Tequila
Chuva.
Serena
e pavorosa, silenciosa, ainda que estridente nos telhados onde os felinos
ronronavam, fugindo de suas casa, de seus confortos, apenas para desbravar a
escuridão da noite, encharcados pelo toque da natureza.
Chuva,
e mais chuva.
Quando
todos se escondiam, lá estava ele, postado nas gotas de uma noite sombria. O
frio frívolo poderia ferir, mas ferida alguma se comparava ao que já residia
naquele coração, uma estaca fincada num travesseiro inutilizado, uma cicatriz
que rasgava o mais singelo dos músculos pulsantes, dispersa por trilhas de
veias, carregada no sangue e no vento. Quando todos deleitavam-se no conforto
de suas casas, lá estava ele, sentado numa escadaria qualquer, os braços
envolvendo as pernas, cabisbaixo, de olhos fixos no chão, pois o chão agora era
sua realidade.
Um
dia, muito antes, ele acreditou que não. Acreditou que havia mais do que o
chão, mais do que o nada. Talvez pudesse voar, perder-se nas nuvens, e talvez o
tenha feito quando ao lado dela, quando ela lhe permitiu ser feliz, lhe ensinou
o caminho para aquele sentimento explosivo e, agora, repugnante. Difícil foi
entender o quão veloz é um trovão, e o amor, certas vezes, é tão forte quanto
um. Estrondoso, ríspido e instantâneo, como um clarão na mais escura tempestade,
um lampejo que irradia de maneira admirável, para então se dissipar no breu,
sumir e nunca mais voltar.
Dizem
que raios não caem duas vezes no mesmo lugar e, naquele momento, ele achou
melhor que fosse assim.
Chuva,
e cada vez mais chuva.
Uma
chuva que escorria por seu rosto, que se misturava às lágrimas. Eram uma coisa
só, ou coisa alguma. Coisa nenhuma, talvez, ou todas as coisas. Indiferente
quanto a isso, ele não era nada, não era ninguém. Era ele, mas isso não
importava. Na chuva, ele bem poderia ser um obstáculo, um outro degrau daquela
escadaria na qual se sentava, e isso seria o suficiente para o mundo, ou mais
do que o necessário. Ele poderia deixar de existir, e o mundo se esqueceria
dele, por mais que em dia algum ele tivesse sido lembrado.
A
cabeça doía, girava. Os olhos abertos se desfocavam, turvos, e a ânsia queimava
a garganta por dentro. Que sensação era aquela? Que vontade era aquela que ele
desconhecia?
Aquela
vontade compulsiva, impulsiva e destrutiva de não estar ali, de não estar em
lugar algum.
Aquela
vontade imensa de morrer.
Os
pulsos lhe pareceram tentadores, convidando-o a ver o sangue jorrar, prometendo
um espetáculo fabuloso, uma glória sem tamanho e, ainda melhor, uma solução
para todos os problemas. A garganta fez o mesmo, implorou por uma corda, por um
fim.
E
o gosto fervoroso lhe umedecia os lábios.
Foi
quando ela surgiu. Na chuva, mais quente do que qualquer cômodo de qualquer
morada, mais bela do que a lua que se escondia no algodão doce do céu, mais qualquer
coisa do que tudo. Ela desfilava ao invés de andar, pé à frente de
pé, num rebolar agradável aos olhos e às mentes, e ele achou que ela
apaixonaria mesmo às mulheres, que faria todas elas se ajoelharem e implorarem
por sua beleza, rezassem a Deus para obter aqueles olhos cobreados, aqueles
fios sedosos e brilhantes, aquelas curvas alucinógenas e atrativas.
Ele
se apaixonou, coisa que jurou não mais fazer, num único olhar, num único ato de
respirar. Ele se apaixonou, como acreditou ser incapaz de repetir, como o mais
infinito dos finitos, e todo aquele amor estava atrás dos lábios avermelhados
daquela dama de vestido bronzeado, com adornos em prata e ouro nos braços e
tornozelos, um salto alto demais para suas longas pernas e um colar que
brilhava muito, mas não se equiparava ao seu sorriso.
Chuva.
A
chuva o encharcava, mas não molhava aquela mulher. Nada a tocaria.
Somente
ele.
Ele
a desejou, como julgou impossível desejar alguém que não se conhece, que
acabara de encontrar no acaso de uma noite chuvosa. Ela desfilou, sem medo, sem
receio de se exibir, aproximou-se dele com baques agradáveis dos saltos que
trajava. Ele sentiu a saliva nos lábios, a fome e a sede que comida e bebida
não saciariam, e ela notou tal sensação, notou o rosto ruborizar, mesmo no
escuro da noite, mesmo no toque da chuva, e sorriu, por excitação, por
provocação, ou talvez somente pela imaginação abstrata daquele rapaz
desesperado.
Passos
mais tarde, ela estava ali, à sua frente, e o que se seguiu fora um beijo.
Seu
beijo tinha gosto de álcool. Era forte, de início salgado e árido, bem quente,
então gélido e aquoso, com sabor picante e admirável, e era quase o sulco do
paraíso, trespassando os lábios dele como um jorro de perfeição, escorrendo por
seu rosto, misturando-se à água que já residia em sua camisa aberta, gelando
seu torso e sua alma; por último, tornou-se amargo num desfecho indescritível,
e levou consigo todos os problemas, todas as indagações, todos os sim ou não,
deixando apenas o que lhe importava e, como nada lhe importava, nada deixou.
Levou
até mesmo seu nome, suas vontades e seus martírios.
Ele
era um saco vazio, um recipiente oco e onipresente, com espaço para o tudo
que seria ocupado por nada.
Chuva.
A
chuva continuava, mas o beijo parou. Chegou ao fim, e por um momento tudo
voltou a si, e ele se recordou das dores e dos temores, e então chorou outra
vez. A mulher o acariciou, afagou seus cabelos com as mãos delicadas, deixou
que ele afundasse o rosto entre os seios, onde encontrou um perfume do Éden,
que teria de ser a primeira maravilha do mundo, ou todas elas. A fragrância era
forte demais, causou náuseas, mas ele a desejava mais e mais, e então ergueu o
rosto, fechou os olhos e esperou, sem pressa, ainda que ansioso.
Outro
beijo ocorreu.
Salgado,
então vibrante e infernal, então amargo e perfeito, então o fim, e o beijo se
foi, e ele se lembrou de tudo outra vez. Beijou-a mais e mais, sem parar, sem
ter medo, sentindo-se o melhor homem do mundo, ou o único, ou o pior, mas
sentindo-se.
E
os beijos eram sempre assim, salgado, quentes, amargos.
Como
sal, tequila e limão.
Ele
abriu os olhos em seu apartamento, mas ainda via a rua, a chuva, o que sempre
via quando nada desejava ver. Jogou outra dose de tequila no copo, perdera a
conta de quantas já se foram, de quantos beijos suculentos saciaram sua perda
naquela noite. As roupas, encharcadas pela água sanitária que se revoltava a
cada nova onda de vómito, fediam o suor de uma semana sem banho, de uma semana
sem vida. O rosto, cuja barba não era aparada há dias, guardava olheiras de depressões,
lacunas de um vazio indizível, tristezas que o melhor ou o pior homem do mundo
não seriam capazes de entender.
Desde
sua perda, aquela era sua rotina, e talvez fosse agradável. Jogado no
apartamento, sozinho no silêncio e no escuro, para ele tudo estava bem. Ali,
ainda que atirado às traças, como um mendigo sem esperança alguma e de futuro
duvidoso, ele não mais vivia, mas sobrevivia, e estava feliz com tal situação.
Não feliz, talvez, mas que outra opção tinha? Problemas e dúvidas retardavam
seus pensamentos, queimavam neurônios como o álcool queimava sua língua e seu
fígado, como a perda queimara seus pensamentos.
Vomitou,
e ali estava o vazio de sempre, o vazio da solidão, sua única companheira nos
momentos difíceis.
Precisava
de uma solução. Precisava esquecer os problemas, resolvê-los.
Precisava de um beijo
daquela dama de vestido bronze, por mais que seus beijos ali, na chuva da
alucinação, fossem maravilhas e, ao longe, na realidade, apenas a mistura
inconsequente de sal, tequila e limão.
Ficou ótimo cara, continua assim, rsrs'.
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