segunda-feira, 24 de junho de 2013

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 6 [Web Novela]

6

O SONO É TRANQUILO QUANDO ESTAMOS TRANQUILOS. Mauro não estava tranquilo, e assim, sonhava. Pesadelos, na verdade. Sonhos negros, conturbados, abstratos e surreais, porém malignos e tormentosos.
Naquele sonho, Mauro estava amarrado a uma cadeira de balanço. Ela rangia a cada movimento, empurrada por um vento que não aliviava o calor desumano que ele sentia naquele lugar. O cenário, por sua vez, era obscuro, uma mancha negra num palco alvo. Era como se a cadeira de balanço estivesse suspensa no escuro da noite, e dali Mauro podia ver as estrelas, a lua e algumas poucas nuvens de chuva.
À sua frente, algo balançava de maneira rítmica, acompanhando os rangidos da cadeira de balanço. Era uma corda surrada, amarrada ao nada, sacudindo da esquerda para a direita como um pêndulo de relógio. O tique-taque, no entanto, era um murmúrio, um ganido.
Alguém estava enforcado.
Mauro queria enxergar, mas não conseguia. Forçava os olhos, tentava ver além, o escuro não permitia. De súbito, alguém empurrou sua cadeira. Ele olhou para trás e viu mãos femininas, carinhosas e delicadas, ainda que o rosto não lhe fosse visível. Sentiu saudades daquelas mãos, daquele toque. Queria aqueles dedos em seu corpo, em sua pele, não na cadeira que lhe sustentava. Queria aquele corpo para si.
A cadeira se aproximou da pessoa enforcada. Mauro gritou, chocado.
Era sua filha.
Elizabeth fedia carniça. Sacudindo como um porco num açougue, a garota tinha cicatrizes por todo o corpo, o sangue gangrenado nos ferimentos. Sua boca guardava um sorriso asqueroso.
Mesmo que morta, ela se virou para Mauro e abriu os olhos.
—Você prometeu cuidar de mim, pai —bradou a menina, e sua voz escarrou moscas e baratas e vermes. —Você prometeu e falhou.
Mauro olhou para trás, confirmando que as mãos que empurrava sua cadeira de balanço eram de Daiana, sua antiga esposa.
—Eu pensei que você cuidaria dela quando eu não estivesse aqui —disse a mulher. —Pensei que podíamos confiar em você. Como pude me enganar assim?
Um telefone tocou no escuro.
Assustado, Mauro acordou suando frio. Era seu celular que tocava sobre a cômoda. Antes de atender, olhou as horas: pouco mais de vinte e três. Pelo tormento que o sonho lhe garantira, chutava que já seria madrugada, mas ainda era cedo.
Atendeu o número desconhecido.
—Alô?
—Mauro? —perguntou a familiar voz feminina.
—Sim. Quem fala?
—Sou eu, Luciana. Troquei meu celular na semana passada, mas não tive tempo de te passar o número novo. Aproveita a ligação pra marcar aí na sua agenda. Tudo bem?
—Acho que sim. Aconteceu alguma coisa? Meio tarde pra uma ligação casual.
—Casual? —Luciana riu em deboche. —Você saiu no meio do trabalho hoje. Rubens te mandou descansar, você sabe como aquele cara é mercenário. Não é uma ligação casual, bobinho. Eu só tô preocupada contigo. Como você tá?
—Sei lá —foi a resposta de Mauro. —Eu nem me sinto muito vivo, pra ser sincero. Tô meio estranho. O tempo passou, mas eu ainda fico vazio. Não consigo dormir tão bem, e quando durmo tenho pesadelos. Coisa de louco.
—As coisas têm sido bem loucas ultimamente. Faz o seguinte: vou passar aí na sua casa.
—Agora?
—É, agora. A gente dá uma volta, bebe alguma coisa, sabe como é. Alivia. Também não tive um dia muito legal. Rubens falou umas merdas pra mim. Ele tá estressado demais com as coisas, ultimamente.
—Não sei se serei o melhor conselheiro da noite...
—Para com isso, Mauro! Ficar trancado dentro de casa não vai resolver nada. Tô aqui na porta, desce quando estiver pronto.
—Como assim?
—Digamos que eu estava por perto —disse ela, sorrindo. —Vai descer ou não?
Mauro desligou o telefone e trocou de roupa. Vestiu uma camisa fresca, sem se preocupar com desodorante, cabelo ou sapatos novos. Desceu até o portão e deparou-se com Luciana, que aguardava com o carro ligado.
—Entra aí —disse ela.
Ele entrou, e ela dirigiu sem muitas palavras até um bar de renome local. Estacionou na esquina, desceu do carro, Mauro a acompanhou. Quando entraram, viram que a boate não estava com grande movimento, o que era bom. Não queriam uma festa imensa: queriam tranquilidade para conversar.
Luciana acenou para um garçom, que trouxe duas cervejas para a mesa dela.
—Como foi seu dia? —perguntou ela.
—Terrível. —Mauro se lembrava do velho e da garota, mas fazia um esforço imenso para reprimir aquela memória em sua mente. —Eu supero. O que aconteceu no escritório?
—Ah, o de sempre. Deixa isso pra lá. Não quero falar dos meus problemas, você sabe. É você o cara que tá meio doido por aqui.
—Claro, obrigado.
—Estamos aí. Tá se sentindo estranho por beber com uma mulher?
—Deveria?
Luciana deu de ombros.
—Sei lá. Você e o Felipe sempre saem. Quis fazer diferente dessa vez. Mostrar que você não tá sozinho. Deve fazer bem.
Mauro respondeu com dois goles de sua bebida.
—Acho que isso tá meio fraco —disse ele, olhando para a lata que tinha nas mãos.
—Tá querendo beber pra esquecer?
Ele suspirou.
—Nem bebendo eu esqueço essas coisas, sabe. Mas seria uma boa ideia.
Luciana sinalizou outra vez, mas agora o garçom trouxe dois drinques de destiladas.
—Essa deve ser forte o suficiente —brincou ela, oferecendo a Mauro o copo da bebida. Mauro provou o drinque, e algo em seu corpo grunhiu como um porco abatido.
—Que merda é essa?
—Pensei que queria algo forte —zombou Luciana.
—Quero esquecer os problemas, não o caminho de casa.
—Eu sei o caminho da sua casa. Deixa que eu cuido disso.
Mauro e Luciana beberam, sem se importar com horário ou limites, e a noite tornou-se uma criança com sérios problemas compulsivos. Pediram uma porção de fritas, mas ela não permaneceu muito tempo no estômago de Luciana, que devolveu ao próprio estabelecimento numa das viagens de minuto a minuto que ela fazia ao banheiro. Tomaram drinques diferentes, bebidas de cores fortes e vibrantes, misturaram muita coisa.
O relógio marcava alguma coisa parecida com ovelhas albina horas, e aquilo possivelmente significava que estava na hora de ir para casa.
—É melhor irmos —disse um dos dois, ou ambos, ou ninguém, mas eles foram mesmo assim.
Alguém pagou a conta, alguém abriu a porta do carro, alguém entrou primeiro e dirigiu. As ruas pareciam tortas, perdidas. O caminho mudava a cada segundo. As calçadas gemiam como monstros anormais, e os prédios urravam mais alto do que ursos buscando por filhotes desaparecidos.
O carro parou, em frente a uma casa que Luciana e Mauro não sabiam dizer de quem era.
—Você quer entrar? —um dos dois perguntou, com a voz amolecida.
—Não sei se deveria sair do carro —respondeu o outro.
—Nem eu. Vamos lá.
—Vamos sim.

O mundo girou, ouviu-se passos, toques na parede, o estrondo de alguém caindo, então silêncio. No meio do silêncio, gemidos, depois silêncio outra vez e mais nada.

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