sábado, 7 de julho de 2012

Light Novel - Delirium - Caso 3 / Ato XX


XX

No inferno, Trevor morreu três vezes antes mesmo de tocar aquele solo pútrido e chamejante.
Tudo ao seu redor era um martírio; mesmo a simples visão de tais pecados poderia matar. O fogo era sombrio, diferente das imagens bíblicas que irradiavam a vermelhidão de fogueiras bruxuleantes. Chamas negras, bizarras e satânicas, crepitando em momentos vulcânicos e instantes gélidos.
O inferno não era fogo: era a dor, e somente ela.
“Não fuja, demônio!”
Trevor falou sem perceber, mas sabia que não estava sozinho. Não sabia o que esperar daquele lugar, sequer sabia o que fazia ali. Por sorte, não demorou a perceber que a consistência do ar era a mesma dos devaneios. Assim, por entender a realidade que o circundava, conjurou a foice que lhe permitia enfrentar as criaturas fantasistas de seus pacientes. Ali, era guerreiro, podia enfrentar um demônio.
Mas não aquele.
A voz feminina deixou de existir. Em seu lugar, um ruído grotesco, grave e incômodo, irritante como o ranger de uma porta descontrolada.
“Por que me seguiu?”
“Por que me enganou durante tantos anos?”
Uma gargalhada ecoou.
“Precisava de um Sangue Azul. Precisava de um ceifador para despejar minha essência, um tolo para se apaixonar, para entregar sua vida a mim. Você é um marco na história da humanidade, Trevor Kraepelin. Você é o pai daquele que carrega o fardo do fim do mundo.”
“Eu não sou o pai de tal criatura!”
“Você é, Trevor, pois você fodeu o demônio! Você não mediu esforços, mesmo sabendo da realidade, de minha natureza. Se entregou à sua paixão doentia, desistiu de sua própria vida.”
“Mas agora estou de volta, monstro, e não permitirei que essa monstruosidade retorne ao meu mundo. Fui enganado por sua maldição, pelo encanto de seus olhos. Em meu mundo, sou mortal, sou fraco. Não aqui. Aqui, tenho minha arma, minha força. Aqui, não sou o homem de sua vida, criatura. Sou o homem de sua morte.”
A risada soou macabra.
“Os homens são sempre tolos, sempre enganados. É fácil ludibriar uma mente movida pelo sexo, pela atração carnal, pelo pecado. Eu sou a origem de tudo, Trevor. Todos os seus erros, todos os seus crimes. Eu sou o criador.”
“É, você é foda, eu sei. Não me importa. Eu vou cortar a sua cabeça com a minha foice, seu bastardo traidor. Vou arrancar o seu saco fora para que não possa mais fazer filho algum.”
“Esqueceu-se de que foi você quem me engravidou? Eu não tenho um saco para você cortar, ceifador. Eu não sou um demônio, nem mesmo uma aparição. Não há sexo nos anjos, pequeno Trevor.”
“Anjo?”
Trevor rugiu de maneira ameaçadora, destruindo grande parte do inferno ao redor de si. Derrubou montanhas de corpos, fez jorrar sangue do que já estava morto há séculos. Os muros invisíveis tombaram, revelando a imagem aterradora de Lúcifer e, ao seu lado, a filha do demônio.
A filha de Trevor.
“Você não é um anjo, traidor. Você é apenas as fezes de um ser celeste, o que restou daquele que se opôs à divindade maior. Eu não o temo.”
Lúcifer realmente parecia um anjo. Cabelos dourados e cacheados, asas plumadas num tom acinzentado, olhos azuis e faiscantes. Nu, coberto apenas por tecidos translúcidos, o rei dos demônios não tinha órgãos, seios ou curvas. Era uma tábua angelical e abissal, de pele espelhada e lábios inchados.
“Ninguém teme ao diabo, Trevor. Vocês se entregam, abrem os braços para a tortura de minha forma, me aceitam sem sequer perceber. Como você mesmo fez, garantindo-me a criança que levará o mundo ao extermínio.”
“Já disse que não vou permitir.”
Lúcifer abriu seus braços, deixando o torso magricela desprotegido. Ao seu lado, a filha de Trevor grunhia uma tristeza dolorosa.
“Me mostre seus métodos de tortura. Garanto que já conheço todos.”
Trevor se enraiveceu, cerrou os punhos no cabo de sua arma, tentou avançar, viu-se incapaz. Estava enrolado por vinhas, plantas pontiagudas se cravavam em sua pele. Sangrava, mas a dor era tolice. Precisava acabar com aquela criatura.
“Papai...”
Não havia mais monstro. Ao lado de Lúcifer, uma pequena garota de cabelos negros choramingava, abraçada a um urso de pelúcia. A tez pálida ruborizava pelas lágrimas, os olhos marejados pelo medo daquele homem que ameaçava sua mãe.
E Lúcifer era novamente Clufeir, ou Evelyn, ou qualquer nome que desejasse possuir.
Trevor hesitou.
“Papai!”
Aquela era sua filha. Sua linda filha.
(Não! Aquilo é um monstro! Ela está te enganando!)
Mas era sua mente lutando contra seu corpo, e a batalha já estava perdida. Aquela era sua filha, delicada e ingênua, entristecida pelo temor de se ver alvejada pelo próprio pai.
As vinhas abandonaram o corpo de Trevor, mas ele não se moveu. Por dentro, queria matar Lúcifer, destruir aquela criatura que o chamava de pai. Mas não havia Lúcifer. Havia Clufeir. Aquela que amou durante anos.
“Papai.”
“Veja, Trevor, a nossa filha! Ela não é linda?”
Estavam em casa.
Trevor sentia-se nauseado.
“Papai, papai!”
Cambaleou para a frente, aliviando a pressão das mãos em sua foice. A arma oscilava.
“Dê um abraço em sua filha, Trevor. Já pensou em um nome para ela?”
Não pensara. Era um péssimo pai.
“Eu te amo, papai!”
Sorriu.
Ergueu a foice.
“Eu também te amo, monstrinho.”
Sem hesitar, partiu-a ao meio com a lâmina de sua arma, livrando o inferno do filho do demônio. Livrando o mundo da catástrofe iminente.
Era um herói, mas não se sentia como um.
Sentia-se um assassino.

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