quinta-feira, 6 de junho de 2013

Conto - A Filha do Rei

A Filha do Rei

Debaixo do elmo, os olhos tragavam lembranças charmosas.
Não eram de todo boas, porém. Tinham seu charme, seu perfume atraente, mas também a inescrupulosa trilha das algemas que prendem alguém a um destino indesejado. Assim, enquanto os olhos cintilavam junto de memórias conturbadas, Rowena pouco respirava.
Ela era a filha do rei.
Dietrich III governava aquela terra há tempos, mas nada em seu reinado fora motivo de tanto orgulho quanto o nascimento de sua filha. O nome, cuja releitura seria Lança da Justiça, fora escolhido por sua esposa, a rainha Virna. Abençoado por uma princesa repleta de saúde e por um governo coberto de paz, Dietrich poderia esperar apenas que os anos se passassem e que, na medida do possível, Rowena se espalhasse na beleza da mãe, para que, futuramente, fosse a rainha mais bela que o mundo já vira.
A garota, no entanto, tinha planos distintos.
Criada no auxílio de uma governanta, cuja lealdade já fora posta em prova diversas vezes, Rowena se adaptou aos costumes e às tradições do castelo. Nos braços da sabedoria de Zelinda, sua segunda mãe, a princesa aprendeu a se vestir, a ter bons modos, a falar em público e a comer adequadamente: isso tudo antes dos sete anos. Em seu décimo primeiro inverno, quando indagada sobre um possível presente de aniversário, Rowena não apresentou dúvida alguma na escolha.
—Quero uma espada —disse ela a Zelinda, que se surpreendeu.
—Espadas não se curvam a princesas, milady —a velha amiga murmurou, cuidando para que os nobres não a escutassem. —Tu deves se postar sobre o cetro, arrastar a cauda bordeada de um manto e sapatear em delicados saltos brilhantes.
Mas Rowena queria uma espada, e nada tirava de sua mente um desejo. Demorou algum tempo até que Zelinda conseguisse tal presente. Tivera de roubar de um cavaleiro distraído, e tal soldado quase perde seu posto por uma aventura incerta. A espada curta e polida era pesada para as mãos da princesa, e as encheria de calos, não fossem as ataduras preparadas previamente pela governanta. A garota tentou manusear a arma branca por algum tempo, escondida dos pais e do mundo, mas foi um inverno mais tarde que se dirigiu novamente a Zelinda:
—Ensina-me a lutar —disse a princesa.
—Mas nada sei sobre o combate!
—Vive há anos em meio a cavaleiros, Zelinda! Acha mesmo que acreditarei em tal feito?
Rowena era esperta, mas Zelinda não mentia. Não sabia lutar. Sabia das regras, no entanto. Sabia ensinar, ao menos a teoria, e assim o fez. Entre as aulas de porte e de caminhar, contava sobre os movimentos de lâminas e suas estratégias. Entre as lições de etiqueta e de matemática, narrava conflitos épicos resolvidos por táticas de cavaleiros bem treinados. Rowena escutava tudo, atenta. Quando não escutava, vivia no silêncio, e o silêncio zunia em sua espada, num treinamento que não tinha fim.
Questionando o pai sobre um possível aprendizado da arte da guerra, encontrava sempre a mesma resposta.
—És uma princesa, não um plebeu esfomeado ou um cavaleiro da guarda! —Dietrich parecia inconformado. —Lâmina alguma há de se aproximar da suavidade de tuas mãos, minha filha. A guerra não alcançará meu povo, e mesmo se o fizer, tu jamais a verás.
A ideia da guerra soava assustadora aos olhos de Rowena, mas ela não se intimidava. As batalhas estavam aí, na espreita de quaisquer que fossem as civilizações. Se o estopim lhe alcançasse, ela gostaria de saber lutar, de poder se defender.
Gostaria de ser uma princesa guerreira.
Por isso, quando teve a oportunidade, fugiu. Deixou para trás seus pais, e também Zelinda, forjou um sequestro planejado. O reino de paz estilhaçou, Dietrich pensava numa sabotagem, uma guerra forjada por ameaças. Preparou seus melhores cavaleiros, cercou as amuradas, lacrou a cidadela que circundava seu castelo, esperando encontrar a herdeira de suas virtudes, em vão.
Meses adiante, sem que perdesse as esperanças, postou-se num altar de mármore e declarou:
—Ao povo de meu reino, uma súplica: encontrem minha filha —eram suas palavras. —Tu que a encontraste, serás declarado o mais nobre dentre meus leais servos, digno da fidelidade eterna do rei que vos fala. Terás o direito de escolher dentre quaisquer recompensas, aquela que mais lhe agraciar será tua. Hei de desfalecer sem minha bela Rowena.
Virna choramingava todos os dias, pois Rowena era tua única prole. Desde a cria da princesa sequestrada, a rainha fora incapaz de procriar novamente. Fora abençoada com uma única semente, e então suas raízes definharam, adoecidas. Perdera a oportunidade de povoar um novo reino; não poderia perder, também, a única herdeira que trouxera ao mundo.
Nas ruas, Rowena aprendeu a arte dos ladrões, dos soldados, dos aventureiros. Escutou histórias, esquivou-se em becos, roubou e foi roubada. Quando atacada, defendeu-se, sua arte da espada era boa. Numa briga de taverna, saiu-se melhor, afugentou oponentes que sequer viram seu rosto. Sempre camuflada por vestimentas pesadas, a princesa viveu uma vida distante de teu conforto, e assim cresceu, por dentro, como a vida forçava crianças a crescer a todo o momento.
Nas andanças, deparara-se com um velho cavaleiro cujo nome era Caron. Em sua calvície de histórias de guerra, o velho a ensinou tudo o que sabia sobre o manejo das lâminas, e também mais. Mostrou a ela o caminho das divindades, das preces, das nuvens. Fez dela uma paladina, trajada no metal mais puro, portadora de uma espada encantada, um presente de um general de aventuras indizíveis que, Caron lhe contou, carregava o nome de Dagny.
—Dagny é o Novo Dia —ele falou, fumegando o cachimbo que tinha nas mãos trêmulas. As cicatrizes em seus braços contariam histórias por si só. —E, neste novo dia que nasce, vejo tua liberdade, princesa. Volte para Zelinda, para o rei Dietrich e para a rainha Virna. Volte para teu lar, estrela brilhosa.
—Não hei de voltar às correntes que me prendiam —retrucou Rowena. —Mas, se Dagny é o Novo Dia, será ela a me acompanhar nesta nova vida.
E toda a cidade se reuniu quando um misterioso cavaleiro de armadura alva gritou, a plenos pulmões, ser conhecedor do destino da filha do rei.
Dietrich não demorou a se mostrar, desajeitado, oscilante, velho de preocupação. Ao seu lado, Virna, tomada por olheiras e por temores. Zelinda os seguia, bem como tantos guardas quanto os dedos de dez mãos seriam capazes de contar.
O homem de elmo ajoelhou-se diante do rei.
—Erga-se, servo leal —disse Dietrich. —Rumores me alcançaram em sua voz. Diz saber sobre minha filha.
—E o sei —confirmou, forçando a voz.
—Então diga-me, onde está Rowena?
O silêncio perdurou, fez com que soldados transpirassem sob o metal de suas proteções. Escudos tremularam quando o cavaleiro alvo se ergueu, imponente. Havia ao seu redor uma aura que poucos guerreiros seriam capazes de afrontar.
—Antes, o importante: a recompensa. Entregando-a, terei direito a qualquer que seja minha vontade?
—É este meu trato —o rei disparou, ansioso. —Se sabes sobre minha filha, diga logo! Terás todo o ouro que desejar, ou mesmo o posto mais alto dentre as funções que me cercam! O que estiver ao meu alcance será teu, paladino.
—Pois bem —o cavaleiro suspirou, postando as mãos ao redor do elmo. Seus olhos rutilavam junto do sol. —Sabe o que mais desejo, rei?
O elmo foi retirado.
—Liberdade —Rowena falou, mostrando seu rosto, sua virtude e sua vontade.
O rei Dietrich choramingou, bem como Virna e Zelinda. Nos olhos da governanta, orgulho, disfarçado como repreensão, certamente. No meio do povo, um sorriso torto nasceu, antes de Caron aplaudir e, junto dele, todo o povo daquele reino.
Naquele dia, naquele novo dia, morria uma princesa, mas nascia uma general de guerra. Ambas carregavam, na honra que somente tal herança mística pode levar a um homem, a mesma ufania e o mesmo título.

A Filha do Rei.

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