terça-feira, 3 de julho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 3 / Ato XVI


XVI

Trevor abriu a porta e encontrou uma mulher de lindos traços. Era pouco mais que uma garota, trajada no negro gótico incomum para sua região, provando seu estrangeirismo. O cabelo vermelho despencava por sobre os ombros delicados, em contraste com os olhos castanhos e desfocados.
“Eu preciso de ajuda, doutor.”
E desabou em lágrimas. Olheiras enormes marcavam seu rosto, mas ela não parecia preocupada em escondê-las com maquiagem pesada. Estava natural, uma única madeixa rosada lhe adornando a testa pálida, o restante de seus fios penteado com violência para trás, deixando muitos fios embaraçados ao seu redor.
“Por favor, entre.”
Era a mesma casa de tantos anos mais tarde, mas ainda modesta e despreparada. Atendia seus pacientes no que deveria ser a sala de estar, empurrando os móveis para os cantos e deixando, ao centro, uma poltrona inclinada próxima a uma mesa de anotações.
“Qual o seu nome, minha jovem?”
“Evelyn. Eu me chamo Evelyn Mathews.”
“É um prazer, Evelyn.”
“Gostaria de poder dizer o mesmo, doutor.”
Indicou o assento para sua nova paciente, despreocupado se havia horário marcado ou não. Não poderia negar ajuda a alguém naquela situação, sabia disso, e também não era tão requisitado como nos dias atuais. Aproveitou-se da brecha em sua agenda para acomodar aquela mulher que tanto parecia precisar de alguém que a escutasse.
“Sinta-se à vontade, senhorita Evelyn.”
“É impossível, doutor. Eu não consigo ficar à vontade, nunca mais vou conseguir. Minha vida está um caos, tudo parece ruir ao meu redor.”
“Acalme-se, senhorita. Vamos resolver os seus problemas.”
Enquanto Evelyn tentava se acomodar no conforto de seu assento, Trevor estudava seu corpo. Sem interesse ou malícia, pois não havia muito o quê se admirar em sua beleza estática, mas com razoável preocupação. Na palidez de sua tez, Trevor encontrou diversas marcas de cortes, cicatrizes de autoflagelo que provavam tentativas de suicídio, por vezes riscos rubros bem próximos aos pulsos.
Aquela mulher parecia realmente perturbada.
“Me desculpe pela ausência de uma apresentação mais educada, senhorita Evelyn. Meu nome é...”
“Trevor Kraepelin. Eu sei quem é o senhor, doutor. Sei que é o único que pode me ajudar.”
“Sinto-me lisonjeado com suas palavras.”
“Eu preciso de ajuda. Não aguento mais ficar sem dormir, não aguento mais escutar aquelas vozes. É um martírio, doutor, uma dor que eu não posso mais suportar! Preciso de sua ajuda!”
“Pode contar com todo meu apoio.”
Trevor preparou seu bloco de anotações, ligando o gravador de áudio a seguir.
“Vai gravar nossa conversa, doutor?”
“Apenas caso seja necessário relembrar alguma passagem mais tarde, senhorita Evelyn. Se desejar, posso apagar a gravação assim que você estiver melhor.”
“Não me importo com mais nada, se quer saber. Pode gravar, filmar, faça o que quiser. Eu só quero conseguir dormir uma noite  com tranquilidade, senhor Trevor.”
“Vamos alcançar sua paz juntos. Que tal conversarmos sem pressa, sem atropelarmos um ao outro? Me falou anteriormente sobre vozes, pelo que entendi. São essas vozes que não lhe deixam dormir?”
“Sim, elas estão na minha cabeça. Eu estou ficando louca, tenho certeza! Escuto gritos, lamúrias e zombarias, risadas sarcásticas e um pranto tenebroso. Tudo parece estar aqui dentro, ironizando minha loucura, tentando fugir das paredes de minha mente. Eu não aguento mais, doutor!”
“O que é certamente preocupante, senhorita Evelyn. O sono é fundamental para o ser humano. Este distúrbio pode estar lhe custando caro, aumentando cada vez mais o preço até que não lhe reste nada grandioso o suficiente para pagar tal valor. Sua saúde depende de seu esforço, pois apenas sua dedicação poderá livrá-la de tal sofrimento.”
Evelyn se precipitou da cadeira, agarrando os braços de Trevor com mãos gélidas e sem força.
“Eu faço qualquer coisa, doutor, qualquer coisa mesmo para me livrar dessas vozes! Tudo o que eu quero é poder descansar, poder fechar os olhos e saber que não terei de escutar todos esses fantasmas outra vez.”
“E o que esses fantasmas lhe dizem?”
“Várias coisas, mas grande parte é indecifrável. Eles choram e gritam e gemem, praguejando por suas mortes dolorosas, falam sobre seus pecados e seus sonhos. Eu não quero saber essas coisas, não mesmo! Quero apenas dormir!”
“Prometo que vai conseguir dormir em breve, senhorita. Agora, se me permite questionar, por que tem tantas cicatrizes em sua pele?”
Evelyn examinou os cortes em seu corpo, surpreendendo-se como se nunca os tivesse visto. Tentou esconder, puxar as roupas para baixo de maneira desesperada, mas era impossível acobertar todos. Desistiu, murchando em sua cadeira com uma vergonha admirável, não fosse a situação em que se encontrava.
“Eu não tinha outras escolhas, doutor. Nenhum médico conseguiu me ajudar antes. Tentei vários, muitos mesmo, mas nenhum deles tinha outra sugestão a não ser me internar, e não é isso o que eu quero. Alguns queriam me prender, consegue imaginar isso? Queriam me prender como uma criminosa! Eu não sou uma criminosa, senhor Kraepelin! Não sou uma assassina!”
Havia algo de estranho naquela mulher. Nenhum psiquiatra indicaria alguém à prisão sem um bom motivo.
“Acredito em você, senhorita Evelyn. Você não é uma criminosa, muito menos uma assassina, disso tenho certeza. Mas talvez estejamos pulando algum detalhe importante dessa história. Há quanto tempo escuta essas vozes estranhas?”
“Há meses, desde que... Desde que eu briguei com eles.”
“Com eles?”
“Meus pais. Eles não gostavam de mim.”
“Não gostavam?”
“Não admiravam meu estilo. Riam dos meus gostos, zombavam das minhas roupas. Achavam que eu era uma piada.”
“E agora não acham mais?”
“Não mais.”
“Conseguiu convencê-los?”
“Não. Eles estão mortos.”
Trevor se inquietou na cadeira. Terminou suas anotações, então abandonou o bloco. Não lhe seria útil naquela ocasião.
“E como eles morreram, senhorita Evelyn?”
Outra vez, aquela mulher de vestimentas enegrecidas desabou num choro doloroso, escondendo os olhos com o braço marcado pelas incontáveis tentativas de extinguir a própria vida.
“Doutor, foi horrível! Eu não tive culpa, eu juro que não tive culpa, mas não conseguia mais aguentá-los! Eles continuavam a gritar comigo, a zombar de mim, como todas as pessoas ao meu redor sempre fizeram! Eu não conseguia mais suportar, não conseguia mais ouvir! Cobri os ouvidos com as mãos, meu pai me forçou a escutar, puxou meus braços para trás.”
Soluçava com pesar enquanto desabafava para Trevor. Em sua cadeira, o ceifador entendia que aquelas palavras estavam presas há muito tempo, e agora escapavam como gorilas famintos.
“Prossiga.”
“Ele me machucou, eu gritei, mas ele não me soltava! Minha mãe viu tudo, mas ela era outra idiota. O que poderia fazer? Me ajudar? Não, diferente de uma mãe comum, ela apenas viu tudo, apontou e riu de mim! Aqueles filhos da mãe estavam lá, ironizando a própria filha! Apontavam e riam, como estranhos, como os malditos da minha escola fizeram durante anos.”
“E o que você fez, Evelyn?”
“Eu corri, doutor, corri para longe deles, mas eles me perseguiram. Morávamos em um prédio, no sétimo andar. Corri até a amurada, de onde gostava de assistir aos carros passando, onde eu me sentava para escrever poesias.”
Parou, de súbito, como se as palavras rasgassem sua garganta. Tentava segurá-las, guardar a verdade para si, mas Trevor era influente. Como um confidente, ou mesmo como um pai, Trevor deixou que uma de suas mãos tocasse os dedos delicados de Evelyn.
“Pode me contar tudo, senhorita. Não sou apenas um médico pago para lhe escutar. Não vou lhe mandar para um hospício, muito menos para uma prisão. Quero apenas ajudá-la, mas você precisa me contar tudo.”
Evelyn engoliu o choro.
“Eu empurrei meu pai, doutor. Empurrei-o e o assistir cair, seu rosto explodiu na calçada, quase atingiu uma velhinha que passava lá embaixo. Minha mãe correu para ver, não hesitei. Eu a empurrei também. Caíram ambos, os ossos não resistiram à queda. No fim, ainda que zombasse tanto de mim, eles também eram fracos. Também podiam morrer. É irônico, não?”
Um pequeno sorriso surgiu entre as lágrimas pesadas derramadas pela garota.
“Um pouco. É um caso complexo, senhorita Evelyn.”
“Desde então tenho escutado vozes, e elas não me deixam descansar. Nem mesmo uma noite, uma única noite, elas não se cansam jamais!”
“Imagino como é ruim passar por tudo isso. Mas não se preocupe. Eu prometo que vou lhe ajudar.”
“Obrigado, doutor.”
“Não precisa me agradecer, Evelyn.”
Não havia mais dúvidas: as vozes eram um assombro, não uma loucura convencional. Trevor tinha de ser psiquiatra, mas se agisse como um, indicaria Evelyn a um manicômio, onde seria internada para se esquecer do trauma de sua vida. Acima de tudo, naquele momento, tinha de agir como ceifador, ou não seria capaz de livrar aquela mulher de seus problemas.

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