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DURANTE
SEIS DIAS, MAURO NÃO VIU A COR DAS RUAS.
Preso
dentro de sua própria casa, pensava no que fazer. Nada mais fazia sentido,
nenhuma escolha parecia vantajosa o bastante. Ele não tinha Daiana, não tinha
Elizabeth, não tinha nada. A comida parecia não ter gosto, a água não saciava a
sede, e ele se sentia morrendo por dentro, parte a parte, órgão a órgão.
Naqueles
dias, Mauro morreu em vida, e essa é a pior das mortes. Quando se morre por
dentro, você se ergue somente para enxergar a própria dor. Nada parece bom, e o
futuro nunca mais vai parecer agradável. Não se tem vontade, não se tem mais
sonhos.
Ah,
e os sonhos, por falar neles, é uma das coisas que mais dói! Quando se morre em
vida, a vida já morta faz de você seu próprio herdeiro, disponível para se
agraciar com todas as suas dívidas, todos os problemas e todas as lamentações.
Você morre para melhorar, mas vive para ver seus sonhos se partirem, um a um,
como escadas de vidro que quebram sob os pés de quem ousa escalar. Tendo como
herança todas as dificuldades, resta agora se levantar, abrir os olhos e
recomeçar, da melhor maneira possível.
Talvez,
para Mauro, não houvesse uma melhor maneira possível. Talvez sequer houvesse
uma maneira. Mas ele tinha que recomeçar, e ponto.
Durante
os dias que passou confinado em sua casa, Mauro assistiu bastante televisão.
Via todos os dias casos de assassinatos, estupros e violência, e nunca aquilo
tudo foi tão desprezível. Ele sentia raiva, por dentro, queimava a ponto de não
se controlar.
Na
última das noites, quando assistia o noticiário anunciar mais um dia de buscas
pelo assassino de sua filha, ele desligou o televisor. Tirou sua roupa e tomou
um banho quente, na esperança de que o calor expurgasse o caos de sua mente,
mas nada deu certo. Quando voltou a seu quarto, deparou-se com Daiana.
—Me
desculpe, não queria atrapalhar o seu banho, eu —começou ela, mas Mauro
interrompeu.
—O
que faz aqui? Aliás, como entrou aqui?! Essa é a minha casa, sua doida!
—Eu...
Eu morei aqui também, se lembra? Ainda tenho as chaves. Não sei porque, mas eu
as guardei. Já se passaram três anos, não é?
—Saia
daqui, Daiana.
A
antiga esposa se sentou na cama de casal que nunca mais fora usada por um
casal. Cruzou as pernas, ajeitou os cabelos e, com toda a calma do mundo,
falou:
—Eu
estou tentando te ajudar, Mauro. Você não está bem. Sabe que eu não tô
mentindo. As coisas podem continuar a dar errado, você sabe. Talvez devesse
procurar ajuda, ou mesmo aceitar a minha! Ninguém consegue se virar sozinho
nessas horas.
Mauro
riu com deboche. Deixou a toalha cair, vestiu sua cueca e suas calças, enxugou
os cabelos. Só depois disse:
—Então,
depois de todo esse tempo, você volta e diz que quer me ajudar. Me abandona,
espera os anos passarem, e então está aqui, como se nada tivesse acontecido.
—Não
é bem assim...
—O
que foi, ele te deixou? Aquele cara te abandonou, é? Você foi traída? É por
isso que veio atrás de mim?
Daiana
suspirou, os olhos começando a lacrimejar. Algo estava engasgado em sua
garganta, mas ela não parecia pronta para falar sobre aquilo.
—Não
é por isso que estou aqui, Mauro. Eu estou aqui por outra razão.
—E
qual é a sua razão, mulher?!
Mauro
se exaltava.
—A
nossa filha está morta —choramingou ela. —Elizabeth foi assassinada. É por isso
que estou aqui. Sem ela, você não tem ninguém. Você está sozinho. Até quando
pretende não enxergar isso?
—Tá
legal, Daiana, você já falou tudo o que tinha pra falar. Tem mais alguma coisa?
A
antiga esposa respirou, se levantou da cama e caminhou até Mauro com passos de
modelo. Com os braços delicados que somente ela possuía, envolveu o ex-marido
num abraço suave, carinhoso e aconchegante, e só então ele percebeu o que
estava sentindo.
Por
muito tempo, por muitos anos, ele colocou na cabeça que tinha de sentir raiva
daquela mulher. Imaginou que todo o seu sentimento, que toda a sua paixão tinha
de ser convertida para um ódio sem igual graças ao abandono, mas mentia. Ele
sentia falta dela. Sentia saudades dos seus abraços, dos seus beijos, do seu
amor.
E
ali, naquele abraço, pela primeira vez desde a morte da filha, e talvez desde o
divórcio, Mauro chorou de verdade, expelindo toda a dor que residia em seu
corpo na forma de lágrimas pesadas e doloridas.
Daiana
não disse mais nada. Após o abraço, foi embora, deixou Mauro sozinho outra vez.
Ele pensou em muitas coisas, muitas coisas mesmo, mas a primeira delas que
realizou foi trocar a fechadura. Não podia permitir que ela entrasse ali outra
vez. Se permitisse, fraquejaria novamente nos seus braços, e ela o veria assim,
como realmente era: fraco.
Naquela
noite, Mauro não assistiu televisão. Era sua última noite no luto, trabalharia
na manhã seguinte. Ligou para Felipe, chamou-o para um drinque. Os dois se
sentaram num bar, mas não conversaram sobre nada. Felipe respeitou o silêncio
de Mauro. Ambos beberam demais, passaram dos limites.
Naquela noite, as viaturas da
polícia tiveram um trabalho incomum.
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