhos surgissem na rua, interceptando a passagem da Vongeist. Uma tinha cabelo azulado, a outra, um ruivo rosado e atraente.
“Quem são vocês?”
“Não se altere, garotinha. Somos amigas, em termos. Meu nome é Luna.”
“Eu sou Coral. Se nos ajudar, poderemos lhe ajudar também. Só precisamos que nos escute.”
Liam alertou Allana para que ela não baixasse sua arma, e assim ela fez.
“Como posso confiar em vocês?”
“Não confie. Pouco nos importa. Estamos aqui para trazer uma mensagem, e um convite.”
“Mensagem?”
“Nós sabemos sobre sua história, garota. Sabemos sobre seus pais.”
Allana se surpreendeu, baixou a guarda. Liam falou algo dentro de sua mente, mas ela não conseguiu escutar.
“Como sabem?”
Foi Luna quem respondeu.
“Temos contatos nas raízes de Elizei, e a milícia nos fornece todas as informações necessárias. Sabemos tudo o que aconteceu naquele dia. Não estamos aqui para culpá-la por algo de anos atrás.”
Coral continuou, a partir da pausa da irmã.
“A vida é a pior das prisões, Allana, logo vai descobrir que o castigo carregado pelos anos é tão trágico quanto um quarto escuro e abafado. Não é preciso um chicote para ferir.”
“Vocês não sabem de nada. Essa é a mensagem que me trouxeram?”
“Exato.”
“E quanto ao convite?”
“Uma visita. Apenas um reencontro. Deveria sentir-se honrada, Allana. Alguém muito importante pediu por um momento com sua pessoa. Você certamente tem algo de especial.”
“De quem estão falando?”
Luna sorriu. Seus olhos brilhosos permitiam que enxergasse os sentimentos de uma pessoa, e este era um hábito que jamais perderia. Sentia prazer ao notar a confusão, o turbilhão de pensamentos e emoções que se desvirtuavam na mente de Allana, tão confusa quanto uma criança numa brincadeira de adultos. Enquanto admirava seu passatempo favorito, Coral disse o nome que nenhuma das gêmeas gostava de dizer.
“Razvan.”
Allana sentiu o rosto avermelhar, não por timidez. A lança em suas mãos oscilou, pareceu mais pesada graças àquele nome que tanto desprezava. Recordava-se pouco daquela pessoa, e mesmo este pouco era o suficiente para forçá-la a se lembrar de momentos trágicos e dolorosos. Razvan não era um bom homem, nunca seria. Fizera mal aos seus pais, à sua família. Era o motivo de brigas e discussões, de lágrimas e sofrimento. Era o grande culpado por aquele dia, por aquele ato grotesco. O que poderia desejar com Allana?
“Qual a sua resposta, Allana?”, perguntou Luna.
“Eu tenho o direito de responder?”
“Não.”
“Imaginei que seria assim.”
As irmãs esticaram os braços, Allana entrelaçou os dedos com elas.
“Vai sentir-se enjoada por algum tempo. A magia geralmente traz efeitos do tipo em quem não está acostumado.”
“Tudo bem.” Allana sorriu. “Eu estou.”

***

A paisagem mudou por completo.
Seria um sonho?
Estavam no subterrâneo, um lugar desconhecido para Dylan. A fama o deixava sempre nas áreas mais importantes de Ylenia, pouco conhecia sobre o Subúrbio, sobre os Abrigos. Sabia das histórias; algumas pessoas chegavam a comentar sobre fantasmas e assombrações. Não acreditava naquelas coisas, mas achou que, em toda sua vida, nunca conheceria um Abrigo pessoalmente.
Achava, também, que jamais teria de se afastar de Rachel. Seus erros trouxeram-lhe uma dor imensa.
“Acredito que ambos saibam sobre os Abrigos do Subúrbio, estou certo?”
Altair estava lá, não era um sonho. Toda aquela confusão tinha realmente acontecido. Os monstros, o homem-escorpião, a mulher de sorriso dourado. Mesmo o próprio Altair, coberto de penas sombrias, era real. Tudo era real, e isso dificultava as coisas.
“Conheço algumas histórias”, admitiu Dylan. “Nunca andei por esses lados. Sequer atravessei o Arco de Gael em minha vida.”
“Já morei no Subúrbio, muito tempo atrás”, contou Derek. “Não é um bom lugar, sabem? As pessoas matam e roubam para sobreviver. Vocês, acostumados à mordomia da Terra da Realeza, jamais seriam capazes de residir deste lado.”
“Ylenia é uma das piores cidades-nação, quando se fala em desigualdade social”, começou Altair. Falava como um professor. “Até mesmo Abigail consegue distribuir seu povo de uma maneira mais digna. Aqui, os ricos vivem de um lado, os desfavorecidos são excluídos. As coisas não deveriam ser assim.”
Altair guiou-os por alguns túneis, viram pessoas espalhadas por lá. Aquele Abrigo era o que chamavam de lar, o chão era suas camas, as paredes largas e protegidas contra guerras eram as mesmas que guardavam famílias do frio e dos perigos das ruas. Nem mesmo Elizei ousava se aventurar naquele lado de Ylenia, mas talvez não por medo. Não era necessário. Ali, a justiça era cega, surda e muda. O que era feito era cobrado; a lei dos mais fortes imperava.
Era uma vida difícil.
Chegaram a uma porta peculiar, Altair a abriu com um código veloz. Passando por ela, o homem-pássaro observou, verificando se não tinham sido seguidos. Constatando a segurança, Altair cerrou a porta atrás de si, acendeu algumas lamparinas de cores distintas, fez do ambiente claustrofóbico um cômodo quente e maltrapilho.
“Sei que não é o melhor dos lares, mas é o que consegui. É seguro, e isto é muito mais importante do que o conforto. Puxem aquelas cadeiras, sentem-se em algum lugar. Não tenho uma televisão de plasma para alegrar nossa noite, mas posso preparar alguma coisa para comer.”
E desapareceu por outra porta, deixando Derek e Dylan sozinhos.
Sentaram-se próximos, apoiados numa mesa improvisada por uma madeira sobre barris.
“O que acha desse cara?”, Dylan cochichou, cobrindo a boca com as mãos. “Acha que podemos confiar nele?”
“E temos opção? Até ontem eu pensava que Armor Boxing era a coisa mais perigosa do mundo. Hoje fiz um acordo com um ser que não posso ver, ganhei uma espada encantada e tive de fugir de um gato com três rabos e um polvo-motosserra. Acho que confiar num homem com penas não é algo ruim, no fim.”
Dylan riu.
“Como é a sensação?”
“Que sensação?”
“A sensação de ser um campeão. De ser importante, famoso, de ganhar dinheiro enfrentando outros caras da sua idade, derrubá-los com socos precisos. Como você se sente quando pisa no ringue, quando o gongo soa, quando começa a luta? Sempre imaginei essas coisas.”
“Não é das melhores. É gosto trocar socos quando se está de corpo quente. Depois de um tempo, quando as feridas começam a lembrá-lo que você é humano, dá vontade desistir dessa profissão.”
“Duvido! Se eu pudesse socar todos aqueles mimados e receber por isso, seria um milionário hoje em dia! Não sabe o quanto eu brinquei de boxe na minha infância! Me aproveitava do meu irmão caçula e distribuía socos adoidado. Uma loucura.”
“Imagino que sim.”
“E você? Já pensava em lutar desde pequeno?”
Aquela pergunta pegou Dylan desprevenido. Nunca sonhou em ser lutador. Pensar em sua infância lembrava-o de que, não fosse por Oriol, o Uberein que oferecera um acordo durante aquela briga, Dylan seria uma criança reclusa até os dias atuais. Era estudioso, inteligente, mas não sabia brigar. Não tinha forças. Então, de um dia para o outro, tudo mudou. Aquela determinação, aquela vontade, aquele dom, alterando sua vida como nada antes o fez. Por vezes, pegava-se pensando se aquilo era verdade, se era ele mesmo, ou se estava sendo influenciado por desejos externos.
“Não. Na verdade, não cheguei a pensar em nada quando criança.”
“Quem diria, o campeão de Ylenia sequer sonhava em ser um lutador! As coisas costumam ser diferentes daquilo que a gente planeja. É normal e...”
Aparentemente, o assunto alcançara algo delicado para Derek, era fácil notar. O garoto baixou os olhos, pensou sozinho, sem dizer nada. Era impossível dizer o que se passava em sua mente.
“Bom, vamos deixar isso para lá. Voltando ao homem-pássaro, não sei quais são suas intenções.”
“Não sei nem mesmo as minhas, Derek.”
Riram juntos.
“Dylan, posso te fazer uma pergunta?”
“Mas é claro.”
“Por que você aceitou o Reiseziel?”
“E nós tínhamos escolha?”
“Talvez não, mas não acredito que seja simples assim. Seu Uberein falou sobre Juno, não falou? Ele te explicou sobre as recompensas, o tal desejo que pode realizar tudo, certo?”
“Sim, Oriol me contou sobre tudo isso.”
“Então você certamente tem um objetivo! Você é famoso, tem dinheiro, tem uma carreira de sucesso! O que mais poderia desejar?”
Rachel.
“Eu perdi tudo, Derek. Naquela noite, na qual eu deveria alcançar o maior objetivo de minha vida, eu perdi todos aqueles que amava. Estou aqui por eles. Se essa história de Juno for real, como cada vez mais acredito que seja, vou pedir para que me tragam de volta aquilo que perdi. Caso contrário, não serei capaz de viver em paz.”
“Entendo. É por isso que enfrentou o Guardião daquela maneira, não é?”
“Não sei. Naquela hora, não estava pensando em muita coisa. Mas, agora ou depois, teremos de enfrentar essas coisas. E danem-se os Guardiões ou todo o resto. Eu enfrentaria o inferno para conseguir ter aquilo que desejo de volta.”
Derek sorriu.
“Fico feliz por sua determinação, Dylan, e mais ainda por encontrar em você um motivo justo. Fico feliz, mas ao mesmo tempo fico triste.”
“Por que?”
“Eu também tenho um motivo, algo muito importante para mim. Não pretendo desistir. Não pretendo deixar que ninguém me vença. E isso inclui você, Dylan.”
Aquelas palavras foram disparadas como flechas, ferindo o corpo de Dylan como nenhum oponente foi capaz de ferir. Pensar daquela maneira era a maior tortura daquele jogo. Todos eram concorrentes. Todos aqueles envolvidos na caçada de Juno tinham o mesmo objetivo, um objetivo que apenas uma pessoa poderia alcançar. Haveria amigos, grupos e organizações, mas no fim, apenas uma pessoa seria vitoriosa. Parecia um castigo grande demais.
“Acho que podemos pensar nisso mais tarde”, disse Dylan, sorrindo de maneira desajeitada. “Vai me contar qual é o seu desejo?”
Passos.
“Outra hora.”
Altair surgiu novamente no cômodo, trazendo consigo uma garrafa de chá e torradas. Não era a melhor das refeições, mas algo muito mais incrível do que Derek e Dylan pensavam. Sentados à mesa, abriram espaço para que o pássaro se sentasse entre eles, e então se serviram. O sabor era agradável, mas o aroma era mais delicioso do que o próprio chá seria capaz de ser.
“Sou bom com ervas”, contou Altair, com um sorriso estranho em seu rosto de penas. “Sei preparar chás e medicamentos com quase todos os tipos de plantas existentes aqui em Ylenia, e além.”
Derek tomou um gole de chá, então perguntou:
“As pessoas do Abrigo não se assustam com sua aparência? Digo, não é por mal, mas ninguém está acostumado a ver pássaros andando por aí, entende?”
Altair riu alto.
“Vocês podem me enxergar assim, mas nem todas as pessoas podem. Os moradores do Abrigo, assim como qualquer pessoa das ruas, me veem como um velho de barba e cabelo comprido. O Seiren nos camufla, engana as pessoas. Apenas outros usuários de Seiren conseguem ver a verdade por trás de nossas falsas imagens, a menos que nós mesmos desejemos o contrário.”
“Essas coisas são muito complexas.”
“É só a ponta do iceberg! Tem muito mais para vocês aprenderem sobre o mundo e seus perigos. Mas, antes disso, preciso falar com vocês sobre outro assunto.”
“E qual é?”
Altair bebericou o chá.
“O que sabem sobre Juno?”
Derek refletiu, mas Dylan respondeu mais rápido.
“É uma espécie de entidade capaz de realizar desejos, caso seja aprisionado. Ao menos, é o que me parece.”
“Em termos. Juno é muito mais do que isso, Dylan, pode ter certeza. Mas é o suficiente, neste momento. Seus Uberein vão lhes auxiliar na busca por Juno, ao mesmo tempo em que vão ajudá-los nas batalhas contra aqueles que os desafiarem. Acima de tudo, precisam saber como se defender, como contra-atacar. Mais importante ainda: têm de saber como farejar Juno.”
“Farejar?”
“Sentir a sua presença. Esta noite, Juno estava lá, em algum lugar de Ylenia. Muitos Vongeist, como vocês mesmos, começaram a caçada sem saber o que fazer. Os Guardiões estão sempre famintos por novatos, precisam ter cuidado, saber como enfrentá-los. Não vou negar que alguns dos inexperientes morreram durante a primeira de suas caçadas, mas este é o ciclo da vida. Além do mais, entendam-nos como concorrentes fora da disputa.”
Era um método um pouco frio para se pensar, mas Dylan e Derek não comentaram nada.
“Vocês fugiram, fortaleceram aquelas criaturas com seus medos. Alguns dos novatos conseguiram enfrentar os Guardiões, por não terem medo. Não são mais ou menos fortes do que vocês. Apenas enfrentaram aqueles monstros sem temer, aprendendo a utilizar a Seiren que carregam.”
“E o que podemos fazer com essa Seiren? É como magia, não é? Podemos voar, explodir as coisas?”
“Vá com calma, Derek. A Seiren é poderosa, mas muito perigosa. Com ela, vocês podem fazer tudo. A magia é ilimitada, de acordo com a vontade daquele que a utiliza. Cada um de vocês recebeu uma Gier, um presente pós-Reiseziel, e ela os acompanhará até o fim dessa batalha. A Seiren, entretanto, é diferente. É um dom, uma habilidade. Aquilo que vocês desejarem poderá ser feito, desde que suas mentes estejam aptas a controlar este poder.”
Dylan parou para pensar. Durante todos aqueles anos de Armor Boxing, enfrentara oponentes com uma habilidade sobrenatural. Quando era alvejado, Dylan enxergava tudo em câmera lenta, sabia prever os movimentos, criava infindáveis estratégias para se esquivar, para evitá-los e contra-atacar. Aquilo também era Seiren?
“Uau, isso parece incrível! Eu poderia incendiar essa minha espada com um fogo dourado e explodir aquele polvo-motosserra em milhões de pedaços! Onde está o seu Deus agora?!”
Nem mesmo Altair conseguiu segurar o riso.
“Sua energia me deixa admirado, Derek, mas você precisa ter cuidado. Caso usada de maneira incorreta, a Seiren não hesitará em atacar o próprio usuário. Precisamos pensar bastante antes de recorrer a este tipo de poder. Em níveis extremos, a Seiren pode anular uma pessoa ou objeto, apagá-lo da existência. É muito diferente de destruir algo; é como se nunca houvesse existido.”
“Por que está nos contando isso?”, Dylan perguntou.
Não que não estivesse interessado, pelo contrário, era fabuloso saber de todas aquelas coisas. Estranho era ver um homem que acabaram de conhecer contar a eles todos aqueles segredos que a maior parte do mundo desconhecia.
“Porque vocês precisam saber com o quê estão lidando, Dylan. Caso contrário, os preços serão muito altos, e não é o que desejo para vocês.”
“O que tem de especial em nós? O que fez você se voluntariar para nos ajudar?”
Altair terminou seu chá, engoliu uma última torrada, apressado. Então encontrou os olhos de Dylan.
“Você é inteligente. Realmente, tenho interesse em vocês, assim como em todos os demais Vongeist. Algo em vocês me parece familiar, vamos dizer assim. Sinto-me na responsabilidade de oferecer auxílio. E só.”
“Você não respondeu. O que tem de especial em nós?”
“E por que haveria algo de especial em vocês? São como crianças neste mundo, Dylan. Quero apenas que aprendam antes de sair por aí criando problemas. Se não estiver de acordo com isso, pode partir. Não estou prendendo-os aqui. São livres.”
“Dylan!”
Derek parecia inconformado, mas Dylan estava exaltado. Como um morador da Terra da Realeza, a área de Ylenia onde viviam os ricos, não estava acostumado com pessoas prestativas, muito menos com alguém oferecendo ajuda sem pedir nada em troca. Algo estava estranho naquela situação, mas talvez fosse apenas ele.
“Me desculpe.”
“Entendo seu lado. Sei que deve parecer estranho ver um velho surgir do nada e oferecer-se para ensinar, para ajudar, mas quero que confiem em mim. Tenho meus motivos para fazer isso. Talvez, se todos pensassem deste modo, as coisas teriam sido diferentes no passado.”
Aquele foi um comentário estranho, mas muito profundo, ao menos para Altair. Perdido em seus pensamentos, o velho-pássaro se levantou da mesa, carregando consigo a garra de chá e as xícaras.
“Vou lavar essas coisas. Logo estarei de volta para apresentá-los aos seus quartos.”
“Quartos?”, Derek não entendeu.
“Sim, quartos. Vão passar essa noite aqui, senão todas as outras. Ou pretendem voltar para suas casas e levar a batalha até lá? Isto é um Abrigo, garotos, estamos protegidos no subterrâneo. Não tenho o conforto de suas camas, mas tenho um escudo contra mísseis nucleares.”
E saiu, rindo sozinho.
“O que deu em você?”
Derek parecia realmente sentido com o comportamento de Dylan.
“Eu não sei, só achei estranho.”
“Ele está tentando nos ajudar, e você o tratando dessa maneira! Talvez todas as pessoas da Terra da Realeza sejam assim, mimadas!”
“Tudo bem, eu já pedi desculpas.”
Derek deu um tapa amigável na cabeça de Dylan.
“Para aprender. E também para realizar meu sonho de bater num lutador profissional.”
Sorriram. Eram amigos agora. Por quanto tempo?
“Vai ficar aqui?”
“Minha tia vai ficar preocupada, mas acho que esse lugar é melhor do que um hospital. Posso mandar notícias, mais tarde. Duvido que ela vá acreditar, de qualquer modo. Eu acabei de acordar de um coma e saltei do décimo primeiro andar de um prédio.”
“As coisas estão ficando insanas.”
“Nem me fale.”

***

Altair ajeitou as coisas para que Derek e Dylan descansassem. Os colchões eram surrados, sem lençóis ou travesseiros, mas nada seria melhor do que a sensação de proteção oferecida por aquele lugar. Cheirava a metal enferrujado, suor e fezes, mas naquele momento, era o mais próximo de um lar.
Ainda que Altair não fizesse um bom papel de pai.
Derek adormeceu de imediato, roncava como um monstro. Dylan se revirou por algum tempo, mas sua mente estava focada em outras coisas. Levantou-se, sentou-se naquilo que chamavam de cozinha, bebeu uma água preservada num refrigerador gasto. Tinha gosto de ferrugem, mas refrescava ainda assim. Guardou o recipiente de volta e, por um simples momento, acreditou ver um vulto.
Dylan era curioso. Assim sendo, levantou-se de seu assento e seguiu pelo corredor mais escuro daquele Abrigo, apoiando-se nas paredes para que não se perdesse.
À frente, havia alguém, não fora uma alucinação. Era uma criança, uma garota com pouco mais de seis anos, saltitando sorridente e alegre. Tinha cabelo e olhos escuros, chamava por Dylan.
“Quem é você?”
Não teve resposta. Chamava-o com uma das mãos, apontava uma porta lacrada com a outra. Dylan se aproximou, a garota se afastou da porta. Seja o que for que estivesse lá dentro, Altair não desejava que fugisse de lá, pois cerrara mais de dez cadeados largos e resistentes.
“O que tem aqui?”
Dylan era curioso. Naquele momento, percebeu que aquilo era uma grande desvantagem.
Espreitou por uma pequena lacuna no metal, uma abertura para passagem de comida, provavelmente. Estreitou os olhos, mas só via escuridão, nada além do completo breu.
Então, grunhidos.
Começaram com tranquilidade, então aumentaram até que se tornassem berros, rugidos de uma criatura colossal. A porta sacudiu pelo impacto, o estrondo no metal era impressionante. Dylan escutou passos, soube de imediato que Altair estava a caminho, não queria ser encontrado. Correu para um canto qualquer, tentou se esconder, desejou mais do que tudo que pudesse ser uma sombra, que pudesse desaparecer junto da penumbra.
Desapareceu.
Altair surgiu correndo, colocou o rosto na lacuna da porta, como Dylan fizera pouco antes.
“Fique calma, fique calma. Sua comida já está aí! Sua água acabou? O que aconteceu?”
O ser grunhiu algumas vezes, mas se acalmou. Muito diferente de Dylan, Altair fora capaz de tranquilizar aquela criatura, fosse o que fosse.
“Você tem que esperar mais um pouco, só mais um pouco, eu prometo! Estamos perto, muito perto. Fique tranquila.”
Virou-se para o canto onde Dylan estava, fitando-o, mas Dylan soube que ele não conseguia vê-lo. Via outra coisa, porém: a garotinha.
“Você estava incomodando outra vez, não é, Eva? É melhor se afastar dessa porta. Não tem nada para se ver aqui dentro.”
A garota risonha dançou, como se ignorasse Altair. O homem-pássaro suspirou, murmurou alguma coisa para si mesmo e retornou ao seu quarto. Eva girou no ar, e sumiu.
Só então Dylan pôde respirar.

***

O dia seguinte foi exaustivo.
Altair os acordou cedo, Derek parecia destruído. Chamou-os como um pai chamaria um filho para ir à escola, sem se importar com delicadezas ou mesuras. Preparou uma refeição simplória, deu-lhes liberdade para que fizessem sua própria comida. Os bons tratos se resumiram ao primeiro dia de estadia; agora, fazia parecer o que realmente era: um estranho.
“Não vou cuidar de vocês como se fossem crianças, se é que me entendem. Disse que iria ensiná-los, e o farei, mas não esperem por carícias. Aqui terão proteção, comida, conhecimento. Em contrapartida, terão de trabalhar, mostrar que realmente é isso o que desejam. Vamos trabalhar o corpo, a mente e o espírito, fazer com que estejam prontos para qualquer batalha. Entenderam?”
“Sim, senhor!” Derek forçou uma continência, Altair riu. Dylan manteve-se quieto. “Permissão para comer, senhor.”
“Comam logo.” Virou-se para Dylan. “Você está bem?”
“Estou sim”, mas mentia. Estava assustado, confuso pelos acontecimentos da noite anterior. Por tudo aquilo, na verdade, mas aquele grunhido, aquela sala trancada, aquela coisa aprisionada lá dentro. O que seria aquilo? O que poderia ser tão mau a ponto de Altair precisar trancafiar? “Dormi um pouco mal, mas vou me acostumar.”
“Espero que sim, não trarei novos colchões para vocês. Esta não é a minha casa, muito menos a de vocês. É apenas um Abrigo, uma proteção, uma medida necessária para a batalha que nos engloba. Sem ela, estaremos nos arriscando. Aqui, entretanto, temos de aprender a deixar o conforto de lado.”
Derek engoliu um pedaço de pão duro, apressado.
“Não seria mais fácil trazer o conforto para cá?”
“Experimente. É difícil dividir o espaço com todos esses sem-teto, imagine dividir uma cama com trinta e seis deles!”
“Pelo menos nunca passaríamos frio.”
“Continue enxergando o lado bom em todas as coisas, vai facilitar bastante.”
Enquanto Derek e Altair conversavam sobre assuntos distintos, Dylan se deixava voar. Lembrava-se da garota, Eva, da porta apontada por ela, daquilo que vivia após o metal. Teve medo, mas não do ser.
Teve medo de Altair.
“Você tem certeza que está bem, Dylan?”
Assustou-se com as palavras do pássaro.
“Ah, sim, claro.”
“É uma pena que tenha dormido tão mal. Vai precisar se esforçar um pouco.”
“Estou acostumado.”
“É mesmo?” Havia um sorriso malicioso em meio àquela pergunta. “Ora, isso me tranquiliza.”
Talvez não estivesse.
Após a refeição, Altair os guiou para o mais fundo dos Abrigos, onde era impossível para um homem viver. O ar era pesado e fedorento, o calor era infernal, ninguém se aproximava daquela área por motivo algum. Era o lugar perfeito.
“Vou ensiná-lo sobre Seiren hoje”, contou Altair. “A manifestação de energia utilizada pelos Vongeist, assim como por outras pessoas, para realizar atos sobre-humanos. Exemplos são saltar onze andares de um prédio, ou derrotar Guardiões sem uma Gier, como eu fiz.”
“Espere aí, você estava me observando desde o hospital?”
“Não é algo importante para nossa lição, Dylan. Prosseguindo, com a Seiren você pode criar, modificar ou destruir qualquer coisa. É poderosa, mas muito perigosa. Há histórias de homens que queriam prejudicar apenas um adversário, mas acabaram por modificar todo o desenvolvimento da humanidade. Portanto, não tentem ser Deus. Vocês não o são.”
Derek pigarreou.
“Que tal começar pelo que podemos fazer, então?”
“Ótimo. Vejo que estão empolgados. Vamos pular um pouco da teoria, partir para uma prática mais agitada. Venha cá, Derek. Traga sua Gier consigo.”
Derek caminhou até perto de Altair, levando nas mãos a espada oferecida por seu Reiseziel.
“Pronto.”
“Vou te ensinar a usar a Seiren. Tudo se resume a três passos. Sem detalhes, sem teoria, você precisa apenas se concentrar nessas três palavras: vontade, pensamento, realização.”
“Parece fácil.”
“Claro. Todo mundo pode fazer isso. Quero que tente me queimar.”
“Como é?”
“Isso mesmo que ouviu, quero que tente me queimar. Faça fogo, Derek. Faça fogo e o arremesse em minha direção.”
Derek hesitou. Não era como alguém pedir um isqueiro emprestado ou ajuda para carregar as compras. Altair estava pedindo para que ele o queimasse, jogasse um fogo inexistente em seu corpo. Decidiu tentar.
“Vontade, pensamento e realização, não é?”
Altair fez que sim.
“Vamos lá. Vai, fogo!”
Nada.
“Acho que não deu certo.”
Fechou os olhos, pensou naquilo que queria fazer.
“Fogo, vá!”
Nada.
Suspirou:
“Tá legal, eu não sei fazer isso. Vamos devagar, como você sugeriu e...”
“Por que ir devagar se podemos ir direto para o que é mais legal?”
Zombando daquela maneira, Altair estalou os dedos, e o fogo se criou. Do nada, cobriu do chão ao cabelo de Derek num piscar de olhos, crepitando em frenesi. O garoto gritava, urrava em pavor, corria de um lado para o outro. Dylan se precipitou, saltou sobre ele, tentou apagar as chamas. Elas não queimavam.
Altair riu. O fogo desapareceu.
“Viram? É assim que se faz fogo.”
Derek se pôs em pé.
“Você é louco, cara? Eu poderia ter morrido!”
“Não poderia. Esse fogo não seria capaz de te queimar, Derek. Nem mesmo Dylan e sua intervenção inteligentemente veloz poderia ser ferido pelas chamas. Vocês poderiam estar mortos, mas esse fogo era meu, e eu não quis que ele os machucasse. Assim é a Seiren. Quando você a entende, pode fazer coisas incríveis. Caso contrário, pode ficar gritando até que o fogo salte de suas mãos.”
Derek ruborizou, sentiu-se tolo, mas não era o único.
“Vão me deixar explicar as coisas sem pressa?”
Fizeram que sim com as cabeças, visivelmente abalados pela imprudência.
“Assim as coisas serão mais fáceis. Vamos partir do princípio, sem pressa, sem prática antes da teoria. Podem me dizer o que é a Seiren, garotos?”

Nenhum comentário:

Postar um comentário