segunda-feira, 9 de julho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 3 / Ato XXIV


Olá, companheiros.
Esta postagem carrega o último ato de Delirium, encerrando assim mais uma Light Novel aqui no blog! Espero que gostem da leitura, e aguardem porque logo devo disponibilizar uma versão em PDF, bem como uma versão impressa para venda no PerSe, como fiz com A Balada do Caçador. Até lá, vou me despedindo de Delirium para dar lugar a uma nova Light Novel, Desejos de Juno, a qual já apresente anteriormente.
Até a próxima!


XXIV

Havia um mundo negro e doloroso, onde a música era feita de gritos, e as paisagens de corpos de animais sem vida. Pontes de ossos, montanhas de corpos, lagos de sangue e florestas de esterco, tudo era comum naquele lugar. Cheirava a morte e tortura, pois aquela era a terra dos pecados, meio homem, meio demônio.
Aquele era o devaneio de um Sangue Azul.
Trevor acordou ofegante. Aquela era a vigésima noite desde a batalha contra Lúcifer, e em todas elas ele despertou após o mesmo pesadelo, onde encontrava a filha do demônio, sua herdeira, naquele lugar sinistro. A sensação era terrível. Por vezes, acordava banhado por urina, sem controle algum do próprio corpo; em outras, despertava com sangue espalhado por todo o corpo, fruto de um martírio indescritível.
A cada novo pesadelo, as mesmas palavras passavam-lhe pela mente:
(Eu vou morrer.)
O corpo de Evelyn, se aquele era mesmo o seu nome, estava conservado sobre um colchão fino, em seu quarto. Sabia que todo aquele teatro fora apenas enganação; aquela mulher talvez nem mesmo existisse. Ainda assim, não conseguia negar seu amor por ela, sua vontade de abandonar tudo, de deixar de lutar, de desistir da vida solitária para se apaixonar por aquele anjo.
Um anjo negro, infelizmente.
Evelyn estava morta, e não voltaria. Livre do Senhor do Inferno, sua pele coberta de tatuagens e adornos metálicos exibia os castigos daquela presença que a assolou por tanto tempo, anos felizes que passou ao lado do ceifador. Trevor sentia-se tolo por carregar aquele sentimento, mas era um homem, um humano e, como tal, nascera e morreria tolo.
Aquela não era a pessoa que conviveu com o psiquiatra, era apenas uma caixa vazia, uma alma liberta da prisão de Lúcifer, uma marionete do inferno. Por mais que não fosse a mesma pessoa, era ela ali, ao menos seu corpo, e isso impedia o ceifador de abandoná-la. Cultivou aquele corpo como se cultiva um animal empalhado, um hábito doentio e desprezível, sua única opção.
(Estou enlouquecendo.)
Acordou outra vez, já era dia. Sequer se lembrava de ter adormecido, mas assim eram todas as noites. Após o sono, sentia-se mais cansado, gastando suas energias para sobreviver a cada novo pesadelo com a filha bastarda e indesejada. Evitou a catástrofe da Terra, mas não a sua própria. Era a ruína de um homem, de um guerreiro.
De um herói.
(Herói?)
Fechou os olhos, mas não sabia se sonhava ou alucinava, ou talvez os dois. Talvez fosse real, era quase impossível diferenciar.
Aproximou-se do corpo de Evelyn, desejou-a outra vez. Lembrou-se de sua juventude, de seus movimentos, de sua sedução.
(Não era ela, Trevor! Era o demônio! Os prazeres proibidos são frutos do demônio em pessoa!)
E qual era a diferença? Era prazer, no final das contas. Era ela, Evelyn, tomada por um ser de outro mundo, de outro tempo. Mas era ela. Sua amada, sua esposa. A mãe de sua filha. Da cria que destruiria o mundo, do emissário do apocalipse. Do monstro que Trevor matara uma vez e aprisionara outra.
(Estou sonhando?)
Talvez fosse um sonho, talvez realidade. Difícil distinguir. Mas lá estava Evelyn, morta, cheirando a formol, lembrando um manequim de lojas de roupas. Inerte, de olhos fechados, de pernas unidas. Trevor acariciou suas pernas, suas coxas, sua virilha. Sentiu-se enrijecer, desejando um cadáver.
(Eu estou louco.)
Mas era um herói, não era?
(Sou um herói?)
Não era sua intenção, mas acabara por salvar o mundo, ou ao menos assim pensava. Impedira o caos da cria de Lúcifer, impedira o domínio do Senhor do Inferno.
(Impedi ou atrasei?)
Aquele demônio disse que poderia encontrar outro homem, outro ceifador, seduzi-lo como fez a Trevor, parir outra cria desnaturada para arrasar a vastidão da Terra. Poderia ser verdade, ou apenas um blefe, mas aquele era o diabo em pessoa. Não poderia duvidar.
(Como duvidar do demônio?)
Trevor se deitou sobre Evelyn. Beijou seus lábios gélidos, apalpou suas nádegas e seus seios murchos. Admirou as tatuagens, os transversais, o piercing em seus lábios. Estava tudo lá, conservado pelos produtos. O amor de Trevor, único e verdadeiro.
(Eu estou completamente louco.)
E estava. Delirava. Via Evelyn se levantar, correr de um lado para o outro, saltitar alegremente em sua não-vida. Sorria, abraçava-o, agradecia por toda a bondade que fizera por ela.
“Temos uma filha, Trevor!”
(Eu tenho uma filha?)
“Uma filha linda e inteligente!”
(Filha?)
Um demônio.
Trevor estava atirado no sofá de sua casa, a saliva espumada lhe escapava os lábios. Os olhos virados, os membros trêmulos, alucinava. Gritava, sorria, gemia, sequer entendia o que acontecia ao mundo ao seu redor. Caiu ao chão, rolando para os lados como um louco. Empoçou o carpete com sua saliva, tossiu sangue.
(Eu vou morrer?)
Era mesmo uma pergunta?
(Eu vou morrer.)
O mundo ao seu redor girava, subia e descia, explodia e se refazia outra vez.
Acordou, estava bem. Suado, sangrando, exausto, mas bem. Fora sua melhor noite de sono em um mês.
O corpo de Evelyn ainda estava lá. Decidiu enterrá-la. Uma cerimônia simplória, logo o cheiro artificial da conserva deixou sua casa. Limpou suas coisas, despediu-se do espelho da verdade que já não mais existia. A moradia estava novamente pronta para receber pacientes.
Postou-se à frente do espelho, estudando suas olheiras.
“Vou voltar a atender.”
Falava consigo mesmo. Estava realmente louco.
“Preciso ocupar a mente com alguma coisa. Vou voltar a atender alguns pacientes.”
Decidido, Trevor liberou sua agenda para novos nomes.
No dia seguinte, alguém bateu à sua porta. Não tinha horário marcado, mas ele não tinha nada a perder. Precisava se afastar das alucinações, do martírio de conviver com aquele demônio dentro de si.
(Será um paciente?)
Torceu para que fosse.
Abriu a porta.
“O senhor é o doutor Trevor Kraepelin?”
Estremeceu. Era uma linda mulher de olhos bicolores, um verde e um violeta, tatuagens ilustrando os braços magricelas. Encantadora, despejando seus longos cabelos negros de maneira deslumbrante, vestindo-se em tecidos delicados e macios.
Evelyn.
“Sim...”
Trevor mal conseguiu gaguejar.
“Pode me ajudar, doutor? Eu tenho um problema. Ouvi dizer que o senhor é o melhor da Alemanha.”
Emudeceu.
“Me desculpe a intromissão, mas não tive tempo de marcar um horário. Meu nome é...”
“Evelyn.”
A mulher se surpreendeu.
“Como sabia?”
“Intuição.”
“O senhor é realmente o melhor, doutor! Pode me ajudar?”

Ao longe, Lúcifer gargalhou.
Assistia a tudo num espelho exótico, sem detalhes ou adornos. Lá, via a dor das memórias de Trevor se confrontando, suas lembranças reagindo à visão de sua mais nova paciente.
Aquilo era excitante.
“Veja bem, meu caro ceifador, você não é um herói. Está preso em meu jogo, em meu mundo, até quando achar que devo. Pretendo me divertir com sua loucura, doutor, ver o quanto consegue sobreviver neste ciclo infinito. Depois disso, terei minha filha de volta. Nossa filha.”
Riu alto, mas parou de imediato.
Havia alguém além de Lúcifer.
Alguém maior do que Lúcifer.
“Está se divertindo, Senhor do Inferno?”
A voz fez o inferno tremer. Era grave e assustadora, ainda que carregada por uma ironia macabra.
“Não, meu mestre.”
“Não pretendo lhe conceder outra chance, lacaio. Portanto, não perca tempo com suas diversões desnecessárias. Ria o que tiver para rir. Depois disso, garanta-me o meu domínio.”
“Sim, mestre.”
Mas a resposta era vaga, pois o Senhor do Inferno estava novamente sozinho.
Lúcifer ofegou. Mesmo ele estava desacostumado àquela presença poderosa, sentia-se extasiar simplesmente pelo conhecimento daquela força. Livrou-se daquela sensação, voltou a observar Trevor.
O ceifador outra vez se entregava a Evelyn, pois assim eram os homens. Dispostos a errar incansáveis vezes, assistir aos próprios erros e, numa próxima tentativa, repetir todas as coisas da mesma maneira.
“Deleite-se nessa sensação, Trevor. Será sua última. Não restará mundo algum para viver a desgraça de seu amor. Resta sua insanidade, pois ela é combustível para o mal que carrego em meu interior. Para o mal que me governa, que me ordena.”
E apenas aquilo restava. Trevor se apoiava nos sonhos, mesmo nos pesadelos, para sobreviver a uma vida de mentiras. Restavam a insanidade, a loucura, os devaneios. No fim, sua vida era apenas aquilo: uma falsidade, uma enganação.
Um intenso delírio.

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