6
O
SONO É TRANQUILO QUANDO ESTAMOS TRANQUILOS. Mauro não estava tranquilo, e
assim, sonhava. Pesadelos, na verdade. Sonhos negros, conturbados, abstratos e
surreais, porém malignos e tormentosos.
Naquele
sonho, Mauro estava amarrado a uma cadeira de balanço. Ela rangia a cada
movimento, empurrada por um vento que não aliviava o calor desumano que ele
sentia naquele lugar. O cenário, por sua vez, era obscuro, uma mancha negra num
palco alvo. Era como se a cadeira de balanço estivesse suspensa no escuro da
noite, e dali Mauro podia ver as estrelas, a lua e algumas poucas nuvens de
chuva.
À
sua frente, algo balançava de maneira rítmica, acompanhando os rangidos da
cadeira de balanço. Era uma corda surrada, amarrada ao nada, sacudindo da
esquerda para a direita como um pêndulo de relógio. O tique-taque, no entanto,
era um murmúrio, um ganido.
Alguém
estava enforcado.
Mauro
queria enxergar, mas não conseguia. Forçava os olhos, tentava ver além, o
escuro não permitia. De súbito, alguém empurrou sua cadeira. Ele olhou para
trás e viu mãos femininas, carinhosas e delicadas, ainda que o rosto não lhe
fosse visível. Sentiu saudades daquelas mãos, daquele toque. Queria aqueles
dedos em seu corpo, em sua pele, não na cadeira que lhe sustentava. Queria
aquele corpo para si.
A
cadeira se aproximou da pessoa enforcada. Mauro gritou, chocado.
Era
sua filha.
Elizabeth
fedia carniça. Sacudindo como um porco num açougue, a garota tinha cicatrizes
por todo o corpo, o sangue gangrenado nos ferimentos. Sua boca guardava um
sorriso asqueroso.
Mesmo
que morta, ela se virou para Mauro e abriu os olhos.
—Você
prometeu cuidar de mim, pai —bradou a menina, e sua voz escarrou moscas e
baratas e vermes. —Você prometeu e falhou.
Mauro
olhou para trás, confirmando que as mãos que empurrava sua cadeira de balanço
eram de Daiana, sua antiga esposa.
—Eu
pensei que você cuidaria dela quando eu não estivesse aqui —disse a mulher.
—Pensei que podíamos confiar em você. Como pude me enganar assim?
Um
telefone tocou no escuro.
Assustado,
Mauro acordou suando frio. Era seu celular que tocava sobre a cômoda. Antes de
atender, olhou as horas: pouco mais de vinte e três. Pelo tormento que o sonho
lhe garantira, chutava que já seria madrugada, mas ainda era cedo.
Atendeu
o número desconhecido.
—Alô?
—Mauro?
—perguntou a familiar voz feminina.
—Sim.
Quem fala?
—Sou
eu, Luciana. Troquei meu celular na semana passada, mas não tive tempo de te
passar o número novo. Aproveita a ligação pra marcar aí na sua agenda. Tudo
bem?
—Acho
que sim. Aconteceu alguma coisa? Meio tarde pra uma ligação casual.
—Casual?
—Luciana riu em deboche. —Você saiu no meio do trabalho hoje. Rubens te mandou
descansar, você sabe como aquele cara é mercenário. Não é uma ligação casual,
bobinho. Eu só tô preocupada contigo. Como você tá?
—Sei
lá —foi a resposta de Mauro. —Eu nem me sinto muito vivo, pra ser sincero. Tô
meio estranho. O tempo passou, mas eu ainda fico vazio. Não consigo dormir tão
bem, e quando durmo tenho pesadelos. Coisa de louco.
—As
coisas têm sido bem loucas ultimamente. Faz o seguinte: vou passar aí na sua
casa.
—Agora?
—É,
agora. A gente dá uma volta, bebe alguma coisa, sabe como é. Alivia. Também não
tive um dia muito legal. Rubens falou umas merdas pra mim. Ele tá estressado
demais com as coisas, ultimamente.
—Não
sei se serei o melhor conselheiro da noite...
—Para
com isso, Mauro! Ficar trancado dentro de casa não vai resolver nada. Tô aqui
na porta, desce quando estiver pronto.
—Como
assim?
—Digamos
que eu estava por perto —disse ela, sorrindo. —Vai descer ou não?
Mauro
desligou o telefone e trocou de roupa. Vestiu uma camisa fresca, sem se
preocupar com desodorante, cabelo ou sapatos novos. Desceu até o portão e
deparou-se com Luciana, que aguardava com o carro ligado.
—Entra
aí —disse ela.
Ele
entrou, e ela dirigiu sem muitas palavras até um bar de renome local.
Estacionou na esquina, desceu do carro, Mauro a acompanhou. Quando entraram,
viram que a boate não estava com grande movimento, o que era bom. Não queriam
uma festa imensa: queriam tranquilidade para conversar.
Luciana
acenou para um garçom, que trouxe duas cervejas para a mesa dela.
—Como
foi seu dia? —perguntou ela.
—Terrível.
—Mauro se lembrava do velho e da garota, mas fazia um esforço imenso para
reprimir aquela memória em sua mente. —Eu supero. O que aconteceu no
escritório?
—Ah,
o de sempre. Deixa isso pra lá. Não quero falar dos meus problemas, você sabe.
É você o cara que tá meio doido por aqui.
—Claro,
obrigado.
—Estamos
aí. Tá se sentindo estranho por beber com uma mulher?
—Deveria?
Luciana
deu de ombros.
—Sei
lá. Você e o Felipe sempre saem. Quis fazer diferente dessa vez. Mostrar que
você não tá sozinho. Deve fazer bem.
Mauro
respondeu com dois goles de sua bebida.
—Acho
que isso tá meio fraco —disse ele, olhando para a lata que tinha nas mãos.
—Tá
querendo beber pra esquecer?
Ele
suspirou.
—Nem
bebendo eu esqueço essas coisas, sabe. Mas seria uma boa ideia.
Luciana
sinalizou outra vez, mas agora o garçom trouxe dois drinques de destiladas.
—Essa
deve ser forte o suficiente —brincou ela, oferecendo a Mauro o copo da bebida.
Mauro provou o drinque, e algo em seu corpo grunhiu como um porco abatido.
—Que
merda é essa?
—Pensei
que queria algo forte —zombou Luciana.
—Quero
esquecer os problemas, não o caminho de casa.
—Eu
sei o caminho da sua casa. Deixa que eu cuido disso.
Mauro
e Luciana beberam, sem se importar com horário ou limites, e a noite tornou-se
uma criança com sérios problemas compulsivos. Pediram uma porção de fritas, mas
ela não permaneceu muito tempo no estômago de Luciana, que devolveu ao próprio
estabelecimento numa das viagens de minuto a minuto que ela fazia ao banheiro. Tomaram
drinques diferentes, bebidas de cores fortes e vibrantes, misturaram muita
coisa.
O
relógio marcava alguma coisa parecida com ovelhas
albina horas, e aquilo possivelmente significava que estava na hora de ir
para casa.
—É
melhor irmos —disse um dos dois, ou ambos, ou ninguém, mas eles foram mesmo
assim.
Alguém
pagou a conta, alguém abriu a porta do carro, alguém entrou primeiro e dirigiu.
As ruas pareciam tortas, perdidas. O caminho mudava a cada segundo. As calçadas
gemiam como monstros anormais, e os prédios urravam mais alto do que ursos
buscando por filhotes desaparecidos.
O
carro parou, em frente a uma casa que Luciana e Mauro não sabiam dizer de quem
era.
—Você
quer entrar? —um dos dois perguntou, com a voz amolecida.
—Não
sei se deveria sair do carro —respondeu o outro.
—Nem
eu. Vamos lá.
—Vamos
sim.
O
mundo girou, ouviu-se passos, toques na parede, o estrondo de alguém caindo,
então silêncio. No meio do silêncio, gemidos, depois silêncio outra vez e mais
nada.
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