7
A
CABEÇA DE MAURO PARECIA UMA BOMBA PRESTES A EXPLODIR. Em alguns momentos,
parecia que já tinha explodido dias atrás. Ele abriu os olhos com dificuldade,
sonolento e atordoado pela noite anterior. Tentava se lembrar, em vão.
Lembrava-se de um sonho ruim, uma ligação, um drinque sem nome e só.
Olhando
ao redor, Mauro não reconheceu o ambiente. Estava ao lado de uma cama de
solteiro desarrumada, deitado num travesseiro atirado num canto qualquer do
quarto. Era um cômodo pequeno, abafado e claustrofóbico, com livros demais e
conforto de menos, mas ainda assim agradável.
Alguém
dormia sobre a cama, com os braços e as pernas à mostra, em posições nada
atraentes. Luciana vestia uma camisola translúcida, e seus cabelos estavam
desajeitados. Mauro percebeu que nunca a vira daquela maneira antes. Olhando
assim, ela parecia bonita. Bonita demais, até. Mais do que as roupas do
cotidiano empresarial permitiam que ela parecesse.
Nada
explicava aquela situação, no entanto.
—Luciana
—chamou ele, tocando nos braços da companheira com certo receio. —Luciana,
acorde.
Ela
deixou escapar um grunhido preguiçoso, revirando-se na cama.
—Que
horas são? —perguntou, zonza e sem abrir os olhos.
Mauro
procurou o celular nas calças. Surpreendeu-se ao ver que não as vestia. Demorou
alguns segundos para visualizar suas roupas no chão, e tirou de lá o aparelho
que mostrava um relógio digital na tela.
—São
quase uma da tarde —respondeu ele. —Você tá bem?
Só
então Luciana entendeu que havia alguém em seu quarto. Um homem, para ser mais
exato. Um homem que ela conhecia.
—Mauro!
—ela se sentou na cama, puxando as cobertas para sobre o corpo com um movimento
ríspido. —Como —
—Eu
também não sei —interveio ele. —Acho que bebemos demais ontem. Me desculpe por
isso.
—Não,
não precisa. Tá tudo bem. Eu também bebi. Sou grandinha pra saber que tenho que
arcar com as responsabilidades do que fiz.
—Mesmo
quando a gente nem sabe o que fez.
Luciana
riu, mas Mauro não tinha feito uma piada.
—Você...
se arrepende?
A
pergunta feita pela secretária soou estranha para Mauro.
—Como
assim?
—Não
sei. Você só não parece feliz, como os homens geralmente ficam depois... disso,
sabe? Você me entende. Tá arrependido ou algo assim?
Mauro
poderia responder qualquer coisa, mas o ímpeto fez com que sua escolha de
palavras fosse a pior possível.
—Eu
sequer me recordo do que fiz ontem. Não posso me arrepender por algo assim, nem
me apaixonar. Me desculpa, sério mesmo. Preciso ir embora.
—Me
deixa te fazer um café, eu juro que —
—Eu
estou bem —interrompeu ele, levantando-se e vestindo suas calças. —Posso me
virar sozinho. Você devia aproveitar pra descansar também. Logo mais terá que trabalhar.
—Mas
e você?
—Eu
não vou. Não hoje, talvez nunca mais. Não estou me sentindo bem. Até logo,
Luciana.
Pegando
seus pertences, Mauro deixou o quarto de Luciana para trás e sentiu a luz do
dia queimar sua vista quando seus pés tocaram a calçada. As ruas estavam
movimentadas, mas não para ele. Tudo era silencioso, vazio, irreal. Mauro vivia
sozinho num mundo que não fazia sentido. Pior ainda: vivia na solidão de um
mundo que, se fizesse sentido, o mataria.
Caminhou
até sua casa com uma sensação estranha. Por várias vezes pegou-se olhando para
trás e para os lados, como se alguém o perseguisse, mas não havia ninguém ali.
Ninguém além daquelas pessoas que não o notavam, além daqueles rostos que ele
não sabia nomear. Ninguém.
Entrou
em sua casa e, pela primeira vez desde que deixara a casa de Luciana, viu um
rosto que o fez prender a respiração.
Daiana.
—Divertindo-se
nas noites, Mauro? —perguntou a mulher, que estava sentada no sofá de sua sala
com as pernas cruzadas. Usava um jeans apertado e salto alto, um contraste
desnecessário.
—Isso
importa agora?
Ela
deu de ombros.
—Nunca
importou, na verdade. Você nunca foi disso.
—Talvez
eu tenha mudado.
—Por
mim?
—Por
não ter você.
Num
instante de respiração, Mauro notou suas próprias palavras e, aos gritos,
corrigiu seus pensamentos: você odeia
essa mulher, você odeia essa mulher, você odeia essa mulher...
—Eu
sinto muito —Daiana balbuciou, hesitante. Mesmo ela não esperava por uma
resposta como aquela. Feriu como faca, aparentemente. —Talvez a noite seja uma
companhia melhor do que a minha.
—Não
preciso de outras companhias, Daiana. A minha vida está um caos! Não vai ser a
noite, uma companheira de trabalho ou uma ex-mulher invasora de residência que
vão mudar isso!
Daiana
suspirou, irritadiça.
—Eu
sabia que havia outra mulher na história.
—E
eu sabia que tinha que trocar a fechadura... Ei, espera! —Vasculhando suas
memórias, Mauro se lembrou de que já havia trocado as chaves. Como era possível
que ela estivesse ali, em sua sala? —Como foi que —
—Tenho
meus segredos —cortou Daiana. —A questão aqui é outra.
—É
melhor parar com seus segredos, ou vai ter que dividi-los com várias lésbicas
numa cela fedorenta em breve.
—Você
nunca me ameaçou assim antes, sabia?
—Sei
bem. Às vezes fazemos algumas coisas pela primeira vez. Tipo ser abandonado.
Daiana
baixou os olhos. Ela tentou se aproximar, mas Mauro a impediu.
—Eu
não sei o que você quer aqui, Daiana. Não sei o que você quer comigo, não
mesmo. Só acho que você deveria ir embora. E quando digo embora, quero dizer
embora mesmo. Esquecer de mim, me abandonar de vez. Já fez isso uma vez, não
deve ser difícil repetir a dose. Vai embora pra nunca mais voltar.
—Isso
te faria feliz?
Mauro
virou-se para a geladeira, pegou a margarina e o leite e começou a preparar seu
café. Ele não podia responder àquela pergunta. Sabia qual seria sua resposta.
—Você
tá estranho, Mauro —começou Daiana. —Não parece mais o homem que eu conheci.
Você era carinhoso, atencioso, dedicado, inteligente. Olha pra você agora? Olhe
no espelho, veja o que sobrou! Você parece um rabisco se comparado à obra de
arte que era! Não consigo ver isso acontecer e fingir que tá tudo bem, não dá.
Mauro
se sentou e tomou seu café da manhã, calado.
—Você
não sabe mesmo o que tá acontecendo, não é? —Daiana tentou outra vez, mas o
silêncio foi sua resposta. —Tá legal, Mauro. Eu já entendi. Você pode ter outra
mulher, pode ter seus casos e curtir suas noites. Não me importo. A escolha foi
minha. Mas, se prefere realmente agir assim, recusar a ajuda que precisa e...
Ah, quer saber, azar o seu. Faz como quiser.
Exausta
pela tentativa, Daiana se virou, caminhando com passos pesados na direção da
porta de saída.
—Só
uma coisa —disse ela, os olhos ainda fixos na porta de madeira. —Essas mortes
não vão parar tão cedo. Outras garotas vão morrer, você sabe como funciona. Não
se envolva, por favor. Você não é um super-herói, Mauro. Tem coisas que é
melhor não se meter.
Mauro
se levantou, cabisbaixo. Deu passo ante passo na direção de Daiana, esticou o
braço e alcançou a maçaneta da porta.
—Vai
me mandar embora assim? —perguntou ela.
Ele não respondeu. Trancou a
porta, puxou-a para perto de si e a beijou, chorando.
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