domingo, 29 de julho de 2012

Conto - Sozinho no Escuro


Sozinho no Escuro

Aquele tinha sido um dia exaustivo, numa semana exaustiva de um mês exaustivo.
Ali estava eu, abrindo a porta de minha casa para o merecido repouso, disposto a me livrar dos problemas com um banho quente e uma boa noite de sono.
Já em meu quarto, joguei as tralhas que carregava no chão, tirei a camiseta e me postei sobre a cama, bagunçando o lençol carinhosamente ajeitado por minha mãe. Sim, eu ainda morava com meus pais, na época. Era uma casa boa, uma família interessante, por mais que o pai tivera sido substituído por um padrasto e eu pouco o visse. De qualquer modo, a cama estava arrumada, e por ora isso bastava.
Permiti-me suspirar, aliviado por estar ali, e não de frente a todos os meus problemas. Eu precisava de um banho, precisava mesmo, mas a cama estava tão boa. Olhei o relógio no pulso, ele marcava 18h40. Minha mãe chegaria mais tarde, longe das 20h. Eu tinha um bom tempo antes disso. Resolvi esperar ali, assistir uma televisão e esperar até que a coragem novamente me abordasse.
O telejornal que me recepcionou falava sobre morte e violência, e eu me perguntei se não era o mesmo programa do dia anterior, e do anterior ao anterior, pois todas as noites era a mesma coisa. Mudei o canal, vi a mídia alienar, carregar os telespectadores com suas notícias macabras e então aliciá-los num momento de fraqueza súbita com suas novelas emporcalhadas de situações desprezíveis. Eu odiava aquilo tudo, mas não tinha tantas opções em meu pacote de tv a cabo. Tive de me contentar com a dublagem bizarra de um filme trash.
Foi quando a luz apagou.
Era um blecaute, imaginei, talvez somente ali, em minha casa. Olhei pela janela e constatei que não, era uma falta de luz um pouco agravada, agarrando parcialmente meu bairro. Do segundo andar, era fácil entender que as proximidades ainda tinham iluminação, o que resumia o problema como simples. Logo ela estaria de volta, tive certeza. Teria que esperar pelo meu banho quente.
Dei de ombros e tirei meu celular do bolso, usando sua tela de led como única fonte de iluminação. Minha gata estava ali, lambendo meus pés. Ela não tinha medo do escuro. Eu também não, obviamente, mas ela enxergava muito melhor do que eu. A gatinha ronronou, esfregou-se em me tornozelo, esticou-se por segundos ao meu lado, brincalhona, e então se foi, correndo pelos corredores.
O celular apitou, anunciando que a bateria estava baixa.
Eu sempre fui um pouco impaciente, parte pela hiperatividade, parte pela velocidade irreparável dos acontecimentos do dia-a-dia. Sendo assim, precisava arrumar algo para passar o tempo, algo que me sustentasse ligado diante daquela escuridão.
Resolvi ler as minhas mensagens de celular.
Abri a primeira, e ela me dizia sobre uma garota que conhecera há alguns meses, com a qual não tive oportunidade de me relacionar como deveria. Ela era bonita e agradável, sempre cheirando a flores. Uma amiga. Talvez ela quisesse mais do que isso, mas eu tinha medo de arriscar. No escuro e no silêncio, pensava no quão grandioso um pseudo-relacionamento com tal pessoa poderia estar naquele instante, mas ele não existia, e possivelmente não existiria durante a vida toda, graças ao medo da perda e do vazio. Como amiga, ela sempre estava ali, sempre estaria. De resto, não conseguia imaginar nada.
Algo estalou em meu apartamento. Apontei a luz do celular, até então voltada para meu rosto, para a porta de meu quarto, iluminando parcialmente o corredor que me guiaria até a cozinha. Não havia nada.
Voltei à posição original e fui para a próxima mensagem.
Ela era de uma antiga pretendente. Anos antes, senti algo muito forte por ela. É estranho tentar compreender os sentimentos, não é? Eu a amei, ou sei lá, o mais perto disso que minha mente me permitiu chegar. Depois, quando as coisas deram errado, tudo escorreu pelos dedos, vazando pelas frestas como água. Todas as promessas se perderam em novos lábios, novos abraços, e o tempo passou como passaria de qualquer forma. O relógio não espera por ninguém. Eu percebi que não gostava tanto dela assim. Percebi que deixei de amá-la com facilidade. Agora, quando a reencontrei, percebi que talvez estivesse enganado. Eu notei que nunca antes senti nada por aquela pessoa. Agora, no entanto, o coração palpitava em sua presença. Isso era um bom sinal, ou uma pequena loucura de reencontro, descontrolando o entendimento do teatro iniciado pelos pensamentos?
Ouvi um barulho estranho, outra vez.
Apontei a luz para o corredor, e lá estava a minha gata. Ela tinha um rato morto na boca. O sangue escorria por seu pelo branco, manchando seu rosto e seus bigodes. Eu a xinguei, e ela correu, deixando o cadáver do animalzinho ali, à frente de meu quarto.
Tive a impressão de escutar passos, mas sempre me confundia quanto à distância dos ruídos. Eles poderiam estar ali, ao meu lado, ao mesmo tempo em que poderiam estar no apartamento de baixo, no vizinho, no prédio da frente.
Os pelos de meu braço eriçaram.
Voltei os olhos para o celular, li a terceira mensagem.
Era de um amigo. Um ex-amigo, quem sabe. Isso realmente existe? Ele me ofendia. Tomara as dores de um relacionamento que terminou de maneira errônea, comprava uma briga que não existia. Eu nunca me deixo levar pela irritação. Nunca levantei a voz para ninguém que desmerecesse, raramente o faço para quem merece, na verdade. Fico ali, na minha, calmo como sempre. Mas há tantas mentiras quanto pessoas, e elas afastam-nos de quem é volúvel aos boatos. Mentiras se espalham como veneno, saídas da boca de pessoas sujas, da imundice repugnante de víboras com pernas e braços, serpentes que podem sorrir e enganar. Elas não matam, mas ferem por dentro, marcam sem cicatrizar. Assim eu me indagava sobre o provável ex-amigo, sobre a vida que ficara para trás, sobre tudo o que passamos juntos e, ao fim, tentava acreditar que um amigo não se perde, e que se o estava perdendo, talvez ele nunca antes fora um amigo de verdade.
Ouvi passos, e dessa vez tive certeza de que estavam ali, bem pertos.
Mirei a luz para o corredor. A gata não estava lá.
Também não estava lá o rato.
O que existe de tão peculiar na escuridão? Aquilo que nos faz acreditar ver coisas, ouvir barulhos, que nos faz pensar no improvável e no inacreditável. Eu adorava filmes de terror, mas estar na cena de um deles não me era agradável. Ali, no escuro, eu pensava em minha vida, no que fiz e no que hei de fazer, e me sentia vazio. Não estava vazio, é claro, mas assim me sentia, como uma bexiga furada, deixando todos os temores escaparem enquanto eu murchava no lugar, incapaz, fraco e infantil. Ri da incompetência de meus pensamentos, recompondo-me. Quanta bobeira. Aquilo era apenas uma falta de luz, nada mais. Não havia ninguém ali.
Algo passou nas sombras, oscilando a luz de meu celular. O tempo do display chegou ao fim, e ela se apagou. Acionei o botão novamente, a luz retornou, não havia nada.
A sensação era estranha. Eu me sentia vazio, e agora, acompanhado. Mirei as bordas da cama, ninguém. Mirei o teto, a janela cerrada, o computador e a televisão desligados, nada. O corredor, outra vez, sem sinal da gata e do rato. Ela provavelmente o pegou, arrastando-o numa brincadeira cuja finalidade era indizível. Ela o levou, tinha sua companhia, e eu fiquei sozinho, sozinho no escuro, sem nada de útil para pensar.
Mudei para a quarta mensagem, mas ela se fechou antes que eu pudesse fazer algo.
A bateria chegara ao fim.
Ouvi passos, novamente. Um miado, distante, e o barulho das garras de meu animal de estimação. Ela faria uma bagunça com o sangue do rato, eu sabia. Minha mãe ficaria brava e a xingaria, e ela se esconderia embaixo da cama, e eu riria de algo cuja graça inexiste. Por que estava pensando naquilo tudo? Era o escuro, claro. O escuro ofusca os pensamentos. Eu deveria pensar nas provas da semana seguinte, nos resultados da semana anterior, mas não, pensava no rato e na gata, em minha mãe e suas reações.
Sacudi o rosto, ainda ouvindo barulhos. Eu estava cansado, era isso. No completo escuro em que estava, sequer me arriscava a levantar, temeroso de acertar algo das proximidades. Fiquei ali, tentando refletir se deveria arriscar algo com a amizade diferenciada que encontrara, tentando encontrar defeitos num relacionamento que terminou sem razão, buscando um meio de me vingar daqueles que espalhavam calúnias sobre minha pessoa, por mais que repugnasse a vingança. Esqueci das provas, esqueci da cama, concentrei-me no escuro. Quantos problemas encontraria ali, no silêncio? Quantos gritos calados me fariam tremer e arrepiar?
Não sabia se meus olhos estavam abertos ou fechados.
Passos.
Olhei para os lados, a visão era a mesma: escuro. Luzes apagadas, noite sem estrela, olhos abertos debaixo de um cobertor pesado. Escuro, não mais, não menos. Pisquei, forcei os olhos abertos, senti a cabeça doer. Cocei o cabelo, escutei o barulho das unhas nos fios.
E passos, mais passos.
Um miado, então silêncio. Um carro buzinou lá embaixo, acelerando. A rua ainda existia. Eu havia me esquecido. Só me lembrava do escuro.
Alguém gritou algo, um som abafado que trespassou minhas janelas. Era outra pessoa, não eu. Outras pessoas também existiam. Eu não era o último homem, não era sozinho. Mas estava sozinho. Sozinho no escuro, no silêncio, sozinho numa noite emudecida, sob uma coberta negra e vazia, uma lacuna da inexistência. Por quanto tempo ficaria assim, calado na vontade de gritar?
Abri a boca, tentei falar algo, a voz me falhou, ou talvez tenha saído e eu não a escutei.
Outros passos.
Algo caiu na cozinha, o metal tilintou no chão duas, três vezes, estacou. Uma faca, talvez? Um garfo? Uma panela pendurada para secar? Era minha gata, claro. Ela sempre fora bagunceira. Ela sempre fora complicada, sempre criou problemas.
Ela estava ali, ao meu lado, deitada. O rato morto estava em sua boca, sobre o lençol limpo de minha cama.
Ela o mastigava.
Coloquei-a no chão com seu novo brinquedo, ela correu para longe, sumiu de minha vista, e tudo era escuro outra vez. Encostei-me à parede, o frio me arrepiou a espinha. O silêncio era uma música, e ela cantava sem alegria, cantava de maneira tediosa e branda, como um sussurro melódico, uma sinfonia cadavérica. Lembrava-me a trilha sonora de um cemitério, por mais que isso soasse bizarro de se pensar.
Olhei para o lado, a gata estava ali outra vez. O rato não estava mais com ela.
A porta de meu quarto sacudiu, como se empurrada. O metal rangeu conforme a madeira deslizou no chão.
Havia alguém ali.
Eu me peguei tremendo. Ela estava ali, aquela pessoa. Eu pude ver a sua sombra. Eu pude sentir sua respiração, pude ouvir seus dedos estalando. Sabia que ela estava ali. Eu poderia me preocupar com a minha vida, com a minha segurança.
Ao invés disso, preocupava-me com as palavras que saltaram até a ponta de minha língua e, pelo medo, foram engolidas outra vez, engolidas para nunca mais se aventurarem.
O Eu te Amo, o Vá Embora, o Fique Comigo, tudo me passava pela cabeça, tudo girava num turbilhão. Sentia-me incapaz de resolver qualquer problema, pois problema algum escaparia da escuridão. Eu estava ali, no escuro. Não mais sozinho.
Não mais seguro.
Passos.
Ela se aproximava. Eu não sabia o que fazer. Queria gritar, voz não havia. Apertei o celular algumas vezes, a bateria não faria milagre algum. Eu me escorei na parede. Respirei, uma respiração pesada, pois só então percebi que segurava o ar dentro de mim. A respiração que tocou meu rosto era outra. Tão quente, tão manhosa, tão serena.
Você está bem?
Eu abri os olhos, o escuro não estava mais lá. Minha mãe mexia em meus cabelos, bem próxima. Percebi que suava frio.
Respondi que sim, que estava, e ela me disse que a luz voltara algum tempo atrás. Estava tudo bem agora. Tudo estava certo, e eu tinha a luz, tinha o mundo outra vez. Liguei a televisão, deixei o som me acalmar outra vez.
Tudo estava certo. Eu não tinha motivos para ter medo. Voltava a pensar em minhas provas, nas notas e nos resultados, deixando de lado a sorte no amor, as mentiras, as intrigas, a covardia dos infames, o medo de arriscar e errar. Pensar em tudo aquilo não me levaria a lugar nenhum.
Desliguei a televisão, apaguei as luzes e parti para meu banho. No caminho, a gata afagou minha perna, e eu a acariciei. Ela parecia estar com saudades. Brincou algum tempo antes que eu me fechasse no box.
Eu ri de meu receio pelo escuro. Nunca antes me senti daquela maneira. Era uma grande bobeira, não era?
Sim, eu era um grande idiota.
Contei a minha mãe, horas mais tarde, que a nossa gata caçara um rato em sua ausência, e ela me perguntou em que dia isso aconteceu. Que estranho. Acontecera agora há pouco! Procurei pela casa, mas não encontrei sinal de rato algum. A gata não parecia ter sangue nos pelos e nos bigodes, como vira anteriormente.
Resolvi me deitar, apagar as luzes e fechar a porta.
Sozinho no escuro, conseguia pensar em meus próprios problemas, sem ter de recordar que minha gata estava no veterinário com a minha mãe, e não ao meu lado, não caçando ratos, não ronronando em minha perna.

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