sábado, 15 de junho de 2013

Conto - O Fogo e o Vento

Em agradecimento, e homenagem, a uma amiga que diz ser como o Fogo.

O Fogo e o Vento

Após mais um exaustivo dia de trabalho, os quatro elementos se reuniram na Colina do Fim do Mundo para conversar. Falaram sobre seus afazeres, sobre o mundo, sobre os ciclos da vida e sobre os humanos, ainda que não apreciassem tal assunto em demasia. A Terra estava cansada, sempre reclamando das dores que aquele povinho ingrato lhe causava, e foi a primeira a se deitar para descansar. Logo em seguida, a Água a acompanhou, já contaminada pela ambição errônea que uma raça que tanto precisava dela lhe deixava sofrer. Restaram, sentados em bancos de chamas e de ar, somente o Fogo e o Vento.
Os quatro elementos, a cada dia, tomavam uma forma diferente, de acordo com suas próprias vontades. Às vezes eram homens e mulheres, e às vezes, também, eram dragões e feras fantásticas. Naquele dia, o Fogo era uma garota miúda e franzina, e o Vento era um menino magricela, de pele morena e olhos ventosos.
—Sempre ficamos os dois, a sós —o Fogo falou, risonho, e falava a verdade.
—É o destino que o mundo seguiu —contou o Vento. —Sabe como é. O verde das folhas e o marrom do solo, tudo é a Terra, e ela já não é mais respeitada. Nem mesmo a Água, tão necessária, é reverenciada como um dia o foi. O mundo já não é mais o mesmo, e sabemos bem disso.
O Vento pigarreou, limpando a garganta, e engasgou ao tentar iniciar um novo discurso, lançando-se numa crise de tosse.
—Você também não me parece bem —disse o Fogo, meio preocupado, meio irônico. —Tem enfrentado as mesmas dificuldades?
—As de sempre —foi a resposta do Vento. —O ar impuro, a poluição, a fumaça de um povo que vive para trabalhar. Nada fora do comum. —Tossiu outra vez, o peito ardendo. —Alguns dias, machuca mais do que o normal.
—Só eu fico de fora desse sofrimento...
—É. Só você.
Silêncio.
Um sussurro foi carregado pela brisa, e o Vento o engoliu, singelo.
—É meio triste —começou o Fogo, depois de um tempo. —Não dói. Não em mim, pelo menos. Mas todos vocês sentem essa mesma dor, cada um do seu jeito.
—Você também tem a sua dor —o Vento tentou, em vão.
—Não é a mesma coisa —o Fogo retrucou, emburrado.
—Eu disse algo de errado? —O Vento parecia assustado, preparando um pedido de desculpas, mas:
—E há algo certo a se dizer? —foram as palavras do Fogo. —Eu vivo numa eterna briga. Queria fazer diferente, às vezes.
—Cada um de nós faz o que sabe fazer de melhor. Eu vento. —Sorriu. —Você, queima. Está fazendo isso agora, se me permite dizer.
—É da minha natureza. Vão restar só as cinzas.
—Tudo bem. Eu vento. E, assim, eu sigo.
O Fogo deu de ombros.
—Acho que ando muito esquentada —brincou o Fogo, e riu, debochando de si mesmo. —Não sei bem o quê pensar. Tenho medo de ser diferente. Tenho medo de sempre queimar, de sempre ferir.
O Vento estendeu seu braço, tocando a pele do Fogo com suas mãos. Ele não se queimou.
—Está tudo bem —disse ele. —Eu vento, como disse. Sopro o fogo, apago. Levo a fumaça embora. Trago de volta só o que servir.
O Fogo admirou o Vento pelas suas palavras, mas ainda sentia-se inseguro.
—No fim, acaba sendo melhor do que —o Vento continuou. —Estou sempre sozinho. Sempre seguindo, sempre partindo.
—E sempre falando —zombou o Fogo. —Mas eu gosto.
O Vento riu, também. Depois:
—Você queima. Mas aquece, também. E inspira.
—Me acostumei com a ideia de só aquecer. Talvez isso te ajude a não se sentir tão sozinho. Entenda como um segredo, se preferir. Eu gosto de segredos.
—Mas esse segredo não pode me ajudar. Você aquece, acolhe. Mesmo que queime ou machuque, ainda atrai. Eu vento, sigo. Quando se aproximam, eu sigo. Quando eu me aproximo, me perco. —Pensou, por um suspiro. —Quando acelero, disperso; quando paro, inexisto.
O Fogo abriu a boca para dizer algo, mas se calou, esperando pelas palavras que o Vento proferiu:
—Seria bom levar embora as coisas ruins, trazer de volta só as coisas boas. Carregar lágrimas, ventar novos sorrisos. Já o fiz, um dia. Acho que hoje já não sei voltar.
—Talvez você não deva voltar —refletiu o Fogo. —É a sua força. Você foi feito para sempre seguir em frente.
—Pra levar todas as tristezas sem devolver felicidades? —perguntou o Vento, achando graça em sua própria infelicidade. —Ficaria com todas as lágrimas pra mim. Tem choro demais pra carregar. Até o vento pesa.
—Quer me convencer de que o Vento é terrível? —o Fogo indagou, e o Vento fez que não.
—Não sou terrível. Mas me aterrorizo com isso. Só o próprio Vento vê o Vento como sofrível.
—Mas eu, ainda assim, gosto de correr atrás do Vento —contou o Fogo. —Por tudo o que me mostrou um dia, por tudo o que carregou de mim. Por tudo o que trouxe para mim, também.
—Bem como eu não posso evitar o Fogo que, um dia, já me acolheu.
—E te queimou?
—A vida machuca —foi a resposta do Vento. —Se eu tenho de me queimar pra me aquecer, tudo bem. Antes isso do que viver num eterno frio.
O Fogo sorriu, feliz. Há tempos não se sentia assim. Vendo tal felicidade, o Vento também sorriu.
Atrás dos bancos, Terra e Água já roncavam.
—Acho que temos que descansar —disse o Fogo. —Foi bom conversar com você, Vento.
—Foi uma boa conversa, por sua culpa.
—Eu só fui a faísca.
—E eu só espalhei o Fogo —riu o Vento. —Não faço nada sozinho. Preciso de uma centelha, de uma fagulha. —Demorou um segundo para concluir suas palavras: —Preciso de você.
O Fogo não soube o que dizer.
—Ou morro de frio —o Vento zombou, e ambos riram. —Agora, vamos descansar. Temos mais um dia cheio de Fogo e de Vento pela frente.
O Fogo assentiu, e ambos se deitaram, cada qual em seu lugar. O Vento, tossindo pela tortura do existir, adormeceu rápido demais, num sono sem sonhos. O Fogo demorou para dormir. Deitado sobre suas mãos, olhava o Vento em sua forma de menino, os olhos fechados, dóceis.
—Obrigado, Vento —murmurou o Fogo para si mesmo. —Sem você, sou incapaz de existir.
E só então adormeceu, sorrindo.

Pela primeira vez desde muito tempo, teve bons sonhos, com pitadas de esperança carregadas por uma brisa suave e harmônica.

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