O Fogo e o Vento
Após
mais um exaustivo dia de trabalho, os quatro elementos se reuniram na Colina do
Fim do Mundo para conversar. Falaram sobre seus afazeres, sobre o mundo, sobre
os ciclos da vida e sobre os humanos, ainda que não apreciassem tal assunto em
demasia. A Terra estava cansada, sempre reclamando das dores que aquele povinho
ingrato lhe causava, e foi a primeira a se deitar para descansar. Logo em
seguida, a Água a acompanhou, já contaminada pela ambição errônea que uma raça
que tanto precisava dela lhe deixava sofrer. Restaram, sentados em bancos de
chamas e de ar, somente o Fogo e o Vento.
Os
quatro elementos, a cada dia, tomavam uma forma diferente, de acordo com suas
próprias vontades. Às vezes eram homens e mulheres, e às vezes, também, eram
dragões e feras fantásticas. Naquele dia, o Fogo era uma garota miúda e
franzina, e o Vento era um menino magricela, de pele morena e olhos ventosos.
—Sempre
ficamos os dois, a sós —o Fogo falou, risonho, e falava a verdade.
—É
o destino que o mundo seguiu —contou o Vento. —Sabe como é. O verde das folhas
e o marrom do solo, tudo é a Terra, e ela já não é mais respeitada. Nem mesmo a
Água, tão necessária, é reverenciada como um dia o foi. O mundo já não é mais o
mesmo, e sabemos bem disso.
O
Vento pigarreou, limpando a garganta, e engasgou ao tentar iniciar um novo
discurso, lançando-se numa crise de tosse.
—Você
também não me parece bem —disse o Fogo, meio preocupado, meio irônico. —Tem enfrentado
as mesmas dificuldades?
—As
de sempre —foi a resposta do Vento. —O ar impuro, a poluição, a fumaça de um
povo que vive para trabalhar. Nada fora do comum. —Tossiu outra vez, o peito
ardendo. —Alguns dias, machuca mais do que o normal.
—Só
eu fico de fora desse sofrimento...
—É.
Só você.
Silêncio.
Um
sussurro foi carregado pela brisa, e o Vento o engoliu, singelo.
—É
meio triste —começou o Fogo, depois de um tempo. —Não dói. Não em mim, pelo
menos. Mas todos vocês sentem essa mesma dor, cada um do seu jeito.
—Você
também tem a sua dor —o Vento tentou, em vão.
—Não
é a mesma coisa —o Fogo retrucou, emburrado.
—Eu
disse algo de errado? —O Vento parecia assustado, preparando um pedido de
desculpas, mas:
—E
há algo certo a se dizer? —foram as palavras do Fogo. —Eu vivo numa eterna
briga. Queria fazer diferente, às vezes.
—Cada
um de nós faz o que sabe fazer de melhor. Eu vento. —Sorriu. —Você, queima. Está fazendo isso agora, se me
permite dizer.
—É
da minha natureza. Vão restar só as cinzas.
—Tudo
bem. Eu vento. E, assim, eu sigo.
O
Fogo deu de ombros.
—Acho
que ando muito esquentada —brincou o Fogo,
e riu, debochando de si mesmo. —Não sei bem o quê pensar. Tenho medo de ser
diferente. Tenho medo de sempre queimar, de sempre ferir.
O
Vento estendeu seu braço, tocando a pele do Fogo com suas mãos. Ele não se
queimou.
—Está
tudo bem —disse ele. —Eu vento, como
disse. Sopro o fogo, apago. Levo a fumaça embora. Trago de volta só o que
servir.
O
Fogo admirou o Vento pelas suas palavras, mas ainda sentia-se inseguro.
—No
fim, acaba sendo melhor do que —o Vento continuou. —Estou sempre sozinho.
Sempre seguindo, sempre partindo.
—E
sempre falando —zombou o Fogo. —Mas eu gosto.
O
Vento riu, também. Depois:
—Você
queima. Mas aquece, também. E inspira.
—Me
acostumei com a ideia de só aquecer. Talvez isso te ajude a não se sentir tão
sozinho. Entenda como um segredo, se preferir. Eu gosto de segredos.
—Mas
esse segredo não pode me ajudar. Você aquece, acolhe. Mesmo que queime ou
machuque, ainda atrai. Eu vento, sigo. Quando se aproximam, eu sigo. Quando eu
me aproximo, me perco. —Pensou, por um suspiro. —Quando acelero, disperso;
quando paro, inexisto.
O
Fogo abriu a boca para dizer algo, mas se calou, esperando pelas palavras que o
Vento proferiu:
—Seria
bom levar embora as coisas ruins, trazer de volta só as coisas boas. Carregar
lágrimas, ventar novos sorrisos. Já o
fiz, um dia. Acho que hoje já não sei voltar.
—Talvez
você não deva voltar —refletiu o Fogo. —É a sua força. Você foi feito para
sempre seguir em frente.
—Pra
levar todas as tristezas sem devolver felicidades? —perguntou o Vento, achando
graça em sua própria infelicidade. —Ficaria com todas as lágrimas pra mim. Tem
choro demais pra carregar. Até o vento pesa.
—Quer
me convencer de que o Vento é terrível? —o Fogo indagou, e o Vento fez que não.
—Não
sou terrível. Mas me aterrorizo com isso. Só o próprio Vento vê o Vento como
sofrível.
—Mas
eu, ainda assim, gosto de correr atrás do Vento —contou o Fogo. —Por tudo o que
me mostrou um dia, por tudo o que carregou de mim. Por tudo o que trouxe para
mim, também.
—Bem
como eu não posso evitar o Fogo que, um dia, já me acolheu.
—E
te queimou?
—A
vida machuca —foi a resposta do Vento. —Se eu tenho de me queimar pra me
aquecer, tudo bem. Antes isso do que viver num eterno frio.
O
Fogo sorriu, feliz. Há tempos não se sentia assim. Vendo tal felicidade, o
Vento também sorriu.
Atrás
dos bancos, Terra e Água já roncavam.
—Acho
que temos que descansar —disse o Fogo. —Foi bom conversar com você, Vento.
—Foi
uma boa conversa, por sua culpa.
—Eu
só fui a faísca.
—E
eu só espalhei o Fogo —riu o Vento. —Não faço nada sozinho. Preciso de uma
centelha, de uma fagulha. —Demorou um segundo para concluir suas palavras: —Preciso
de você.
O
Fogo não soube o que dizer.
—Ou
morro de frio —o Vento zombou, e ambos riram. —Agora, vamos descansar. Temos
mais um dia cheio de Fogo e de Vento pela frente.
O
Fogo assentiu, e ambos se deitaram, cada qual em seu lugar. O Vento, tossindo pela
tortura do existir, adormeceu rápido demais, num sono sem sonhos. O Fogo
demorou para dormir. Deitado sobre suas mãos, olhava o Vento em sua forma de
menino, os olhos fechados, dóceis.
—Obrigado,
Vento —murmurou o Fogo para si mesmo. —Sem você, sou incapaz de existir.
E
só então adormeceu, sorrindo.
Pela
primeira vez desde muito tempo, teve bons sonhos, com pitadas de esperança
carregadas por uma brisa suave e harmônica.
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