sábado, 15 de junho de 2013

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 1 [Web Novela]

E chega ao blog Elhanor a mais nova novela de minha autoria, para leitura gratuita: Nas Cordas do Desespero. A história, dessa vez, se afasta um pouco da fantasia para apresentar a tênue linha que divide a sanidade de um homem que já não tem mais nada a perder da ilusão surreal das peças que a mente pode pregar. Está preparado para se livrar das amarras?
Com vocês, o primeiro capítulo de 'Nas Cordas do Desespero'.



“Diante da perversão do dia a dia, nada resta às mentes sadias senão a mais malévola das insanidades, alimentada por pavores doentios, atrocidades do cotidiano e rotinas banhadas pela mais completa loucura: a normalidade.”


  
1

HÁ POUCAS COISAS NA VIDA PIORES QUE UM ENTERRO.
Uma delas é o enterro de uma filha.
Naquela tarde, chovia. Parece coincidência, mas todos os enterros são chuvosos. Logo você entende o motivo. Quando a chuva não cai do céu, cai dos olhos. Cai e desliza, assustadoramente real, fria como o gelo das geleiras, lembrando àquela pessoa de que sim, ela está acordada. Aquilo não é somente um pesadelo. Aquilo não vai acabar. Alguém foi embora, e não, nunca mais vai voltar.
Visualizar um sepulcro apresentado daquela forma, como uma exibição arqueológica de um museu, faz o coração se comprimir num protótipo de infarto. Ao menos, assim classificava Mauro, cujos olhos estavam inchados na tentativa frustrada de suprimir a dor da filha que não voltaria. Elizabeth, agora, tinha de se tornar somente uma lembrança. Não há dor maior para um pai do que isso.
Poucas dores seriam capazes de tocar o coração congelado de Mauro naquele momento.
Perder uma filha, como se já não trágico o suficiente, era apenas mais um passo tortuoso em sua vida desastrosa. Ele já não estava feliz. Antes da completa solidão, viveu sozinho por tempos. Três anos antes de perder Elizabeth, Mauro perdeu a esposa. Ela não morreu. Ao menos, não daquela forma. Ela morreu em vida. Foi embora, com outro cara, para ser feliz. Foi embora e o deixou para trás, com sua filha, com sua vida pacata. Foi embora, e ele ficou.
Demorou muito tempo para que ele superasse esse fracasso. Mauro colocou em sua cabeça que a única solução para esse problema era dedicar-se inteiramente à filha, e assim o fez. Arrumou um novo emprego, num escritório de contabilidade repleto de pessoas mesquinhas, deixou de beber, parou de fumar, economizou. Abriu uma poupança para ela, para sua faculdade. Ela só tinha doze anos. Faltava tempo demais para que fosse embora, para que seguisse sua vida.
Agora, não faltava mais tempo nenhum. De uma maneira errônea, Elizabeth seguiu sua vida. Seguiu para nunca mais voltar.
Havia outras pessoas no maior cemitério da cidade naquele momento. Chovia, e muitas das senhoras que acompanhavam a cerimônia de homenagem à garota falecida tinham guarda-chuvas em mãos. Mauro não. Ele deixava a chuva cair. Era sua melhor camuflagem para as lágrimas.
—Eu sinto muito.
A voz veio de surpresa, e ele se assustaria se tivesse forças para isso. Virando-se para trás, deparou-se com Luciana, a secretária que indicara o cargo ocupado atualmente para ele quando a situação exigiu um trabalho. Diferente do castanho que demarcava Mauro, Luciana tinha um tom de ruivo nos cabelos e nas sobrancelhas. Tinha, também, algumas sardas no rosto, ao lado das narinas. Os olhos não eram do melhor tom de verde, mas eram bonitos, escondidos atrás de óculos redondos de uma leitora compulsiva.
—Eu sinto mais —foram as palavras ríspidas e desanimadas de Mauro.
—Ela era uma boa menina —tentou a secretária, mas suas palavras não ajudariam em nada, então ela se calou. Respirou, olhou para o caixão, para todas aquelas pessoas. Ela estava escondida num guarda-chuva. Demorou alguns minutos até que oferecesse uma brecha de sua proteção para Mauro.
—Não precisa —disse ele. —Eu já estou molhado. Nada pode mudar isso.
—Vai pegar uma pneumonia se continuar assim.
—Quem se importa.
Ela tentou insistir, mas não tinha opções. Não sabia o que fazer ou dizer, então apenas assistiu-o partir, debaixo de seu guarda-chuva, e depois foi embora também.
Mauro se sentou debaixo de uma árvore. As poças d’águas que se acumulavam no gramado encharcavam a calça social que tirara rapidamente do armário para aquela data fatídica, mas ele não se incomodava. Possivelmente, nunca mais na vida algo o incomodaria.
Exceto aquela presença.
—Olá, Mauro —a voz feminina chamou, e ele se virou sem pressa, sem ânimo, familiarizado pela companhia desajeitada e, ele insistia em dizer, desnecessária.
Daiana. Sua antiga esposa.
—O que você quer?
—Respeito. Perdi a minha filha também. Nós dois perdemos. Esperava que você pudesse me respeitar por isso.
Ela não parecia chorosa. Não parecia nem mesmo que chorara em algum momento.
—Você nos abandonou —disse ele. —Você a abandonou. Foi embora porque quis. Agora não adianta chorar pelo leite derramado. O que passou, passou. Sua filha morreu e você nem viu.
—Ela não morreu, Mauro. Você sabe disso. Ela foi assassinada.
Aquela palavra fez o coração de Mauro parar de bater, por um único instante, e então disparar, todo fora de ritmo.
A verdade doía. O caixão de Elizabeth estava fechado, impossibilitando assim que os convidados à cerimônia pudessem presenciar a cena surreal do corpo daquela garotinha. Doze anos, somente isso, assassinada de maneira cruel, brutal, por um desmiolado de sentimentos infames. Doze anos, e mesmo assim alvejada por um homem mais velho, mais forte, mais absurdamente louco.
Elizabeth fora assassinada, como dizia Daiana. Isso nunca mudaria.
—E qual a diferença? —tentou Mauro, engolindo seu orgulho de pai, seu orgulho de homem, que ordenava a seu corpo que buscasse aquele vilão para uma vingança gélida. —Ela está morta. Eu a perdi. Não você.
—Eu também perdi uma filha aqui, Mauro.
—Você a perdeu há muito tempo, Daiana. Perdeu porque preferiu assim. Perdeu para nos trocar por uma nova família.
Daiana suspirou, impaciente.
—É difícil lidar com pessoas assim.
—Também acho. Abandono é uma coisa absurda.
Ela respirou outra vez, devagar.
—Sucesso em sua recuperação. Eu vou estar por aí.
—Não esteja. Eu não preciso de você.
Com um aceno de mãos, Daiana se retirou, quase que no mesmo instante em que um rosto conhecido, mas não admirado, se aproximava.
—Você está bem?
A pergunta vinha de Rubens, o velho proprietário do escritório, patrão de Mauro. Ele poderia ser considerado um bom homem, levando em conta que pagava o salário que sustentava as refeições de Mauro e de sua filha. Fora isso, não, não prestava. Aproveitador, ganancioso, ambicioso, mesquinho e idiota. Humano, em resumo.
Ele ajeitava os bigodes curvos com as mãos quando fez sua pergunta, e Mauro imaginou infinitos xingamentos para um gordo capaz de perguntar a um pai que acaba de perder sua filha se ele está bem.
—Devo estar. Ou devo ficar, em breve. A vida é assim mesmo.
—Meus pêsames. Você tem seus sete dias de luto. Vê se melhora, se cuida, sei lá. Faz um passeio para aliviar, pensa em outra coisa. A vida continua. Vou estar esperando seu retorno. Boa sorte.
Filho de uma puta.
Isso era um pensamento, um pensamento que deveria ter se tornado uma frase, e possivelmente um início de espancamento, mas que, no final, foi apenas isso: um pensamento.
Quando ele foi embora, Mauro ficou sozinho outra vez. O enterro demoraria algumas horas ainda. Ele não estava preparado para isso. Se aproximou do caixão, jogou suas flores sobre o objeto, despediu-se da filha com um aceno sem esperanças. Ela não voltaria, era um fato. Ele não ficaria esperando.
Algumas pessoas tentaram se aproximar, dar um abraço ou desejar melhoras, oferecer ajuda, coisas assim. Mauro recusou todo o afeto e saiu, sem olhar para trás, deixando naquele lugar um pedaço de sua vida e de sua história.

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