quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Conto - Entre Dentes e Correntes

Vamos a mais um conto de temática sombria e sobrenatural?


Entre Dentes e Correntes

A vela queimava sem pressa, deixando no ar seu perfume, tão agradável quanto nauseante. Entre dois homens, um apreciava tal sensação; o segundo a repugnava, mas nada diria até o fim de seus momentos.
—Devo acreditar que algo está errado com você? —perguntou o primeiro.
O segundo fez que não.
—Está tudo certo.
—Obviamente. Por que não me conta sobre aqueles dias?
Ele coçou a barba, grossa pela falta do gilete e da lavagem.
—Não sei se quero.
Tremia a todo instante.
—É o que você quer, posso sentir.
—Não sei se devo.
—E talvez não deva. Estarei lhe ouvindo, se assim desejar. —Cruzou as pernas, numa elegante demonstração de paciência e caridade. Uniu os dedos, gesto de calmaria que sempre utilizava em seu trabalho. —Procure em sua mente por algo que deseje me contar.
—Não há nada.
—Nada que queira me contar?
—Nada mesmo. Nada sei.
—Sabe seu nome?
—Não sei se esse nome me pertence. Talvez eu o tenha inventado.
O primeiro acendeu um cigarro.
—Se incomoda se eu fumar?
Fez que não.
—Não faz diferença.
—Obrigado. Continuemos.
—Ainda nem começamos.
—Mas começaremos quando você desejar.
Pigarreou.
—Pois bem.
—Sem detalhes, ou com todos eles. Como você preferir.
Sentou-se corretamente, bateu os pés na cadeira. Respirou fundo, o cheiro da vela lhe trazendo de volta a sopa de letrinhas do jardim de infância numa ânsia irreparável. Engoliu toda sua vontade de vomitar, digeriu-a junto de seu temor, e então falou:
—Eu tinha uma caneta e um bloco de anotações.

E era só isso o quê tinha em mãos quando bateu à porta do Centro Psiquiátrico Machado de Lucas.
Todos conheciam as lendas urbanas daquele lugar, tantas eram as histórias que tão rápido se espalhavam pelas cidades de todo o Brasil. Muita gente viveria e morreria sem ouvir falar de tal estabelecimento, mas aquelas que ouviam jamais se deixavam esquecer. Duzentos e cinquentas anos de existência, cada ano carregando novos medos, novos pacientes, novos contos aterradores.
Histórias como essa dão dinheiro, e justamente por isso o jornal de Luan escolheu tal local para uma matéria investigativa.
A ideia era simples. Luan teria de caçar histórias de fantasmas e assombrações, as mesmas bobeiras de sempre, que o povo adora ler para sentir aquele tosco frio na barriga, coisa típica. Entrevistaria funcionários, conversaria com os presentes, tiraria fotos dos corredores durante o dia e à noite, com auxílio de câmeras especiais. Uma matéria digna dos caçadores de fantasmas americanos, porém sem toda aquela tecnologia. Contaria mais tarde com o apoio de editores de imagens e similares para deixar todos os corredores cobertos de vultos e fumaça inexplicáveis, luzes em pontos sombrios, frestas, rostos, olhos no escuro, baboseiras que chamam atenção e vendem mais do que livros.
A porta se abriu com um rangido, deixando o ar quente daquele início de tarde passear pelo corpo de Luan e acolher as belas coxas da funcionária que o atendeu.
—Pois não?
—Boa tarde, senhorita —disse ele, forçando os olhos para o rosto da donzela, não para suas curvas. —Sou de um jornal do Estado, como pode conferir em meu crachá de identificação. Fizemos uma ligação anteriormente e —
—Ah, claro, estamos cientes da matéria —ela interveio com um sorriso. —Entre, senhor Luan, seja bem-vindo ao País das Maravilhas.
Luan franziu o cenho, então subiu os três degraus que o separavam do interior daquela clínica, ouvindo o baque da porta atrás de si.
—País das Maravilhas? —indagou.
—Ou tão insano quanto.
Talvez ainda mais.
De fronte com um amplo salão de recepção, Luan não viu nenhum dos pacientes nos arredores. Era um lugar bastante limpo e cheiroso, com auxiliares da limpeza prontas para cuidar da sujeira iminente deixada por possíveis loucos ou visitantes que não suportassem a pressão daquele lugar. Toda a decoração era velha, respeitando os séculos de vida daquele lugar, tudo reformado para se manter útil, ou assim fingir ser. A visão, no entanto, não privava os ouvidos das lamúrias e dos berros que trespassavam as paredes e portas da câmara principal. Urros avantajados desciam as escadarias espiraladas como torrentes de sofrimento, provenientes de velhos em estado de calamidade, jovens que viram mais do que suas mentes eram capazes de aceitar ou mesmo crianças que passaram por experiências traumatizantes.
Qualquer pessoa veria aquilo como uma tenebrosidade sem tamanho, desejaria sair correndo ou cobrir os ouvidos. Luan enxergava um poço de dinheiro.
—Posso lhe oferecer um copo de café, senhor Luan?
A voz da bela mulher chamou sua atenção. Fez que sim, e ela então se retirou com uma mesura, rebolando em sua marcha até o balcão. Luan aproveitou de seu momento sozinho para estudar o ambiente: luminárias antigas, duas delas queimadas, portas que se abriam somente por um lado ou contavam com trancas especiais, iguarias do tipo. Uma clínica, certamente, mas tantas eram as medidas de segurança que, por vezes, chegava a parecer uma espécie de prisão para loucos.
—Aqui está —disse a mulher, retornando com uma pequena dose de café preto.
—Obrigado —Luan sorriu, educado. —É você quem vai me acompanhar pela propriedade?
—Até onde sei, será o senhor Thomas quem lhe fará companhia, senhor Luan. Ele deve estar chegando... Ah, já o encontrei! Senhor Thomas!
Thomas era o chefe a segurança local, um dos mais importantes homens dentre os funcionários daquela clínica. Trabalhando diretamente com os diretos da administração, Thomas conhecia todos os cantos do centro psiquiátrico, desde os corredores até as antigas câmaras onde, diziam as más línguas, pacientes eram torturados. Não passava de um senhor de meia idade, que um dia, anos antes, tivera um corpo malhado, mas agora contava apenas com gorduras localizadas e muita carne para poucos ossos. Vestia-se num terno escuro, traje compartilhado por todos os integrantes da segurança, devidamente espalhados em posições estratégicas que impediriam quaisquer pacientes de fugir, ou mesmo visitantes indesejados de entrar.
—Seja bem-vindo, senhor —
—Luan Montagnari —respondeu o jornalista. —É um prazer, Thomas.
Apertaram as mãos, sem evitar a troca de olhares desconfiados.
—Será você o valentão da vez, então? —zombou o chefe de segurança.
—Como assim?
—Ora, não lhe disseram? Muitos outros vieram antes de você. Pagaram uma fortuna para passar uma noite entre os pacientes. Alguns até o fizeram de maneira ilegal, se quer saber. —Sussurrou essa última frase, atento quanto aos ouvidos curiosos de outros funcionários. —Todos eles saíram daqui amedrontados. São idiotas, isso sim, mas acredito que o senhor não seja como eles.
—Certamente que não. Estou aqui apenas a trabalho, senhor Thomas, e não pretendo sair daqui amanhã sem uma boa matéria para apresentar ao jornal. Sou bom com as palavras, e muita gente é boa com as imagens. Isso é uma arma mais perigosa do que qualquer revólver, sabia?
—Tenho certeza que sim. —Thomas se virou para a bela senhorita que acompanhava Luan até então. —Elisa, pode deixar o copo de Luan no balcão, por favor? De agora em diante, eu serei o seu guia.
—Claro, senhor Thomas —respondeu a jovem. —Com sua licença, senhor Luan.
—Foi um prazer. —Luan aguardou até que a auxiliar se retirasse e a admirou com aprovação nos olhos. —Eu daria tudo para que fosse ela a minha guia, se quer saber.
—Não faria isso se fosse você. Elisa adora provocar homens, mas a fruta que ela gosta é outra.
—Sério?
—E eu tenho cara de quem gosta de mentiras? Agora vamos, há muito a ser visto e pouco tempo a ser perdido.
Thomas avançou pelo salão principal, passando pelas portas duplas sem a apresentação de credencial alguma. Era conhecido ali, todos os respeitavam, afinal, não fosse ele, toda a segurança daquele lugar estaria desorganizada. Os funcionários o cumprimentavam com sorrisos, alguns com certo desprezo sob os dentes cerrados, mas nenhum deles o desrespeitava, e Luan logo entendeu que a escolha do guia não poderia ter sido melhor.
Passaram por dois corredores largos, onde pacientes eram examinados numa verificação de rotina. Cadeiras de rodas estavam encostadas nas paredes, macas deixadas de lado nos cantos, e Luan pôde notar que a limpeza e o cuidado aparentes do salão principal eram somente uma máscara para o desleixo com que todo o restante do edifício era tratado. Seguiram adiante, trespassando uma porta dupla aberta com facilidade pelos braços de Thomas, e só então o chefe de segurança voltou a falar.
—Está atrás de lendas urbanas, não é?
Luan demorou um tempo para assimilar a pergunta.
—Ah, sim, sim, é isso mesmo —respondeu ele. —Quero histórias para contar. Mentiras, nada mais. Quero deixar as pessoas felizes, assustadas, causar aquela sensação de medo do desconhecido, você sabe. Nada melhor do que um centro psiquiátrico cheio de rumores para isso.
—E como sabe que são rumores?
Thomas escondeu um sorriso de ironia, então continuou:
—Tá, eu admito, é uma tremenda baboseira essa coisa de fantasmas e tal, mas eu não gosto de brincar com essas histórias. Já que você está atrás delas, no entanto, vou mostrar os lugares em que pode encontrar os melhores ângulos para fotos e filmagens, principalmente noturnas.
—Ajudaria bastante.
—Então vamos.
Subiram o primeiro lance de escadarias e, assim que pisaram no segundo andar, Luan escutou gritos.
—É sempre assim? —perguntou ele.
—Sempre. Melhor se acostumar com essa barulheira toda. Se pretende passar uma noite aqui, vai ter que dormir com berros e risadas ensandecidas. Esses loucos não param um só instante!
—Sem problemas, não pretendo dormir. Quanto mais eles gritarem, melhores ficam os vídeos.
Um corredor adiante e, atravessando uma porta, chegaram a uma pequena biblioteca. Alguns pacientes faziam tratamentos para reestabelecer seus conhecimentos, suas memórias e capacidades de compreensão com ajuda de livros infantis, lendo mensagens das páginas coloridas para companheiros de internação.
—Aqui é o primeiro ponto, Luan, a biblioteca! —contou Thomas.
—O que aconteceu aqui?
—Suicídio. Na verdade, muita gente se matou aqui dentro, em qualquer canto desses quartos você vai encontrar uma história sobre autoflagelo ou enforcamento, falta de ar e pulsos cortados.
—Qual a diferença, então?
—Suicídio em massa. Agora sim as coisas ficaram interessantes, não é?
—Provavelmente.
—Doze pessoas, meu amigo, doze! Um bom número, não? Tire algumas fotos nesse ângulo, dá para colocar alguns rostos atrás dos livros, efeitos de luzes e umas marcas de mãos nas janelas. Vê ali em cima, perto das cortinas dobradas? Eram duas adolescentes penduradas por uma mangueira de incêndio.
—Que história!
—É só o começo. Coloque um vibrador e uma boa quantidade de cocaína para ver onde elas vão parar.
Thomas ria como se aquele assunto fosse o mais natural do mundo. Luan gostou daquele homem. Tornou todas as coisas mais práticas.
Seguiram nas apresentações dos locais, mas só pararam quando o chefe da segurança abriu uma nova porta dupla, até então lacrada.
—Vou deixar destrancado hoje, mas geralmente esse banheiro fica trancado —contou Thomas. —Hoje o impedimento é por motivo de encanamento falho, mas esse banheiro fica perto da ala feminina.
—Deixe-me adivinhar, estupros por funcionários?
—Bingo. Muitos deles, e torturas também. Eles mandavam as mulheres ficarem quietas, mas elas insistiam em gritar. Então eles cortavam suas línguas fora enquanto as fodiam, e mandavam-nas sorrir com sangue nos lábios.
—Uma coisa bem agradável, por sinal. As pessoas que trabalhavam aqui antigamente eram bastante felizes, não concorda?
—Até hoje é assim. Passe uma semana aqui e vai entender que precisa ser tão louco quanto os pacientes para suportar o que eles fazem.
Luan deu de ombros.
Subiram um novo lance de escadarias, e dessa vez chegaram a uma sala de jogos. Havia duas funcionárias observando quatro pacientes, acompanhadas de outros dois seguranças que evitariam qualquer tentativa de agressão. O casal de adolescentes retirava as peças de uma caixa e tentava encaixá-las num suporte de figuras geométricas com uma dificuldade incomum.
—Salão de jogos —Luan pensou alto. —Qual a história dessa vez?
—Um casal apaixonado —contou o segurança. —Fugiram das amarras, mataram três funcionárias, estrangularam um segurança e se encontraram aqui. Transaram, assistiram televisão e depois cortaram as próprias gargantas com pedaços de vidro daquela janela ali.
—Mais romântico do que Titanic.
—Nunca gostei daquele maldito barco mesmo.
Luan deixou um sorriso escapar.
O restante do passeio vespertino se resumiu a histórias similares àquelas. Suicídios predominavam, mas havia tantos outros casos que logo Luan se perdeu nas histórias. Enforcamentos, decapitações, canetas que perfuravam orelhas, música escutada nas passagens de ar, muito mais. Por último, quando já tinham caminhado por todo o quarto andar, Thomas disse que havia uma área ainda mais assustadora para ser visitada.
—E qual é?
—O porão.
—O porão? —Luan riu. —E qual o pavor de um porão? Vai me contar sobre uma tragédia coletiva com ratos?
—Não zombe até estar lá, jornalista, o clima é bastante pesado.
—Amigo, já fiz filmes piores do que esse. Nenhum hospital vai me assustar mais do que o cemitério onde gravei no semestre passado.
—Você não está num hospital, garoto, não se esqueça disso.
—Que seja.
Desceram de elevador dessa vez, aproveitando da tecnologia postada para os pacientes com dificuldade no caminhar para evitar passos desnecessários. Atravessaram o saguão principal outra vez, agora seguindo em direção a uma porta até então despercebida. Thomas tirou as chaves da cintura e a abriu, e a porta cantarolou com um rangido macabro. Luan não pôde evitar a tosse, originária do excesso de poeira que o assolou, mas seguiu o chefe da segurança mesmo assim.
—As coisas aqui não são tão bonitas e limpas, tome cuidado —avisou Thomas.
—Tudo bem, não deve ser pior do que o meu escritório.
Mas era. O cômodo era grande, mas servia apenas como depósito naquele momento, com caixas e mais caixas empilhadas sobre macas de pernas quebradas, cadeiras de rodas tortas e aparelhos sem funcionamento. A escuridão era intensa, mas Thomas logo acionou um interruptor, acendendo as luminárias antigas que se acenderam sem pressa alguma.
Luan escutou um barulho estranho.
—Que lugar é esse?
—O porão, oras!
—Isso eu sei, quero saber qual a finalidade atual. É somente um depósito?
—Provavelmente sim. Na verdade, esse barraco velho fica trancado todo o tempo, e só eu tenho as chaves. Nada entra e nada sai sem que eu saiba, entende? Geralmente eles jogam as tralhas velhas que não podem ser queimadas aqui, mas às vezes utilizam para outras coisas.
—Como por exemplo?
—Eu sei lá, cara. Só abro e fecho as portas, sacou? O que aqueles velhos fazem aqui dentro não me importa.
—E antigamente?
—Ah, agora sim você falou a minha língua. Aqui costumava ser uma ala de psiquiatria também, pelo que sei. Cuidavam de adolescentes com problemas de família, muitos garotos que mataram os pais sem razão aparente, alegando problemas de demência para escapar da cadeia. Alguns eram bem barra pesada, se me permite arriscar, coitados dos médicos daquela época.
—E crianças?
—Como assim?
—Crianças, ué. Elas eram internadas aqui?
—Não tinha criança nenhuma nessa clínica. Nunca internaram crianças aqui no Machado de Lucas.
—Tem certeza?
—Absoluta. Quem te disse isso?
—Ninguém, na verdade. Só quis arriscar. Lendas urbanas com crianças mortas chamam bastante atenção.
Thomas deixou um sorriso escapar.
—Você realmente adora mentiras, não é?
—É o que me sustenta, amigo.
Mas Luan não gostava de mentiras, e acabara de mentir naquele instante.
Nunca admitiria, mas perguntou sobre crianças graças ao barulho que escutou anteriormente, o qual, tinha certeza, era uma risada de crianças a brincar.

A tarde chegou ao fim com um espasmo, e logo a maior parte dos funcionários começou a se despedir. Thomas acompanhou a visita de Luan até o fim, e também fez companhia ao jornalista durante seu café da tarde, nada além de um pão doce com um copo de café com leite cujo açúcar estava em falta. Conversaram mais um pouco sobre os boatos antigos, então se despediram, pois Thomas tinha que levar sua filha mais nova no pediatra às dezoito horas.
Luan se sentou nas cadeiras de espera, ajeitando as coisas em sua maleta. Tinha equipamentos para filmagem noturna, câmera com lente especializada em corredores escuros, comida para passar a noite toda, uma garrafa de conhaque e...
—Precisa de ajuda?
Olhou para a dona da voz: Elisa.
—Não vai embora? —perguntou Luan.
—Ah, me desculpe, não queria atrapalhar.
—Não, não é isso. É que todos estão indo embora, pensei que você também partiria logo.
A mulher sorriu.
—Hoje é meu dia de montar o plantão —contou ela. —Temos uma escala alternada. A madrugada é minha dessa vez.
Luan engoliu em seco. O trabalho seria mais difícil do que ele imaginou.
—Que bom —disse ele. —Pelo menos terei uma companhia agradável.
—Se você diz. Pode me chamar se precisar de algo, senhor Luan. Estarei sempre aqui, próxima à recepção, mas não há nada que me impeça de dar uma fugidinha para te ajudar com as histórias, caso necessite.
Ela se despediu com um sorriso e se virou, rebolando enquanto caminhava até seu posto. Luan se lembrou das palavras de Thomas: Elisa adora provocar homens, mas a fruta que ela gosta é outra. Terminou de ajeitas as coisas tentando digerir aquelas palavras junto do café amargo que tomara pouco tempo atrás, então abriu o celular e deixou-se relaxar, nos últimos momentos em que a luz do sol penetrava pelas janelas, escutando seu tradicional rock clássico e pensando nas palavras chocantes que usaria nas crônicas sobre a exploração dos arredores da clínica Machado de Lucas.
Assim, com o silêncio ensurdecedor dos fones de ouvido e a companhia de um tradicional e exaustivo jogo de tetris, Luan viu a noite chegar nos vidros da clínica.
Restavam poucas pessoas presentes no estabelecimento. Luan contou por cima, mas arriscou num valor próximo de doze ou quatorze pessoas, sendo três destes membros da equipe de Thomas, que a essa altura já devia estar em casa com uma cerveja preta em mãos. Um dos guardas mantinha a prontidão na parte frontal do edifício, circundando o estacionamento, enquanto os demais visitavam todos os quartos e auxiliavam as funcionárias a cuidar de quaisquer problemas. Parecia preocupante imaginar como duas sentinelas seriam capazes de evitar o caos de tantos pacientes quanto ali residiam, mas Luan não perdeu muito de seu tempo pensando nisso. Com as luzes oscilantes acesas e o frívolo frio do inverno castigando, puxou a câmera de visão noturna de seus pertences e iniciou a busca por boas fotos.
—Por onde devo começar?
Pensou alto, e logo se decidiu pelos mortos nos banheiros. Fotografou as pias, as banheiras, os toalhetes e o piso. Algumas manchas e outros efeitos de imagem cuidariam de transformar aquelas fotos em recordações antigas, ou mesmo num causo recente de atividades paranormais. Luan tinha a mente fértil para essas coisas. Visualizava as figuras macabras que seriam dispersas nos cantos escuros de suas fotos, os sorrisos foscos nas quinas das paredes, os olhos brilhantes atrás dos vidros. Por pouco não conseguia assistir à sensação incômoda que assolaria os leitores de sua matéria. Pensar nisso fazia com que ele se deleitasse com o trabalho enganoso.
Ouviu passos.
—Elisa?
Torceu para que fosse ela. Num momento imperceptível, tateou o bolso da calça jeans, a carteira estava lá. Dois preservativos, talvez três. Se contasse com a sorte, estava preparado para a felicidade.
As portas rangeram com uma brisa bastante leve.
—É só o vento —disse para si mesmo, encostando a mais alta das janelas.
Fora do banheiro, alguns loucos gargalhavam.
Luan deixou o lugar com o material salvo em seu cartão de memória. Trocou de câmera, faria um vídeo. Ligou o flash especial, iluminando o caminho obscuro com uma lanterna de xênon, os funcionários que o viam achavam aquela cena cômica. Apesar disso, nenhum deles ria. Ter um jornalista percorrendo os corredores de seu trabalho não é tão preocupante quando não se deve nada à polícia, mas é uma bizarrice sem tamanho ter conhecimento de que aquele homem vai inventar histórias numa revista especializada a tirar o sono de crianças e adultos com mentes mais frágeis. Parecia uma certa falta de respeito, mas enfim, nenhum deles ousou criticar. Estavam recebendo uma parte do dinheiro oferecido à instituição, e aqueles que não faziam parte da divisão de lucros não arriscariam seus empregos por um orgulho ruído.
Passos, outra vez. Por um momento, Luan acreditou ver alguém ao fim do corredor. Virou as luzes, não havia ninguém. Talvez um rato, pensou ele, ou um segurança em sua patrulha. As coisas ficariam muito mais interessantes se não houvesse pessoa alguma no lugar.
Ou ficariam ainda melhores se Elisa, que acabara de surgir à sua frente, oferecesse algo além de sorrisos.
—Como anda o seu teatro, senhor Luan? —perguntou ela, que carregava uma bandeja de frutas e sucos naturais em caixas plásticas.
—Indo —respondeu ele. —Sabe como é, precisaria de uma motivação maior do que histórias de fantasmas.
—Você é um bom fotógrafo?
—Em termos. Estudei bastante sobre fotografia um dia, quando era mais novo.
—Eu gosto de fotos.
—Quer posar para algumas? —arriscou.
Elisa sorriu com malícia, gesto retribuído por Luan.
—Me encontre no porão daqui há meia-hora —disse ela. —Não creio que essas fotos vão ajudar na sua matéria, mas enfim, será divertido.
—Tenho certeza que sim.
A funcionária passou tão próxima de Luan que encheu suas narinas com o perfume sedutor que imperava sua pele. Estava mais forte do que anteriormente, o que deixava claro suas intenções.
—Safada —Luan pensou alto, mordendo os lábios sem perceber. Ajeitou as calças e desceu, retornando à entrada da clínica, onde se posicionou para algumas outras fotos.
Luan passou por uma porta que Thomas não tinha lhe mostrado durante sua visita, deixando para trás uma funcionária debruçada no balcão, conversando ao celular sobre um filho que ia mal na escola e sobre como preparar um almoço descente para as férias. Era uma sala com máquinas de raio x, medição de batimentos cardíacos, pesagem e outros fins. Todos os aparelhos eram velhos, cada qual num estado diferente de conservação, dos mais limpos a pobres tralhas de uso contínuo. Luan fotografou-os, disposto a inventar uma coluna sobre as máquinas que funcionavam sozinhas.
Alguma coisa caiu no piso.
Virando-se para trás, Luan constatou que não havia ninguém além dele na sala. Olhou para o chão, encontrou o dono daquele estrondo no silêncio: uma bandeja miúda, similar à qual Elisa carregava nos corredores. O jornalista sorriu. Olhou para o relógio, ainda faltavam dezessete minutos.
—Está querendo me assustar, é? —riu ele. —Desista, mulher. Eu já estive em lugares muito piores do que esse.
Esbarrou por desatenção na balança de pesagem, o número digital avançou ao longe, logo retornando ao zero. Praguejou pela dor no pé, mas não se deixou abalar. Mancou por instantes, até que encontrasse o caminho mais próximo até uma das paredes, onde se escorou para aliviar a pressão no dedo que sofrera a pancada.
Lá, ouviu novamente um som estranho.
—Que barulho é esse?
Vinha de uma direção errônea, aleatória, como se mudasse a cada segundo. De súbito, estabilizou-se num único lugar, e Luan estranhou.
O som vinha de sob seus pés.
—Está tudo bem, senhor? —perguntou a mulher presente no balcão, abrindo a porta para verificar a origem dos barulhos.
—Ah, está sim, claro —disse Luan, cambaleante. Olhadela para o relógio: doze minutos faltantes.
—Precisa de ajuda com alguma coisa?
—Estou bem, obrigado. Acho que vou dar uma olhada no porão, se quer saber.
—Não entro lá nem que me paguem.
—Estou sendo bem pago para isso.
A velha riu sem simpatia alguma, então deixou Luan para trás, retornando à sua ligação, que agora tratava sobre roupas indecentes e música de má qualidade. Luan caminhou até a porta, mas hesitou. Olhou para trás, forçou a audição, se concentrou ao limite que sua mente lhe permitiria, mas nada ouviu. O barulho sumira, restando apenas o silêncio.
O mesmo riso infantil que ouvira na tarde em que conheceu a clínica.
Com ajuda das chaves deixadas por Thomas, Luan abriu a porta do porão, tomando cuidado para encostá-la enquanto fingia girar a tranca. Deixaria o caminho aberto para Elisa, que logo deveria chegar, em pouco mais de sete minutos. Desceu as escadas sem pressa, pisando em cada degrau como se dançasse despreocupado. Tinha a câmera em mãos, e o pensamento flutuante nas posições enfadonhas que poderia pedir para que Elisa fizesse, deixando-o se deliciar em seu corpo.
Pensando assim, sequer escutou os barulhos repetitivos que ecoavam no interior das paredes.
Estava novamente no depósito que vira durante a tarde, mas agora, no escuro, tudo parecia ainda mais assustador. A iluminação de seu equipamento garantia uma bela visualização, ilustrando as paredes com cones acalorados de uma fonte de luz clara e vívida. Ele puxou cadeiras em sua direção, montando o equipamento sobre elas e deixando uma parede livre para a funcionária que tanto o seduzia. Será que ela viria mesmo? Preparou a câmera, fotografou os cantos mais densos, pensou em algumas histórias, mas sua mente estava em outro lugar.
—Estou atrasada?
Luan conferiu: faltavam quatro minutos.
—Adiantadíssima, até.
—Costumo ser pontual.
O jornalista se virou e encontrou a beldade que o deixava cada vez mais sem fôlego. Ela descia as escadas como num desfile, apoiada no corrimão e trotando com suas coxas volumosas. Sorria, aquele sorriso crepitante e vadio, acompanhado de frágeis dedos enrolando seus cabelos.
—Percebi. Tomei a liberdade de preparar o local de suas fotos.
—Eu serei uma modelo, então?
—Não, modelo não. Modelos são tão sem graça, magricelas e destemperadas. Mas você pode sair nas minhas fotos, se desejar.
Elisa riu. Um rastro de perfume a acompanhava, e aquilo era castigo demais para um homem só.
—Por que não? —brincou, pairando no foco de todas as luzes. —Aqui está bom?
—Em qualquer lugar. —Luan mirou a câmera. —Que tipo de fotos você quer tirar?
—Não sei. —Ela baixou o torso, deixando o decote impulsionar seus seios para cima. —Assim está bom?
Luan começava a suar.
—Melhor impossível.
—Ora, não diga essas coisas! Eu poderia muito bem melhorar as coisas. Que tal assim?
Elisa puxou boa parte do tecido de seu saiote para cima, deixando as coxas claras à mostra.
—Não duvido da sua capacidade de melhorar as coisas.
—É mesmo?
—Certamente. —Bateu duas ou três fotos, sequer se preocupava com os resultados. —Ouvi uma história sobre você, um pouco mais cedo.
—Lhe disseram que eu sou lésbica?
Ela riu. Caminhou até o lado de Luan, que baixou a câmera para poder sentir aquele perfume tocante.
—Mais ou menos.
—Eu gosto de me aventurar —ela disse. Pousou as mãos nos ombros de Luan, deixou os lábios colados ao seu ouvido. —Gosto de curtir a vida, se é que me entende.
—Faz meu tipo —balbuciou.
Houve um estrondo nos cômodos superiores, então correria.
Elisa bufou.
—Droga —disse ela. —Um deles deve ter escapado durante o jantar. Malditos sejam esses loucos.
Ela ajeitou as roupas e começou a subir as escadas.
—Você precisa mesmo ir?
—Fique tranquilo, eu volto. Por que não procurar um lugar mais interessante para nos escondermos? Gosto de um escuro que incendeie, sabe.
E se foi.
Luan desarmou todo seu cenário improvisado e estudou o porão, procurando por um lugar como o indicado por Elisa. Havia duas portas cercadas por tranqueiras, bem como uma portinhola baixa, na altura de seus joelhos, travada por um cadeado minúsculo. O jornalista deixou suas coisas no chão, a câmera voltada em sua direção, iluminando o caminho que ele tentaria abrir naquele momento, e então se ajoelhou, estourando o cadeado sem esforço algum. Puxou para trás a portinhola e foi recepcionado por uma grossa camada de poeira, a qual evitou cobrindo o nariz com a camiseta. Seguiu o rastro de luz para entender que se tratava de outra câmara, diferente do que imaginou, um pequeno quarto de tranqueiras. Atravessou a localidade e se postou em pé, confirmando que o teto era maior do que sua altura. Estava muito escuro, e a luz que o guiava não era capaz de alcançar aquele lugar. Arriscou três passou, tropeçou em algo pesado, de barulho metálico. Tateou o solo e descobriu que eram correntes.
—Que merda é essa?
Voltou. Puxou a câmera junto de si, usou a luz para se situar. Estava certo, era uma corrente que o fizera tropeçar, mas não somente uma. Havia diversas correntes, uma massa incontável de gomos de aço empilhados num canto, estendidos por toda a sala, amarrados em ganchos nas paredes de tijolos. Luan estranhou.
—O que era esse lugar?
Escutou aquele barulho estranho outra vez, acompanhado de uma pequena batida na parede.
—Elisa?
Não vinha da sala anterior. Vinha de outro lugar.
—Quem está aí?
Risos.
Risadas de crianças.
Luan suava frio, como nunca antes suara na vida. Suas pernas se recusavam a obedecer.
—Pare com essa brincadeira, Elisa —tentou novamente. —Não gosto dessas coisas, e tenho um trabalho para terminar aqui. Se quer transar, apareça logo que eu lhe satisfaço, ou então suma da minha frente e —
Várias batidas nas paredes fizeram com que Luan se calasse.
Mas não calaram as risadas, que agora aumentavam cada vez mais.
O som vinha de uma das paredes, mas não havia porta nem janela, somente tijolos. Luan se aproximou, debruçou-se no cimento, postou o ouvido para escutar melhor. Várias crianças, brincando e se divertindo. O que estava acontecendo ali? Thomas lhe disse que não existiam crianças na clínica Machado de Lucas. Estaria ele mentindo?
Luan apoiou-se num dos tijolos, e este cedeu. Percebeu que poderia abrir caminho por aquela parede e, sem hesitar, o fez. A luz o acompanhava.
Encontrou um corredor de teto baixo, o que o forçava a caminhar com as costas curvadas.
—Mas que —
Risadas, cada vez mais altas.
Postou a câmera nos braços e seguiu, examinando, ouvindo. Tremia, mas nunca ousaria admitir esse detalhe.
Era um corredor estreito, mas ele passou facilmente. Ao fim, encontrou uma porta, de onde as risadas pareciam se originar. Ela parecia trancada, mas se abriu num simples toque, ao mesmo tempo em que a luz de sua câmera se apagou.
—Merda de eletrônico. —Luan passou pela porta com cautela, notou que haviam ainda mais correntes no chão. Tudo era um completo breu. Ele ligou seu aparelho outra vez, acendeu as luzes e, para sua surpresa, encontrou uma cena que jamais seria capaz de imaginar.
Crianças.
Dezenas delas.
Brincavam, cantarolando uma melodia amigável, simpatizando numa diversão inocente e duradoura. Cantavam seus nomes com um prazer que adultos não são capazes de sentir, girando com os braços unidos, saltitando no ritmo da música que escapava de suas bocas. Garotos e garotas, miúdas, altos, bebês, crianças de todas as idades, e mais ninguém.
A luz se apagou outra vez, mas agora voltou rápido.
Não havia mais criança alguma.
Havia correntes, enroscadas em ossos, amarradas a pedaços de podridão e sujeira. Luan encarou aquela cena com repugnância, e mesmo a paz de espírito que acabara de conquistar na visão das brincadeiras não foi capaz de segurar sua ânsia. Eram tantos os corpos, tantos os restos, que se tornava impossível apontar a quantidade de mortos naquela sala. Crânios estavam dispersos por todos os cantos, alguns esmagados, outros com os dentes cerrados sobre os gomos das correntes, presos pela eternidade, abandonados para morrer.
Risadas.
Luan estremeceu, e dessa vez o medo tomou conta de seu corpo.
Gritou.
—Elisa! —chamava em desespero. —Elisa!
A funcionária descia as escadas naquele instante. Escutou os gritos, imaginou se o jornalista tinha utilizado alguma droga ou coisa do tipo, correu na direção do som.
Luan caiu no chão. As paredes pariam crianças e mais crianças, tenebrosas, decrépitas, mórbidas como um crepúsculo indesejado.
—Saiam de perto de mim, saiam! —implorava, aos prantos.
Elas não obedeciam. Tocavam sua pele, o toque queimava como fogo. Gargalhavam, as bocas mordiscando as correntes que as aprisionavam, os dentes se partindo no choque contra o metal. Algumas ainda tinham carne, em outras faltavam olhos, braços ou pernas. Bebês se arrastavam, choramingando lamúrias de uma vida que sequer chegaram a viver. Os mais velhos grunhiam suas pragas numa língua sem significado, urravam, vomitavam morte e loucura sobre a epilepsia de Luan, que nesse momento não mais suportava aquela visão.
—Senhor Luan!
Elisa o encontrou ali, num surto.
Deitado num quarto vazio, gritando de pavor, implorando por ajuda.
Chorava como uma criança cuja diversão, ou a liberdade, fora roubada.

—Acalme-se, senhor Luan —disse o doutor, mas o ex-jornalista não parecia nem perto de se acalmar. —É somente uma história, ok? Uma história como todas as outras que você inventou para as revistas.
—Não é uma mentira, não é uma mentira! —com certa alteração no comportamento. —Eu vi, eu juro que vi, eu —
—Fique calmo, meu garoto —disse o velho. Percebendo que não seria obedecido, fez sinal para que um dos seguranças segurasse Luan.
Era Thomas.
—Você mentiu! —gritava Luan. —Você disse que não existiam crianças! Você me enganou!
Thomas suspirou.
—Era somente uma noite, Luan —disse ele.
O doutor aplicou um sedativo bastante potente, e Luan adormeceu antes mesmo de ver a porta se abrir.
—Pode levá-lo, Thomas —disse o doutor. —Não há esperanças, muito menos tão cedo assim. Ele vai precisar de um tratamento de choque.
Thomas assentiu, e então carregou o corpo amolecido de Luan até um quarto isolado. Ali, sobre uma maca, Luan adormeceu, descansando de um pesadelo que não mais teria fim. A cada sonho, a cada pensamento, a cada instante de olhos fechados, elas sempre estavam lá: crianças, infindáveis e tenebrosas, amarradas e amordaçadas por grossas e barulhentas correntes.
O chefe da segurança estava sentado numa cadeira, observando o corpo inconsciente do jornalista, quando a porta se abriu. Era Elisa.
—Como ele está? —perguntou ela.
—Vai ficar bem, eu acho —respondeu Thomas. —Elas estavam famintas dessa vez, não é?
—Elas sempre estão famintas.
Elisa baixou os olhos. Acariciou os cabelos de Luan com as mãos frias.
—Você fez bem, outra vez —disse o segurança, deixando uma de suas mãos pousar no ombro da funcionária, que logo se livrou do contato.
—Quando isso vai acabar? Quando vamos estar livres dessa maldição, dessas devoradoras de mentes? Quando todo esse pesadelo vai acabar?
—Eu não sei. —Thomas se lembrava de todos os dias, de todos aqueles anos, dois séculos e meio trancafiado num mesmo local, mudando os nomes, os disfarces, as mentiras. Estava exausto, tanto quanto Elisa, mas não conseguia pensar em palavra alguma além daquelas que sempre acompanharam todas as perguntas que lhe eram feitas: —Eu não sei.

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