segunda-feira, 16 de julho de 2012

Light Novel - Desejos de Juno - Reiseziel

Ei, povo!
Trazendo agora mais um capítulo da Light Novel Desejos de Juno, prosseguindo com a terceira LN do blog! Lembrando que os atos de Desejos de Juno são bem maiores que os de costume, portanto não se assustem com as postagens imensas. Espero que gostem, e não deixem de comentar.


Reiseziel

“Onde eu estou?”
Dylan olhou ao redor, tudo era branco e limpo. Estava sozinho no nada, no vazio, sem som ou cheiro ou cor.
Havia uma flor.
Podia jurar que ela não estava ali alguns segundos atrás, mas que diferença faria? Aproximou-se, ajoelhou-se perante ela, sentiu sua fragrância. Tocou-a, tirou-a do chão, acariciou-a com os dedos.
“Assim são os homens, não é?”
A voz vinha do nada, assim como de todos os lugares. Era familiar mas, naquele momento, Dylan não conseguiu definir suas recordações.
“Quem está aí?”
“Por vezes, sequer admiram algo, mas destroem qualquer coisa para que possam continuar a viver ou, ao menos, a sentir-se vivos. De que lhe adiantou privar esta flor de sua vida, Dylan? Isto fez de você mais forte? Deu-lhe esperanças de uma nova vida?”
A flor em suas mãos murchou até desaparecer.
“Onde eu estou?”
“Este lugar não tem um nome. Acredito que sequer possamos chamá-lo de lugar. Não existe, nunca existiu, nunca existirá. Mas você não está aqui, assim como eu não estou. O que vaga aqui é seu espírito, unido à minha força. Você está numa cama de hospital, sobrevivendo.”
“Do que está falando?”
“De assuntos sem importância, obviamente. Temos algo a tratar. Todo o restante é irrelevante. Lembra-se de mim, Dylan?”
Talvez não se lembrasse, mas em sua última luta, se pegou pensando naquele dia. Aquele dia de seu passado em que enfrentara Julian, o valentão que sempre o incomodou na escola, em que abusou de uma força que não era sua para mostrar-se poderoso, para amedrontar aquele que sempre o amedrontou. Sabia que aquela voz era familiar, ainda que, num primeiro momento, não tivesse sido capaz de se recordar. Era ela, a voz que oferecera poder, que oferecera vingança. A voz que o ajudou na infância, que o fez despertar um dom que usara durante toda sua vida.
“Sim, eu me lembro. Mas não sei se há algo para ser lembrado. Você existe, realmente?”
Escutou uma risada.
“Eu existo, realmente. Seu mundo é diferente do meu, Dylan, por isso não tenho uma forma física. Sou incapaz de me materializar em sua realidade, pois assim são as normas do universo. Talvez seja uma vantagem, talvez um problema. Talvez uma qualidade, talvez um defeito. O que realmente importa é que eu existo, ainda que você não possa me ver.”
“Eu posso te escutar, em minha mente. Pelo que me lembre, você também pode escutar meus pensamentos.”
O tempo passara desde aquele dia, mas Dylan nunca se esqueceu. Provavelmente ninguém seria capaz de esquecer uma experiência como aquela.
“Sim, nos comunicamos através de pensamentos. Logicamente, somente você poderá me escutar, portanto, tome cuidado. As pessoas ao seu redor podem pensar que você está enlouquecendo.”
Dylan sorriu.
“Eu mesmo estou pensando isso agora.”
“O que não é de todo incomum. Os seus tendem a fraquejar perante aquilo que desconhecem.”
“Você não é humano?”
“Não.”
“O que você é, então?”
“Somos muitas coisas e, assim, temos vários nomes. Em suma, somos conhecidos como Uberein.”
“Uberein.”
“Exato. Ainda assim, cada um de nós tem um nome, assim como vocês têm os seus.”
“E qual é o seu nome?”
“Oriol.”
“É um nome estranho.”
“Agradeço pela cordialidade. Não estou aqui para que conversemos sobre nomes e suas peculiaridades, Dylan. Tenho assuntos mais importantes para tratar com você.”
“Ah, claro. Por exemplo?”
O branco se deformou, ganhou cores, tons e formas. Era um corredor metálico, repleto de janelas acorrentadas. Ao longe, Dylan avistou uma porta.
“Caminhe até a porta.”
Aquilo era estranho, mas Dylan obedeceu. Não tinha medo. Desde sua última surra, nunca mais teve medo. Era forte, sabia se virar. Tinha um dom. Por que teria medo de alguma coisa?
Mas Dylan era humano, e os homens temem aquilo que desconhecem. Portanto, ainda que seu temperamento não o permitisse enxergar, Dylan temia aquela situação, pois não conseguia entendê-la.
Alcançou a porta e a abriu. Era um cômodo apertado e claustrofóbico, mobiliado apenas por uma cadeira, próxima a uma espécie de confessionário. Dylan se acomodou, encostou-se à madeira de um balcão curto, tentou ver além, era impossível. Um véu escuro protegia a única lacuna na madeira, como de praxe.
“Não espera que eu me confesse, não é?”
Oriol riu.
“Fique tranquilo. Não admiramos religião alguma. Apenas se acomode. Vamos conversar sobre outros assuntos.”
“Ande logo.”
Oriol estava lá, do outro lado. Era possível ouvi-lo respirar, sentir sua presença. Dylan não ousou tocar no véu.
“Naquele dia, eu lhe ofereci um dom, Dylan. Lhe ofereci um auxílio que coisa alguma no mundo seria capaz de oferecer. A igreja, os amigos, os relacionamentos e todas estas coisas poderosas que existem no universo, nada disso poderia lhe dar o que eu lhe dei. Você sabe disso. Você tem um poder, Dylan, algo que poucas pessoas têm.”
“E?”
“Com este dom que lhe presenteei, você conquistou fama e fortuna, estou certo? Naquele momento, cheguei a acreditar que seria diferente, mas os homens são assim. Ambiciosos, metidos a mudar o mundo. Pois bem, não me interessa o que fez, me interessa o que fará de agora em diante.”
“Não entendo.”
“Eu estive lá, quando você precisou. Agora é a minha vez de pedir, Dylan. Preciso de você.”
Dylan ergueu as sobrancelhas.
“Tá, tudo bem. Vamos ver se eu entendi. Você é uma voz que fala comigo desde a infância, e que me ofereceu um poder que homem algum seria capaz de ter. Sem que eu pedisse, vale ressaltar.”
“Eu lhe ofereci, Dylan. Você aceitou.”
“Não me lembro de ter pedido nada a voz alguma.”
“Mas eu me lembro de você ter aceitado.”
E, como uma ordem, as palavras de Oriol se tornaram lembranças, e Dylan se viu, mediante uma dor de cabeça terrível, aceitando a ajuda oferecida pela voz, enquanto era humilhado pelo garoto que destruíra sua infância.
As memórias se foram. Dylan caiu de joelhos ao chão, derrubou a cadeira para trás.
“O que foi isso?”
“Não evite nosso principal assunto. Preciso de você.”
“O que você quer comigo?”
“Naquele dia, fizemos um acordo. Eu dei o que você queria, com a promessa de que, quando chegasse a hora, você me desse o que fosse preciso. Este momento chegou. Preciso que você lute ao meu lado, Dylan.”
“Lutar?” Riu sem graça. “Eu luto quase todos os dias, Oriol. Quando não estou lutando, estou treinando para as próximas batalhas. Quero ser um campeão mundial, quero ser o melhor de todos.”
“Suas lutas são patéticas, Dylan. Tenho certeza de que sabe que não seria nada sem nosso acordo. Sem o poder que lhe dei, você não venceria luta alguma.”
“Como ousa?”
“A batalha que necessita de você é outra. Não essas lutas banais, finalizadas quando um oponente está inconsciente. Não se decide o destino com pontuações. Minha batalha é outra, Dylan, muito diferente do que você tem em mente. Lutaremos por algo maior, por um objetivo. Lutaremos por nossos desejos, por nossas vontades.”
“Eu luto por meus desejos, Oriol. Luto por meu próprio dinheiro, pelo bem-estar de Rachel. Vamos nos casar, sabia? Eu e ela seremos noivos após a luta desta noite. Ela vai se casar com o campeão mundial, e então seremos muito felizes. Talvez eu nem precise mais lutar! Por que deveria te ouvir?”
“A situação é diferente. Você não tem escolha.”
“Não tenho? E se eu me recusar?”
“Nós temos um acordo, Dylan. Sua alma é minha.”
“Ah, claro, esqueci que você é o Senhor do Inferno, me desculpe. Fala sério, você sequer tem coragem para aparecer e...”
Por um momento, um simples instante de segundo, o véu se moveu, soprado por uma brisa escura e fétida. Lá, Dylan pôde ver algo existir, algo que jamais imaginou. Encontrou seus olhos, e apenas eles foram o suficiente para assustá-lo como fariam a uma garotinha, o amarelo fosco de suas pupilas destronando o campeão de Armor Boxing de Ylenia.
“Mas que merda!”
“Não sou capaz de usar minha forma em seu mundo, mas isso não quer dizer que eu não a possua. Acredite em mim, garoto: sou real. Não sou uma simples voz lhe oferecendo uma brincadeira. Estou apenas te lembrando do acordo feito anos atrás. Está na hora de cumprir sua parte.”
“Eu prometi a Rachel que ficaria um tempo sem lutar. Não posso desapontá-la desse modo.”
Oriol suspirou.
“Você não entende o que aconteceu, não é?”
“Do que está falando?”
“Ainda não entendeu o que está acontecendo com você. Aquela noite já terminou, Dylan. A batalha já começou. Você não está num ringue, não está enfrentando o campeão de Abigail. Você está num hospital, em coma, prestes a morrer. Os médicos não sabem mais o que fazer, seu estado  parece irrecuperável.”
Dylan zombou.
“Quer mesmo que eu acredite nesta baboseira toda? Eu devo estar ficando louco. Você não existe, Oriol! Como eu pude criar todo esse diálogo em minha mente, nunca fui bom em inventar nada! Até mesmo dei um nome a este personagem de minhas alucinações! Talvez seja hora de parar de lutar, realmente. Acho que já levei golpes demais na cabeça.”
“Não acredita em mim, não é? Farei do seu jeito. Vou te dar a segunda chance que precisa. Um aviso: você vai sofrer ao despertar. Os sentimentos de um homem são fáceis de ruir. Supere. Sempre há uma solução onde não conseguimos enxergar.”
Dylan deu as costas a Oriol, preparado para deixar o cômodo.
“Como eu faço para sair daqui?”
“Pense em minhas palavras, garoto. Você terá de lutar, de uma maneira ou de outra. Sua alma me pertence, temos um acordo. Isto, entretanto, pode ser vantajoso para você. Abra seus olhos, retorne à sua vida. Conversaremos outra vez, em seu mundo.”
E tudo ficou branco novamente, então escureceu, sem aviso. Dylan viu seu corpo ser tragado pelas sombras, até que nada mais restasse de sua armadura ou sua pele.

***

Allana sentiu o corpo todo dolorido.
Coçou os olhos, mas não soube definir onde estava. Era noite, mas provavelmente não a mesma noite na qual fechara os olhos. Quanto tempo havia se passado? Onde ela estava?
Levantou-se, imaginando estar deitada em sua cama, mas era rígido e desconfortável. Livre da visão turva, Allana viu o céu, notou que estava próximo. Olhou à frente, viu o Mar Celeste, o mesmo mar azul que separava Ylenia de outras cidades-nação, como Mireia e Naara. Olhou para baixo, e só então percebeu a altura a que estava. Gritou.
“Ninguém vai te escutar aqui, Allana.”
A voz. Aquela mesma voz de tantos anos atrás. Estava lá, atrás de seus cabelos castanhos, dentro de sua mente. Era familiar.
“Onde eu estou?”
“Acima da Estátua de Adriel.”
Era uma larga construção humanoide em homenagem ao herói de Ylenia que, muito tempo antes, enfrentou os perigos da guerra em nome da cidade-nação.
“Como eu vim parar aqui?”
“Isto não é importante. Se estivesse no chão no momento da catástrofe, seria pior.”
“Catástrofe?”
“Não consegue perceber, Allana?”
Conseguiu. Na noite anterior, vira a lua chorar. Sentiu uma sensação estranha, mas acreditou se tratar de um pesadelo, uma brincadeira de seu sono. Estava errada. Era real, e a lágrima da lua explodiu contra Ylenia, demarcando grande parte da cidade com um abismo.
“O que aconteceu aqui?!”
Estava surpresa, tudo parecia irreal. O Estádio Central de Ylenia, onde tantas pessoas estavam concentradas para assistir à grande final do Armor Boxing, transformara-se em ruínas. Grande parte dos prédios que o circundavam tornaram-se nada além de poeira, destroços e lembranças.
“Começou.”
“Começou?”
“Sim. Está na hora de lutarmos. Agora, você tem a chance de consertar tudo.”
Allana pareceu surpresa.
“Juno voltou, Liam?”
“Ela está entre nós outra vez. É a nossa chance, Allana. É a sua chance de reparar os erros.”
“Não somos os únicos, não é?”
“Há muitos, dessa vez, posso senti-los. Estão espalhados, despertando, tornando-se Vongeist. Temos de completar nosso acordo, irmãzinha. Temos de fazer nosso Reiseziel.”
“Não perca mais tempo, Liam, comece agora mesmo! Não podemos ficar para trás de modo algum!”
Liam sorriu.
“Adoro sua vontade, irmãzinha.”

***

Dylan abriu os olhos.
Havia máquinas em toda parte, assim como aparelhos de respiração presos ao seu rosto.
Algo apitou.
“Ele despertou!”
Os médicos anunciaram assim que as máquinas alertaram sobre o retorno de Dylan. Judith, a tia que o acolhera após a morte dos pais, estava lá, ao seu lado, sempre prestativa. Dylan sentiu-se feliz ao vê-la, ainda que se sentisse um fardo para a velha. Não bastasse ver seu próprio marido morrer em um hospital, Judith agora tinha de acompanhá-lo em coma, o que, provavelmente, era uma grande tortura para ela.
“Tia.”
“Não fale! Você acabou de se recuperar, precisa de repouso. Oh meu deus, Dylan, eu estava tão preocupada! Os médicos já estavam desistindo, ninguém conseguia apontar o que tinha acontecido a você!”
“Obrigado pela companhia, tia, você é muito importante.”
“Não me agradeça, eu simplesmente precisava estar aqui, ao seu lado, até que estivesse completamente recuperado.”
“Tia, o que aconteceu?” Dylan viu os olhos da mulher estreitarem, tomado por lágrimas. “Eu preciso saber o que aconteceu!” Olhou ao redor, procurou por Rachel, ela não estava lá. Nem mesmo Victor estava presente.
“Dylan, eu quero que saiba que tem de ser forte. Você precisa suportar o que eu tenho para dizer, por mais duro que seja. Acha que está pronto para escutar a resposta de suas perguntas, meu filho?”
Os olhos de Dylan marejaram, mas ele fez que sim.
“O Estádio Central de Ylenia desmoronou durante sua luta, querido. Você estava vencendo, eu acompanhei na televisão, você seria o campeão!”
“Tia, onde estão Rachel e Victor?”
Judith engoliu em seco.
“Pouca gente sobreviveu, Dylan. Você não está sozinho, eu sempre estarei aqui! Você vai se recuperar, farei o meu possível, vai voltar aos ringues em breve, mas...”
“Eles estão mortos.”
Judith soluçou.
“Sim, Dylan. Rachel e Victor estão mortos.”
Não era uma pergunta, mas ouvir aquilo de sua tia confirmou o martírio que espremia o coração de Dylan. Em três palavras, o jovem viu desmoronar toda a sua vida, seus sonhos, sua vontade.
Rachel estava morta, e ele sequer a pedira em casamento. Os planos desabaram, perdidos como gotas de chuva num maremoto, a vida toda ruiu junto daquele estádio. Mesmo Victor, o treinador que mostrara a Dylan o verdadeiro significado de força de vontade, o mais resistente dentre os homens conhecidos pelo jovem, estava morto agora. Sua sabedoria, seus ensinamentos, tudo fora apagado pelos destroços de uma construção amaldiçoada.
Dylan se deixou chorar como uma criança.
Sem sua amada e seu mestre, era pouco mais do que um bebê.

***

Anoiteceu.
Com a noite, vieram as sombras. Os primeiros Vongeist começavam suas caçadas, todos em busca de um desejo impossível de se realizar.
Alguns não eram Vongeist.
Havia um homem caminhando nas calçadas. Arrastava os pés no cimento, sem se preocupar com o ruído incômodo que produziam. Vestia-se num sobretudo largo, e mesmo este parecia menor do que seu corpo, ao menos do que suas costas. Alguma coisa se movia ali, como uma corcunda viva, um membro diferente.
Assoviava uma música lenta.
“Será que você poderia parar de fazer barulho?”
Era um morador de rua, deitado sobre uma cama improvisada no papelão. O velho cheirava a álcool, a barba e o cabelo eram desarrumados. Parecia recém-desperto de um longo sono.
“Como disse?”
“Disse se você pode parar de fazer barulho, estou tentando dormir!”
“Ah, claro. Deseja apenas dormir, não é?”
“É sim, será que é possível?”
O homem sorriu, malicioso.
“Claro. Vou lhe ajudar.”
Aproximou-se do mendigo com velocidade, agarrou-o com uma das mãos, arrastou-o para um beco escuro entre dois prédios. Jogado a uma das paredes, o velho tentava se levantar, ainda zonzo pela bebida. Temia pelo maltrato dos jovens, uma notícia comumente mostrada na mídia, mas este seria o menor de seus males.
“O que devo fazer?”
“Não precisa ter medo, meu senhor, não vou me aproveitar de você. Só vou te ajudar com aquilo que me pediu. Você quer dormir, não é? Quer fechar os olhos e descansar, estou certo? Acalme-se. Vou providenciar para que feche os olhos como nunca fez antes.”
Abrindo os braços, o homem retirou o sobretudo, deixou que caísse ao solo. As costas eram comuns, mas havia algo a mais. Um membro extra nascia de sua cintura, curvando-se acima de sua cabeça de maneira nauseante, terminando em um ferrão afiado e gosmento.
Como um escorpião.
O velho gritou, mas já era tarde. O ferrão trespassou sua carne e seus ossos, despejou veneno em seu corpo até que transbordasse de sua boca. Então recuou, enrolando-se até desaparecer novamente sob a vestimenta.
“Infelizmente, não posso garantir que vá abri-los outra vez.”
Sorriu de sua própria ironia.
“Você não deveria estar perdendo tempo com esse tipo de gente, Ioritz.”
A voz veio de cima, sem aviso, assustaria qualquer pessoa despreparada, mas Ioritz estava sempre atento. Como um escorpião, vagaroso e destemido, sempre preparado para o bote que traria um fim à vida de suas vítimas.
“Quanto tempo faz, Âmbar?”
Uma mulher de cachos dourados e vestes pomposas surgiu, como se saída de uma parede. Suas unhas eram enormes e amareladas, assim como os caninos avantajados de seu sorriso.
“O suficiente. Juno está de volta.”
“Acha que não sei?”
“Estou apenas dividindo a felicidade.”
Riram.
“Talvez seja possível, desta vez”, ela continuou. “Podemos conseguir. Podemos encontrá-la. Tudo ficaria bem outra vez. Tudo ficaria perfeito.”
Ioritz a abraçou. A cauda atrás de si se movia, excitada. Sedenta.
“Juno será nossa, Âmbar. Ninguém poderá nos impedir.”

***

Judith partira para sua casa, Dylan passaria outra noite no hospital. Estava se recuperando rapidamente, logo poderia sair, mas não sem antes realizar novos exames. Recebeu uma dose de antidepressivos e calmantes, e mesmo estes não foram suficientes para atordoá-lo. O sofrimento era uma agulha, uma dor aguda que sempre o despertava, por mais que o cansaço ordenasse que fechasse os olhos. Dylan agradecia por não conseguir dormir. Tinha medo dos pesadelos que poderiam assolá-lo.
“A vida é uma batalha árdua, não é?”
Era Oriol. Sem aviso, sem forma, sem bater na porta antes de entrar. Era como se estivesse lá, desde sempre, esperando apenas que os sentimentos de Dylan se acalmassem, que sua mente voltasse a funcionar.
“Saia daqui.”
“Não sairei. Vai se atirar às traças, esperando que o tempo se encarregue de livrá-lo deste sofrimento surreal? Vai se suicidar, esgotando assim a carreira de campeão de Ylenia, de guerreiro vitorioso, que conquistou no Armor Boxing? É assim que pretende terminar a sua vida, Dylan?”
“Vá se foder, Oriol. Você não existe, não é nada. Não preciso me preocupar em responder às suas perguntas.”
“Continue pensando que eu não existo, enquanto tenho sua alma em mãos. Você me deve um acordo. Não há como fugir disto.”
“E se eu me negar?”
“Sofrerá um destino pior do que a morte.”
“Como se me importasse com isso.”
“Sabe, Dylan, como disse anteriormente, esta batalha é diferente daquelas que você está acostumado. É uma luta perigosa, uma guerra de virtudes, repleta de recompensas. Eu preciso vencer. Preciso, pois apenas assim serei livre outra vez. Se me ajudar, entretanto, terá direito a um desejo. Pode realizar qualquer vontade que tiver em mente.”
“De que me adiantaria um desejo, Oriol, se não tenho Rachel ao meu lado para desfrutar dessa recompensa?”
“Você não entendeu o que eu quis dizer. A recompensa é ilimitada, garoto. Você pode pedir o que quiser.”
“Não sou um garoto, maldito.”
“É o que vejo. Um garoto chorão e fraco, amedrontado por uma perda que pode reparar.”
“Reparar?”
“Não está me escutando, Dylan. Você pode pedir o que quiser. Mesmo a vida de sua amada Rachel, ou de seu mestre, ou de ambos. Pode tê-los outra vez, se vencer.”
Dylan incendiou por dentro. Parecia tolice, nada era capaz de trazer os mortos de volta à vida, mas algo em sua mente obrigava-o a confiar nas palavras de Oriol. Imaginou-se junto de Rachel e de Victor, outra vez, amando-a, zombando do velho treinador. Seria bom demais para ser verdade.
“Você está mentindo. É impossível trazer os mortos de volta à vida.”
“Nada é impossível para a Senhora dos Desejos.”
“Senhora dos Desejos?”
“Juno. O Pranto da Lua. A Senhora dos Desejos. Chame como quiser. Nós temos que encontrá-la, Dylan, temos de vencer esta batalha! Ela pode realizar qualquer uma de nossas vontades! Ela pode te fazer feliz novamente!”
“E o que eu preciso fazer?”
“Você precisa concluir nosso acordo. Transformá-lo em um Reiseziel. Tornar-se um Vongeist. Somente assim seremos um par, poderemos caçar Juno, alcançar todas as nossas vontades!”
Dylan não entendia.
“O que é você, Oriol?”
“Já lhe respondi esta pergunta. Sou um Uberein. Agora, vamos concluir nosso Reiseziel.”
“O que vai acontecer comigo depois disso?”
“Você vai ficar forte. Vai ser capaz de lutar, de enfrentar o que há pela frente. Vai se tornar um Vongeist, um caçador da Juno.”
“Não entendo.”
“Posso lhe explicar essas coisas quando for preciso. Agora, você precisa apenas concordar com o acordo, formar nosso pacto final. Com o Reiseziel, você será capaz de enfrentar outros Vongeist, de derrotar qualquer obstáculo que nos afaste de Juno. Vamos, Dylan, aceite minha oferta! Você pode ter Rachel outra vez em seus braços!”
Aquela era uma oferta tentadora. Dylan se sentiria incompleto pela eternidade sem Rachel, e Oriol lhe oferecia uma chance de tê-la outra vez, assim como a Victor. Parecia absurdo, mas era sua única chance. Diferente daquilo, seria melhor morrer.
“Está certo, Oriol. Eu aceito seu acordo. Faça o Reiseziel.”
Lá fora, algo explodiu. Dylan sentiu a cama tremular.
“O que foi isso?”
“Está começando. Erga seus braços, temos que apressar as coisas!”
Dylan obedeceu sem relutar, sentiu os músculos arderem, torturados. Algo irradiou, entrelaçou seus dedos, percorreu a extensão de seus membros até alcançar seu rosto, seus olhos, sua mente.
Lá fora, algo estrondava contra as paredes do hospital.
“O que é isso, Oriol?”
“Concentre-se no Reiseziel!”
Dylan obedeceu, fechou os olhos. Sentiu aquela energia circundar seu corpo, acompanhar o fluxo de suas correntes sanguíneas, desbravar suas veias. Sentia-se invadido, dividindo o corpo com outro ser, um segundo espírito. Era Oriol, sabia, mas demoraria a se acostumar com aquela sensação exótica.
“Temos um contrato, Dylan?”
O jovem hesitou. Estrondo.
“Temos.”
As luzes sumiram, concentraram-se nos punhos, Dylan se viu com um par de luvas de couro, ilustradas por um escarlate sombrio.
Estrondos, cada vez mais próximos.
“Está feito, Dylan. Temos que sair daqui!”
“Eu ainda não me recuperei!”
“Tente se mover!”
Tentou, viu que conseguia. Não havia mais dor. Estava revigorado, melhor do que acreditou ser possível. Sentia os braços poderosos, as pernas ágeis, o corpo preparado para a batalha.
“Estou curado!”
“Agora você é um Vongeist, Dylan, não é mais um humano comum!”
“Me sinto incrível!”
“Logo vamos descobrir o quão incrível você está. Pegue suas coisas!”
Dylan olhou ao redor, viu a armadura de Armor Boxing de Ylenia atirada a um canto, correu até ela. Vestiu-a despreocupado, não regulou com perfeição. Atirou as vestes de paciente no chão, admirou suas luvas.
“O que são essas coisas?”
“Pode deixar as perguntas para depois? Você precisa sair daí!”
Mas já era tarde. O estrondo estava ali, seguido por um rugido grotesco, e então algo silvou no ar. Dylan se atirou no chão, viu as paredes e o teto desmoronarem, rasgados por garras enormes e prateadas. A janela deu lugar a uma lacuna cavernosa, por onde conseguia ver quase toda a cidade de Ylenia. Ver a cidade, entretanto, era a menor de suas preocupações.
Havia um felino de três caudas, o dono das garras que destruíram o quarto do hospital. Ele rugiu, poderoso, preparou um novo ataque.
“Você tem que saltar!”
“Saltar?”
Observando de maneira imprecisa, Dylan acreditou estar no quarto andar.
“Sim, saltar!”
“É impossível! Estamos numa grande altura, se eu pular daqui vou...”
“Você é um Vongeist, Dylan, não é um humano comum! Pule!”
O monstro rugiu, atacou outra vez. Dylan correu em sua direção, esperou por suas garras, saltou em esquiva.
Por sorte, estava errado. Não estava no quarto andar.
Aquele era o décimo primeiro.

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