5
O
CLIMA FRIO FAZIA DAS RUAS UM LUGAR INCÔMODO. Mauro sempre gostou da liberdade.
Sempre perdeu tempo olhando o ar ao seu redor, o vento, o céu. Agora, não mais.
Agora o mundo parecia grande demais para ele. Grande demais para tudo.
Ou
talvez fosse ele pequeno demais para o restante do universo.
Já
anoitecia. Algumas horas atrás, fora liberado de seu trabalho para um repouso
necessário. Diferente do combinado, não seguiu para sua residência. Decidiu
caminhar. Andar por aí, sem rumo, sem pensamentos. Andar por aí, somente por
andar, para evitar a sensação vazia que sua casa, a qual já não era mais capaz
de chamar de lar, lhe garantia.
Todos
os televisores gritavam notícias sobre as pequenas Júlia e Elizabeth,
afortunadas com um destino fatídico e cruel, nas mãos de um psicopata
alucinado.
—Maldito
seja...
Mauro
estava sozinho, mas às vezes deixava uma frase ou outra escapar. Falava consigo
mesmo. Pensava alto. Enlouquecia.
—Se
eu pudesse encontrá-lo.
Mas
não podia. Não era um herói. Não era um policial, um investigador, um detetive.
Não era ninguém.
—Se
eu soubesse quem ele é.
O
que faria? Uma denúncia anônima que jamais geraria resultados? Uma vingança
fria e tenebrosa, que faria de sua imagem corrompida e deturpada ao invés de
livrá-lo da angústia de coexistir no mundo em que um homem tão asqueroso pode
residir?
—Se
eu pudesse mudar tudo.
Parou.
Na calçada, interrompendo o caminhar de tantas outras pessoas que ele não
notava, Mauro estacou seus passos. Aquele pensamento florescia em seu peito há
muito tempo. Precisamente falando, há mais de três anos.
Se
pudesse mudar tudo, sua casa não seria vazia, fria e silenciosa. Suas cobertas
não teriam somente seu cheiro. Sua cama de casal não teria somente um
travesseiro.
Daiana
portaria uma aliança dourada na mão esquerda, ainda, e Elizabeth estaria
sorrindo neste momento, discutindo com o pai sobre possíveis namoros enquanto
Mauro lhe diria que ela era muito jovem, mesmo sabendo que ela sempre lhe
pareceria muito jovem para crescer e deixar de ser criança.
Se
pudesse mudar tudo, mudaria.
Mas
não podia.
—Sai
da frente, cara!
Um
homem o empurrou, e Mauro se deu conta de que todo seu corpo estava amolecido
pela situação quando quase despencou com o toque indelicado do transeunte.
Pediu desculpas, incapaz de sentir rancor ou infelicidade maior do que aquela
que abraçava seu coração gélido. Prosseguiu sua caminhada. Não sabia para onde
ia, mas sempre seria assim. Não havia um lugar para ir. Talvez não houvesse nem
mesmo um lugar para voltar.
Júlia e Elizabeth são os
dois nomes mais escutados na mídia. As garotas, de idades similares, foram
alvejadas por um homem cruel, cuja mente doentia jamais poderá ser
compreendida. Mas o que leva alguém a agir dessa forma? O que faz com que um
homem se torne um monstro?
Mauro
fechou os olhos e a mente, e decidiu que assim faria toda vez que passasse por
uma loja onde os televisores reportassem o caso de sua filha e da outra garota
assassinada.
De
repente, algo chamou sua atenção. Do outro lado da rua, um homem caminhava de
mãos dadas com uma garota. Ela vestia uma blusa de capuz, enquanto ele tinha um
casaco castanho e barba grisalha por fazer. O velho tinha passos rápidos, a
garota tinha dificuldade em acompanhá-lo. Como se ela não desejasse segui-lo.
Como se ela não o acompanhasse, mas sim fosse forçada a andar.
—Pare!
Mauro
gritou, mais alto do que imaginou que pudesse, e atravessou a rua sem pensar.
Carros derraparam na frenagem desajeitada que o ímpeto de loucura de Mauro os
obrigou. Buzinas ecoaram ao lado de ofensas e xingamentos, todos absurdos numa
revolta temporária. O stress de um dia de trabalho saltou da boca de diversas
pessoas na direção de Mauro, mas ele não os ouvia. Corria, apenas, até alcançar
o calçamento paralelo ao seu, onde o velho caminhava com a garotinha
encapuzada.
—Pare,
agora!
O
que ele estava fazendo?
O
velho e a garota se assustaram.
—Eu
mandei parar!
Eles
não pararam, como ninguém pararia quando um louco desconhecido gritasse daquela
forma.
Mauro
ofegava. Com passos deslocados e tortos, alcançou o velho, saltando em sua
frente como um ladrão em abordagem. O homem de barba grisalha recuou, assustado,
a garota deixou escapar um gritinho de pavor, cobrindo os olhos com as mãos.
—O
que é isso? —o velho perguntou, confuso.
—Eu
sei o que você tá fazendo, cara! —Mauro acusou, mas não sabia. Não sabia nem
mesmo o que ele próprio fazia.
—Quem
é você?!
Mauro
empurrou a garota para longe do velho, puxando-o para perto de si, as mãos
cerradas de maneira firme e ríspida.
—Você
não vai mais matar nenhuma garotinha, seu assassino maldito! —ele gritava, sem
perceber. Todos escutavam. Todos o olhavam com receio de reagir, de ajudar ou
impedir que ele fizesse algo de errado. Todos sentiam pena daquele homem.
—Assassino?!
—o velho parecia atordoado. —Do que você tá falando?
—Não
adianta tentar me enganar, eu sei que você tá levando essa garota!
—Papai,
quem é esse homem?
A
voz da garotinha fez com que Mauro acordasse de seu transe.
Papai.
Era
difícil se recordar de que ele perdera sua filha.
—Ela
é a minha filha, amigo —disse o velhote. —Você não pode acusar as pessoas desse
jeito. Eu poderia te processar, ou coisa —
Antes
que o velho terminasse suas reclamações, Mauro se foi. Correu, como uma criança
humilhada em sua própria brincadeira. Correu, desajeitado como um adulto que
não sabe o que quer, nem mesmo sabe se realmente deseja algo. Correu, pois só
lhe restava correr, mais nada.
Corria,
e via nas calçadas tantos outros suspeitos. Casais apontando para crianças de
colo, homens solteiros usando toucas e coletes, mulheres mais velhas
vistoriando carrinhos de bebê. Tudo parecia suspeito. Tudo parecia errado.
Mas
o erro era ele.
Chegou
em sua casa sem que percebesse. Abriu a porta e entrou, arfando num desespero
que não deveria existir. Lacrou todas as trancas, cobrando de si mesmo uma
segurança surreal, empurrou o sofá contra a porta de madeira que impediria um
invasor de entrar, ou um homem enlouquecido de sair. Tirou suas roupas e
jogou-se sob as águas do chuveiro, deixando que o frio lhe esfriasse os
pensamentos. Ainda nu e molhado, desabou sobre o sofá da sala, fechou os olhos
e tentou se tranquilizar.
—Vai
ficar tudo bem, vai ficar tudo bem.
Nada
estava bem. Nada ficaria bem. Nada poderia ficar bem.
—Eu
não vou deixar nada te machucar, Elizabeth —repetia ele, ainda com os olhos
fechados. —Não vou deixar que nada te machuque.
Mas
ela já estava morta.
—Eu
não vou permitir...
Falando sozinho dessa forma,
Mauro acabou por adormecer, inquieto e suando frio. Suas noites nunca mais
seriam tranquilas.
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