O Legado
do Herói das Montanhas
Quando começou, poucas pessoas notaram.
Era só um fenômeno estranho, incomum. Poderia
muito bem ser uma espécie de eclipse, ou mesmo o que chamavam de Aurora Boreal
em outros reinos. Nasceu no céu, por entre as nuvens, por entre o azul que
acolhia o mundo, e se expandiu sem pressa, como uma criança manhosa,
recém-nascida, que se espicha em crescimento até atingir a fase adulta.
Passaram-se dias, semanas, sem que alguém notasse que aquilo não deveria estar
ali. Magos pensaram, refletiram sobre tal processo que nem mesmo a magia era
capaz de explicar, não chegaram a conclusão alguma. Clérigos pediram por
respostas em preces, cartomantes buscaram explicações em seus vislumbres,
paladinos partiram por cruzadas espirituais. Nada. Cada resposta não encontrada
trazia consigo outras perguntas, a dúvida se tornava cruel. Restava a
aceitação, e ela veio como a vergasta de um chicote, assídua num primeiro
instante, leviana no momento seguinte.
Então, ao fim, torturante.
Nas nuvens, crescia um segundo palácio, feito de
madeira, palha, cortiça e vime. Lembraria, na distância em que se encontrava,
uma fortaleza flutuante, acima das nuvens, acima do mundo. Não era o castelo
que aparentava, porém.
Era uma colmeia.
A Colmeia de Nuvens.
Imensa, num céu a que não pertencia, a Colmeia
estacou, como se por mágica. Uma mágica peculiar, certamente, uma mágica
obscura. O reino, abaixo daquele castelo magnífico e simplório, tornou-se
coberto por um manto de dúvidas. Guerreiros valorosos ousaram se aventurar,
jamais retornaram. Dias e mais dias se passavam, e tudo o que voltava da
Colmeia eram rumores e pedaços de sobreviventes.
Há uma
bruxa.
Foi o que alguns disseram, depois de um tempo.
Uma líder, uma general. Uma feiticeira no palácio que era a Colmeia,
arquitetando algum plano maquiavélico, desastroso e surreal. Depois de tempos,
chamaram-na de Abelha Rainha, sem que nem mesmo confirmassem sua existência.
Bardos cantavam sobre uma mulher de vestes negras e amarelas, dotada de uma
cauda que, ao fim, ressoava num ferrão venenoso. Bêbados contavam sobre sonhos
com uma donzela de cabelos dourados, olhos de mel e lábios adocicados, que os
acolhia, aconchegava e, por fim, exterminava, envenenando-os. Contadores
narravam feitos de heróis épicos que, explorando a Colmeia de Nuvens, se
perderam nos encantos de uma malévola feiticeira que dominava um enxame da mais
pútrida mágica, convocando hordas em rituais de druidismo e, por mera vingança
em nome da natureza, extinguindo a raça à qual não mais declarava fazer parte.
Obviamente, todas essas histórias eram mentiras.
A verdade, talvez, fosse muito pior.
O Rei daquele lugar não mais sabia o quê fazer.
Seu povo exigia respostas. Queria saber o que era a Colmeia de Nuvens, como
surgira, quando iria embora. A dúvida criava o medo, e o medo do desconhecido é
o que faz a fortaleza de um homem desabar por inteiro. Ali, entre a amurada de
seu castelo, o Rei via sua fortaleza desabar, sem nada saber. Tinha um povo
para cuidar, uma família para honrar, um nome para agraciar. E uma Colmeia de
Nuvens misteriosa sobre seu castelo, dizimando todas as outras coisas que
jaziam em sua mente.
Quando achou que a situação já estava de todo
crítica, viu-se perdido: sua filha, a princesa daquele reino, fora sequestrada
e levada à Colmeia.
Sabiam disso por um alerta deixado em seu
quarto, encontrado na manhã seguinte por uma governanta que cuidava da limpeza.
A cama ajeitada, os pertences em seus devidos lugares, a janela entreaberta,
sacudindo ao vento. Nenhum sinal da princesa. Nas paredes, pichadas com o mais
meloso dos méis, mensagens. Avisavam sobre o sequestro, provocavam, incitavam
guerreiros a subir, mais e mais cavaleiros a se aventurar, mais e mais magos a
ousar desafiar aquela fortaleza voadora.
E foi o que o Rei fez. Mandou seus melhores
homens, seus paladinos da glória, seus cavaleiros da justiça, seus encantadores
da sabedoria, todos eles. Subiram ao vento, penetraram a Colmeia de Nuvens, e
nunca mais foram vistos por suas famílias ou por seu reino.
Não havia muitas outras escolhas. Uma semana se
passou, sem notícias, sem sinais. A Colmeia ainda estava lá, imponente.
Precisavam de alguém que não fosse abatido por quaisquer obstáculos.
Precisavam de um herói.
Não se encontra mais heróis em grandes cidades.
Os verdadeiros heróis daquele mundo se perdem nas florestas e nas montanhas,
decididos a armazenar seu conhecimento nos tronos que a natureza oferece. Ali,
nas proximidades daquele reino, havia uma montanha famosa por suas lendas. Em
tal local, os homens floresciam como animais, transformavam-se. Eram
homens-fera, uma nova raça, um novo povo, de novos costumes e novos heróis.
Aquele povo era regido por um Lorde, e foi a ele que infindáveis cavaleiros
buscaram numa jornada surreal.
Encontraram-no no cume da mais alta montanha,
meditando. Pediram por sua ajuda, e ele os ouviu, sem nada dizer. Abriu seus
olhos, eriçou a pelugem de macaco que protegia o corpo malhado, tirou das
rochas o bastão expansível que usava em seus combates e, sem nada dizer,
escalou o vento, pisando no que inexistia para alcançar, acima de todas as
nuvens, a Colmeia que ameaçava o reino.
O herói das montanhas deparou-se diante de um
palácio que cheirava a mel. As portas se abriram, recepcionando-o, e ele
entrou, a arma em riste. Havia pouca luz, nenhuma fresta que deixasse o azul do
céu entrar. Usou da mágica para irradiar a ponta de seu bastão, prosseguiu.
Escadarias, sempre espiraladas, sempre confusas. Respirou fundo, sentiu cheiro
de homens e mulheres, de histórias mórbidas, de herdeiros sem vida. Respirou
mais, concentrado.
Sentiu o cheiro da princesa.
Seguiu-a, alvejado, como tantos os outros o
foram, por espectros. Eram fantasmas de homens e mulheres sem valor, mas
fantasmas e, como tais, nada os atingia fisicamente. Mas o meio-macaco tinha a
mágica, e ela lhe protegeu. Com a mágica, seu bastão foi capaz de destruir
afrontar espíritos, e neles encontrou grande parte do exército que o Rei
enviara. Estavam todos lá, aprisionados, emitindo sua aura verdejada,
alimentando alguma coisa que ali vivia.
O herói prosseguiu, derrotando hordas de
fantasmagoria, até que se deparou com armadilhas. Espinhos venenosos, ferrões,
estacas, lanças, dardos, fossos, amarras, correntes dentadas. Evitou todas,
pois nascera nas aventuras, nos perigos, no cotidiano de quem vive próximo à
morte. Encontrou, ali, os corpos de infindáveis magos, que talvez tivessem sido
capazes de superar os fantasmas de outrora, mas jamais transporiam obstáculos
como aqueles. Passou por eles, orando aos deuses para que suas almas
encontrassem um lugar melhor do que os primeiros cômodos da Colmeia de Nuvens.
Avançou por corredores de elementos,
recepcionado pelo fogo e pelo vento, pela água e pelo trovão. A magia
predominava, mas sua mágica era mais forte. O meio-macaco respirava
encantamentos, e assim, nada o atingiu. Seu bastão girou em suas mãos e em sua
cauda, dissipando quaisquer ameaças que ousassem alvejá-lo. Nada o tocou, nada
o feriu.
Enfim, a torre mais alta, e lá farejou a
princesa, já fraca.
Ela estava presa a correntes, braços e pernas
esticados ao limite do corpo humano. Chorava, mas suas lágrimas eram secas.
Despida, exibida como um troféu, humilhada como plebeia. O meio-macaco a
reverenciou, e alguém gargalhou, achando graça.
Lá estava ela. A Abelha Rainha, como a
denominaram. A bruxa malévola que corrompera os céus daquele reino,
envenenando-o com seu ferrão e com sua feitiçaria obscura. O monstro que
sequestrara a filha de um Rei.
Uma criança.
Em corpo, ao menos. Tomada pela alma de tantas
outras bruxas, a garota encontrava-se corrompida. Seus olhos eram negros, sua
pele cintilava. Ela urrava por vingança, sua voz eram tantas outras vozes que
tornava-se impossível diferenciá-la. A Maga da Noite Gélida, o Vulto Soturno, a
Viúva Negra, o Horror dos Esgotos, a Vespa da Floresta Azul, o Herdeiro dos
Morcegos, a Erva da Perdição, o Olho de Dragão; todos esses e outros mais.
Disputavam um mesmo corpo, um mesmo ódio, um mesmo turbilhão de sentimentos,
tantas almas negras, impossibilitadas de transpor a camada alva do céu,
rejeitadas pelo véu singelo do inferno. Almas repletas de cicatrizes,
aprisionadas no purgatório, fugitivas, capazes de retornar ao mundo somente por
tamanho o desprezo que carregavam pela raça humana e, em suma, coincidentemente,
por um homem em especial.
O herói das montanhas, antes de meio-macaco,
fora somente um homem. Ganhara o direito de honrar tal título, de receber
tamanho poder, quando as divindades lhe agraciaram com um troféu por seus
feitos. Exterminara tantas ameaças, defendera tantos universos, salvara tantas
vidas, que mesmo os deuses tiveram de se curvar em reverência àquele herói cujo
nome há muito se perdera. Era ele o odiado, ele o atraído. Todas aquelas almas
violadas, todos aqueles seres malignos, viventes no corpo de uma garotinha
inocente; todo o ódio era por ele, pelo herói, pelo macaco.
—Abelha Rainha —falaram cem vozes, talvez mais,
ao mesmo tempo. Ressoavam. A Colmeia de Nuvens oscilava perante suas palavras.
—O nome que recebi dos homens. —Sorria. —Eu o desprezo.
O bastão nas mãos do macaco girou, preparado.
—Já temos as vidas que precisamos —a vilania
contou, tirana. —Enganam-se os que enxergam meu lar como uma colmeia. O
disfarce foi perfeito. Isto é muito mais que um castelo.
O herói das montanhas avançou, ríspido.
—É um meteoro.
Lutou. Ao mesmo tempo, a Colmeia de Nuvens
desabou, quedando na direção do reino. Sob o confronto, homens e mulheres
choraram, enxergando um céu que escurecia. A coisa aumentava, cobria o sol e as
nuvens: era imensa. A Colmeia despencava, trazendo consigo o prelúdio do fim do
mundo, pronta para acabar com a desprezível raça que eram os humanos.
Sobre a amurada de seu lar, o Rei daquele reino
choramingou, hesitante.
O macaco afrontou a Abelha Rainha com seu bastão
e sua coragem. Ela era infinita, mas ele era mais que isso. Todas aquelas
almas, todos aqueles nomes; ele ainda se lembrava. Conhecia todos eles, um a
um, todos desabaram perante seu bastão. Não seria diferente dessa vez. Tocado
pelos deuses, escolhido pelas divindades, o herói das montanhas lutou
bravamente e, mesmo ferido, derrotou a garota que era morada para as mais
malévolas existências de um único mundo. Deixou-a caída ao solo, pronta para
desabar junto da arma que criara. Libertou a princesa de suas amarras, levou-a
ao Rei num só salto, deixou-a nos braços do pai, surpreso. Não teve tempo de
ouvir os agradecimentos. N’outro salto, retornou à Colmeia, concentrou-se,
pediu para que todo o som se tornasse silêncio, foi atendido.
Meditou.
Sob a catástrofe, a Colmeia desabou. A mágica do
vento a arrastou, porém. Levou-a para o oceano, deixou-a despencar num mundo
submerso. A mágica da água fez das ondas colossais, e a mágica do gelo fez
delas esculturas, pétalas cristalizadas numa belíssima gravura de realidade, a
qual se firmou no mundo pela mágica da terra. A Colmeia de Nuvens explodiu,
encantada, mas a mágica do fogo dançou no ar, circundando-a num espetáculo de
fogos de artifício que o mundo todo foi capaz de presenciar.
Dentro das explosões, os espíritos de infindáveis
ameaças se perderam, dizimados pela mágica da vida.
O povo do reino chorou, aplaudiu o herói das
montanhas, homenagearam-no. Esperaram que ele retornasse para comemorar, mas
ele não retornou. O Rei guardara toda sua fortuna como prêmio, a mão da princesa
seria oferecida em casamento, a serventia do povo seria um benefício adicional.
Mas o herói das montanhas jamais retornou, e o povo esperou assim, silencioso,
sem comemorações, aceitando que, mesmo salvando todo um universo, um
meio-macaco era aquilo que sempre fora: um homem.
E, como todos os demais homens, ele também
haveria de morrer.
Muito tempo se passou sem ameaças, mas elas
viriam, certamente. É o ciclo da vida: onde há luz, há sombra. Outros heróis
surgiriam, agraciados por seus feitos. A escultura no meio do mundo contaria
sua história por gerações, como uma flor gélida no meio dos mares, aberta de
forma a revelar seu botão terroso, circundado por chamas eternas. Aquele era o
trunfo do herói das montanhas, que no início tivera diversos nomes, mas hoje
não tinha nome algum.
E, no cume da mais alta montanha daquele mundo,
um bastão jazia fincado ao solo, silencioso.
Ao seu lado, um homem coberto de pelos tinha os
olhos fechados, em eterna meditação.
Aquele era o legado do herói das montanhas. Era
dominado pelo fogo, pela água, pelo gelo, pelo vento, pela terra, pela vida,
pelo mundo, e também dominava a tudo, numa justa troca oferecida por sua
lealdade.
Mas, tocado pelos deuses como o era, jamais
seria dominado pela mágica da morte, ainda que a dominasse com primor.
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