Com vocês, o primeiro capítulo de 'Nas Cordas do Desespero'.
“Diante da perversão do dia a dia,
nada resta às mentes sadias senão a mais malévola das insanidades, alimentada
por pavores doentios, atrocidades do cotidiano e rotinas banhadas pela mais
completa loucura: a normalidade.”
1
HÁ
POUCAS COISAS NA VIDA PIORES QUE UM ENTERRO.
Uma
delas é o enterro de uma filha.
Naquela
tarde, chovia. Parece coincidência, mas todos os enterros são chuvosos. Logo
você entende o motivo. Quando a chuva não cai do céu, cai dos olhos. Cai e
desliza, assustadoramente real, fria como o gelo das geleiras, lembrando àquela
pessoa de que sim, ela está acordada. Aquilo não é somente um pesadelo. Aquilo
não vai acabar. Alguém foi embora, e não, nunca mais vai voltar.
Visualizar
um sepulcro apresentado daquela forma, como uma exibição arqueológica de um
museu, faz o coração se comprimir num protótipo de infarto. Ao menos, assim
classificava Mauro, cujos olhos estavam inchados na tentativa frustrada de
suprimir a dor da filha que não voltaria. Elizabeth, agora, tinha de se tornar
somente uma lembrança. Não há dor maior para um pai do que isso.
Poucas
dores seriam capazes de tocar o coração congelado de Mauro naquele momento.
Perder
uma filha, como se já não trágico o suficiente, era apenas mais um passo
tortuoso em sua vida desastrosa. Ele já não estava feliz. Antes da completa
solidão, viveu sozinho por tempos. Três anos antes de perder Elizabeth, Mauro
perdeu a esposa. Ela não morreu. Ao menos, não daquela forma. Ela morreu em
vida. Foi embora, com outro cara, para ser feliz. Foi embora e o deixou para
trás, com sua filha, com sua vida pacata. Foi embora, e ele ficou.
Demorou
muito tempo para que ele superasse esse fracasso. Mauro colocou em sua cabeça
que a única solução para esse problema era dedicar-se inteiramente à filha, e
assim o fez. Arrumou um novo emprego, num escritório de contabilidade repleto
de pessoas mesquinhas, deixou de beber, parou de fumar, economizou. Abriu uma
poupança para ela, para sua faculdade. Ela só tinha doze anos. Faltava tempo
demais para que fosse embora, para que seguisse sua vida.
Agora,
não faltava mais tempo nenhum. De uma maneira errônea, Elizabeth seguiu sua
vida. Seguiu para nunca mais voltar.
Havia
outras pessoas no maior cemitério da cidade naquele momento. Chovia, e muitas
das senhoras que acompanhavam a cerimônia de homenagem à garota falecida tinham
guarda-chuvas em mãos. Mauro não. Ele deixava a chuva cair. Era sua melhor
camuflagem para as lágrimas.
—Eu
sinto muito.
A
voz veio de surpresa, e ele se assustaria se tivesse forças para isso.
Virando-se para trás, deparou-se com Luciana, a secretária que indicara o cargo
ocupado atualmente para ele quando a situação exigiu um trabalho. Diferente do
castanho que demarcava Mauro, Luciana tinha um tom de ruivo nos cabelos e nas
sobrancelhas. Tinha, também, algumas sardas no rosto, ao lado das narinas. Os
olhos não eram do melhor tom de verde, mas eram bonitos, escondidos atrás de
óculos redondos de uma leitora compulsiva.
—Eu
sinto mais —foram as palavras ríspidas e desanimadas de Mauro.
—Ela
era uma boa menina —tentou a secretária, mas suas palavras não ajudariam em
nada, então ela se calou. Respirou, olhou para o caixão, para todas aquelas
pessoas. Ela estava escondida num guarda-chuva. Demorou alguns minutos até que
oferecesse uma brecha de sua proteção para Mauro.
—Não
precisa —disse ele. —Eu já estou molhado. Nada pode mudar isso.
—Vai
pegar uma pneumonia se continuar assim.
—Quem
se importa.
Ela
tentou insistir, mas não tinha opções. Não sabia o que fazer ou dizer, então
apenas assistiu-o partir, debaixo de seu guarda-chuva, e depois foi embora
também.
Mauro
se sentou debaixo de uma árvore. As poças d’águas que se acumulavam no gramado
encharcavam a calça social que tirara rapidamente do armário para aquela data
fatídica, mas ele não se incomodava. Possivelmente, nunca mais na vida algo o
incomodaria.
Exceto
aquela presença.
—Olá,
Mauro —a voz feminina chamou, e ele se virou sem pressa, sem ânimo,
familiarizado pela companhia desajeitada e, ele insistia em dizer,
desnecessária.
Daiana.
Sua antiga esposa.
—O
que você quer?
—Respeito.
Perdi a minha filha também. Nós dois perdemos. Esperava que você pudesse me
respeitar por isso.
Ela
não parecia chorosa. Não parecia nem mesmo que chorara em algum momento.
—Você
nos abandonou —disse ele. —Você a abandonou. Foi embora porque quis. Agora não
adianta chorar pelo leite derramado. O que passou, passou. Sua filha morreu e
você nem viu.
—Ela
não morreu, Mauro. Você sabe disso. Ela foi assassinada.
Aquela
palavra fez o coração de Mauro parar de bater, por um único instante, e então
disparar, todo fora de ritmo.
A
verdade doía. O caixão de Elizabeth estava fechado, impossibilitando assim que
os convidados à cerimônia pudessem presenciar a cena surreal do corpo daquela
garotinha. Doze anos, somente isso, assassinada de maneira cruel, brutal, por
um desmiolado de sentimentos infames. Doze anos, e mesmo assim alvejada por um
homem mais velho, mais forte, mais absurdamente louco.
Elizabeth
fora assassinada, como dizia Daiana. Isso nunca mudaria.
—E
qual a diferença? —tentou Mauro, engolindo seu orgulho de pai, seu orgulho de
homem, que ordenava a seu corpo que buscasse aquele vilão para uma vingança
gélida. —Ela está morta. Eu a perdi. Não você.
—Eu
também perdi uma filha aqui, Mauro.
—Você
a perdeu há muito tempo, Daiana. Perdeu porque preferiu assim. Perdeu para nos
trocar por uma nova família.
Daiana
suspirou, impaciente.
—É
difícil lidar com pessoas assim.
—Também
acho. Abandono é uma coisa absurda.
Ela
respirou outra vez, devagar.
—Sucesso
em sua recuperação. Eu vou estar por aí.
—Não
esteja. Eu não preciso de você.
Com
um aceno de mãos, Daiana se retirou, quase que no mesmo instante em que um
rosto conhecido, mas não admirado, se aproximava.
—Você
está bem?
A
pergunta vinha de Rubens, o velho proprietário do escritório, patrão de Mauro.
Ele poderia ser considerado um bom homem, levando em conta que pagava o salário
que sustentava as refeições de Mauro e de sua filha. Fora isso, não, não
prestava. Aproveitador, ganancioso, ambicioso, mesquinho e idiota. Humano, em
resumo.
Ele
ajeitava os bigodes curvos com as mãos quando fez sua pergunta, e Mauro
imaginou infinitos xingamentos para um gordo capaz de perguntar a um pai que
acaba de perder sua filha se ele está bem.
—Devo
estar. Ou devo ficar, em breve. A vida é assim mesmo.
—Meus
pêsames. Você tem seus sete dias de luto. Vê se melhora, se cuida, sei lá. Faz
um passeio para aliviar, pensa em outra coisa. A vida continua. Vou estar
esperando seu retorno. Boa sorte.
Filho
de uma puta.
Isso
era um pensamento, um pensamento que deveria ter se tornado uma frase, e
possivelmente um início de espancamento, mas que, no final, foi apenas isso: um
pensamento.
Quando
ele foi embora, Mauro ficou sozinho outra vez. O enterro demoraria algumas
horas ainda. Ele não estava preparado para isso. Se aproximou do caixão, jogou
suas flores sobre o objeto, despediu-se da filha com um aceno sem esperanças.
Ela não voltaria, era um fato. Ele não ficaria esperando.
Algumas pessoas tentaram se
aproximar, dar um abraço ou desejar melhoras, oferecer ajuda, coisas assim.
Mauro recusou todo o afeto e saiu, sem olhar para trás, deixando naquele lugar
um pedaço de sua vida e de sua história.
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