quarta-feira, 18 de julho de 2012

Crônica - A Dor das Mulheres


A Dor das Mulheres

Ele repetia sem se cansar os comentários sobre a sua beleza.
Ela os escutava sem emoção alguma nos olhos. Eram palavras, nada mais. Palavras sem sentido, de significado fútil, cuja razão e objetivo de existirem eram somente a fornicação casual que lhe seria oferecida após uma cantada barata. Sendo assim, ela escutava tudo em silêncio, e cada um de seus pensamentos era intangível e imperceptível.
Ambos se sentavam numa mesa circular, bebericando cervejas geladas numa noite mais gelada do que qualquer cerveja poderia estar. A música ambiente era abobada, um ritmo de jazz antigo que agraciava os ouvidos, ao contrário daqueles elogios perversos e tomados por desejos infames. Sentados ali, como um casal, eles sabiam seus nomes e suas virtudes, talvez alguns de seus defeitos, e só. Eram recém-conhecidos, transeuntes do viver, amigos que se fizeram por meio virtual e que, ali, tinham interesses bastante distintos.
Ele a admirava. Aquela mulher à sua frente era bonita, com caracóis avantajados no cabelo, um brilho gracioso nos olhos e maquiagem na medida correta de sua aparência de boneca. Ele a via como gente, mas dedilhava seu corpo imaginariamente, transformando-o em números; medidas de busto, de cintura, de quadris, um possível celular com o qual trocariam mensagens sobre o sexo da noite anterior, outros mais.
Ela o admirava, mas de uma maneira diferente. Sentia o palpitar de um coração vívido, excitado pelas coxas exibidas na curva da saia, escutava o sangue deslizar nas trilhas de veias sujas, manchadas por uma ansiedade espermática. Sentia sua vida, aquela vida porca e de desuso frequente, respirava o mesmo ar impregnado pela existência de um ser cuja malícia e podridão eram deveras inadmissíveis para o universo que o circundava.
Enquanto tinham seus pensamentos ilegíveis, conversavam sobre homens e mulheres.
Ele era machista, fácil de perceber. Tinha o costume de apontar defeitos em atitudes minimalistas, criticar detalhes e minúcias, expurgar o sentimentalismo de cenas cujas propriedades eróticas deveriam transpor as barreiras do ilícito ato da cópula, do coito, da copulação inconsistente de emoções cicatrizadas num murmúrio desvairado pela náusea do libido. Ela tomava de seu copo, lambia os lábios, e isso tirava a concentração dele, fazia-o respirar de forma branda, baixar os olhos num disfarce de funcionalidade duvidosa, enrolar a franja no indicador enquanto assoviava uma melodia cuja rítmica se perdera num labirinto de nudez e perversão. Então ela dizia sua opinião, e ele escutava, assentia, concordava, mas sequer sabia o que lhe fora dito um segundo antes; sabia apenas daquele sorriso, da voz sinfônica, do palavreado de canto agradabilíssimo, das madeixas despencadas sobre a pele enuviada, das bochechas femininas ruborizadas por um frio desumano. Sabia disso, em detalhes e pormenores, e não sabia de mais nada.
Ela o provocou, seduzindo-o com um toque de dedos, uma carícia de suas unhas, crescidas mais do que de costume. As mãos dele tremiam, abraçadas parte ao copo, parte à alma que lhe tentava rasgar a pele e se afugentar. Ele se viu corar no reflexo dourado da cevada, e ali veria seu futuro, caso houvesse algo a ser visto.
O corpo respondeu a estímulos, e assim ambos se levantaram, ele pagou a conta e ela agradeceu, encenando uma discussão sobre o feminismo de dividir o custeamento de uma noite como aquela. Jogaram-se no banco de couro de um automóvel, ele dirigiu, alvejava um motel barato. Ela mandou que ele parasse no breu, disse que sua cama eram os becos de luz inexistente, ele viu a adrenalina exaltar na mente. Estacionou sem se importar com distâncias ou segurança, apagou os faróis, entraram ambos num recuo tão noturno quanto o céu que lhes cobria o erro; escoraram-se nas paredes, impacientes, e ela o beijou, e seu beijo era uma tortura de tão delicioso, por pouco não o forçando a implodir seu clímax. Ele deixou suas mãos correrem livre, guiadas pelo instinto previamente abandonado em cavernas, milênios atrás, mas ele estava todo ali, sedento pelo desejo, em descontrole e frenesi, idolatrando a perdição de ver a vida tresloucar-se como nunca antes vira.
Quando o êxtase lhe fez romper o zíper com as mãos bárbaras, ela estacou. Apoiou suas unhas rubras em seus ombros e se aproximou, em vagarosa sedução, soprando alucinada os ouvidos que lhe desejam, pois o corpo todo lhe desejava, e sua pergunta era o quão forte seriam os homens, o quanto suportariam tais seres pútridos, incapazes de se igualar às fêmeas, incapazes de respeitá-las como existentes, de não vê-las como objetos utilizados para ejaculações e nada mais, e ele não soube responder, pois se mostrava como todos os outros, se portava como homem, como porco animalesco que era, e mesmo que soubesse não o faria pois, ao ouvi-la perguntar sobre a dor das mulheres e a fraqueza dos homens, postou o membro rijo para fora de suas vestes, deixando de lado quaisquer monólogos que aquela vadia estivesse disposta a manter.
A noite terminou cedo.
Da mulher, restara sinal algum, bem como do veículo. Desapareceram na neblina, antes mesmo do sol sonhar com seu nascer, antes mesmo que ele alcançasse o repouso que lhe faz brilhar durante as manhãs.
O homem, no entanto, jazia ali, inerte e gélido. Despido numa nudez arroxeada, tinha os braços e as pernas amarrados em distância surreal, e um corte sorridente lhe rompia o estômago. Havia, em seu interior, um amontoado de carniça que, ao longe, pareceriam quaisquer coisas, mas nunca o que realmente eram.
Fetos.
Morrera ali, como fraco que era, inepto a sobrepor, do mesmo que sobrepujou, a dor sofrida por uma mulher.

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