quinta-feira, 5 de julho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 3 / Ato XIX


XIX

Trevor era um Sangue Azul.
Sabia há muito sobre aquele termo, desprezado por todos os demais ceifadores. Sangue Azul era como chamavam os homens que se relacionavam com demônios, que se perdiam nas suas provocações, seduzidos por suas ofertas tentadoras. Por muito tempo, Trevor odiou aquelas palavras, chamando de fraco todos aqueles que ousassem se aproximar de tal ato.
Agora, ele era o fraco.
Não se intimidou.
Afastou-se de Clufeir por um momento, lavando o rosto para tentar se livrar da vergonha. Olhava-se no espelho, não via um ceifador. Em apenas um dia, desrespeitara duas normas de sua profissão, a aproximação de uma mulher e o relacionamento com uma criatura do sobrenatural. Sabia que, a partir daquele dia, não poderia mais se chamar de ceifador.
Deu de ombros, voltou à sua cama e beijou Clufeir.
“Que se dane.”
“O que disse?”
“Que se dane tudo. Não quero isso para mim. Não quero me confinar como um padre, ficar ajudando os outros a se livrar dos problemas que eles mesmos criaram. Danem-se os loucos. Quero ficar com você, Clufeir.”
Não era verdade, mas Trevor acreditava fielmente naquilo tudo que havia dito. Aquele era o efeito da aproximação de um demônio, de sua enganação, de seu teatro.
“Que honra, Trevor. Podemos viver juntos, como um casal comum. Podemos nos amar, como homem e mulher. Podemos ter um filho. Eu vou estar do seu lado para sempre.”
E assim foi.
Durou anos. Três, quatro, Trevor deixou de contar. Era feliz, mais do que nunca. Afastou-se da profissão, não mais atendeu pessoa alguma que precisasse dos serviços de um ceifador, e não de um psiquiatra. Escutava os loucos, indicava-os a remédios ou hospícios, quando necessário. Tornou-se um profissional, o que lhe custou parte do renome.
Anos mais tarde, Clufeir ainda estava lá, como prometera. Cada vez mais bonita, cada vez mais sedutora.
Cada vez mais inchada.
“Estou grávida.”
“O que isso quer dizer?”
Ela fez uma expressão de zombaria.
“Que eu vou ter um filho?”
“Eu sei. O que isso quer dizer quanto à nossa relação, esta é a minha pergunta. Somos humano e demônio. O que nascerá?”
Clufeir sorriu com certa malícia.
“O futuro da humanidade está em meu ventre, meu amor.”
Parecia brincadeira, mas havia muita verdade nas palavras de Clufeir. Verdades que Trevor não conseguia ver naquele momento.
Passaram-se meses, algo entre cinco ou seis. Trevor não esperava pelos grunhidos de Clufeir, mas eles vieram ainda assim, acordando-o no meio da noite com um aviso de um parto prematuro. Buscou as roupas para levá-la a um hospital, ela o impediu.
“Não podemos sair daqui. Você vai ter que me ajudar.”
Não era um parteiro, mas não teve dificuldades em cumprir seu papel. Clufeir se postou na cama, abriu as pernas ao limite de sua flexibilidade, gemeu e ganiu pelo esforço, alternando entre uma respiração densa e a pressão das unhas nos lençóis avermelhados por seu sangue. Trevor fez o seu melhor, mas passou a maior parte do tempo abobalhado pela situação, assistindo àquela cicatriz de carne rosada e elástica, que se expandia o suficiente para que uma nova vida passasse por sua abertura.
Uma vida grotesca.
Trevor choramingou pelo simples toque daquela criança. Sentia as mãos arderem, a pele pulverizar, conforme puxava aquele ser para fora do corpo de sua amada. Tinha unhas e dentes, olhos macabros, um corpo deformado e assustador. Aquele parto fora acompanhado de muitas coisas, tempestades e ondas gigantescas, erupções vulcânicas e terremotos gravíssimos.
Sua existência gritava na mente de Trevor, e as palavras eram sempre as mesmas.
Eu sou o emissário do demônio.
Clufeir gargalhou, livrando-se dos braços de Trevor e de sua fragilidade pós-parto. O teatro durou anos, e somente naquele momento fora revelada toda a farsa. Um único berro afastou o ceifador de seu corpo, jogando-o contra as paredes de seu próprio quarto.
“Obrigado por tudo, meu amor.”
Terminando suas palavras, a mulher de olhos bicolores desapareceu, deixando em seu lugar um fogo negro e crepitante sobre os colchões manchados por seu sangue.
A máscara caíra, e o ceifador entendeu a tolice de seu ato. Seria o responsável pela catástrofe, o homem que possibilitou o fim do mundo. Seria o pai da cria do demônio, guiado pela irresponsabilidade de uma atração encantada, de uma feitiçaria poderosa e infernal.
Somente naquele momento, as letras daquele nome exótico pareceram desembaralhar à sua frente.
Clufeir.
Lúcifer.
“Filho de uma puta.”
Não tinha escolhas. Materializou sua força, seus poderes de ceifador, fez existir aquela fé que somente os mais fortes dentre os homens são capazes de manifestar. A fé da superação, do entendimento, do ato de compreender a sua própria realidade e sobreviver para receber as recompensas.
Em sua vida de ceifador, ouvira histórias sobre o inferno. Sobre os demônios mais perversos, as criaturas mais horrendas, os monstros mais grotescos. Sobre a terra do fogo astral, das sombras infindáveis, dos perigos indizíveis. Conhecia as lendas e os mitos, os rumores e os boatos, mas nada sabia sobre a realidade.
Desejou sua foice, mas ela não poderia estar ali. No entanto, sua crença estava presente, e sua vontade fez o fogo de trevas que ainda estalava em seu colchão se abrir como uma cicatriz, garantindo a ele a passagem para a terra onde nenhum homem gostaria de se aventurar.
Trevor sentiu o corpo todo arrepiar pelo temor, mas não pensou em nada daquilo.
Sem demoras, saltou para o inferno, sem saber se seria capaz de voltar.

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