A
Filha do Rei
Debaixo do elmo, os olhos tragavam
lembranças charmosas.
Não eram de todo boas, porém. Tinham seu
charme, seu perfume atraente, mas também a inescrupulosa trilha das algemas que
prendem alguém a um destino indesejado. Assim, enquanto os olhos cintilavam
junto de memórias conturbadas, Rowena pouco respirava.
Ela era a filha do rei.
Dietrich III governava aquela terra há
tempos, mas nada em seu reinado fora motivo de tanto orgulho quanto o
nascimento de sua filha. O nome, cuja releitura seria Lança da Justiça, fora
escolhido por sua esposa, a rainha Virna. Abençoado por uma princesa repleta de
saúde e por um governo coberto de paz, Dietrich poderia esperar apenas que os
anos se passassem e que, na medida do possível, Rowena se espalhasse na beleza
da mãe, para que, futuramente, fosse a rainha mais bela que o mundo já vira.
A garota, no entanto, tinha planos
distintos.
Criada no auxílio de uma governanta, cuja
lealdade já fora posta em prova diversas vezes, Rowena se adaptou aos costumes
e às tradições do castelo. Nos braços da sabedoria de Zelinda, sua segunda mãe,
a princesa aprendeu a se vestir, a ter bons modos, a falar em público e a comer
adequadamente: isso tudo antes dos sete anos. Em seu décimo primeiro inverno,
quando indagada sobre um possível presente de aniversário, Rowena não
apresentou dúvida alguma na escolha.
—Quero uma espada —disse ela a Zelinda, que
se surpreendeu.
—Espadas não se curvam a princesas, milady —a
velha amiga murmurou, cuidando para que os nobres não a escutassem. —Tu deves
se postar sobre o cetro, arrastar a cauda bordeada de um manto e sapatear em
delicados saltos brilhantes.
Mas Rowena queria uma espada, e nada tirava
de sua mente um desejo. Demorou algum tempo até que Zelinda conseguisse tal
presente. Tivera de roubar de um cavaleiro distraído, e tal soldado quase perde
seu posto por uma aventura incerta. A espada curta e polida era pesada para as
mãos da princesa, e as encheria de calos, não fossem as ataduras preparadas
previamente pela governanta. A garota tentou manusear a arma branca por algum
tempo, escondida dos pais e do mundo, mas foi um inverno mais tarde que se
dirigiu novamente a Zelinda:
—Ensina-me a lutar —disse a princesa.
—Mas nada sei sobre o combate!
—Vive há anos em meio a cavaleiros,
Zelinda! Acha mesmo que acreditarei em tal feito?
Rowena era esperta, mas Zelinda não mentia.
Não sabia lutar. Sabia das regras, no entanto. Sabia ensinar, ao menos a
teoria, e assim o fez. Entre as aulas de porte e de caminhar, contava sobre os
movimentos de lâminas e suas estratégias. Entre as lições de etiqueta e de
matemática, narrava conflitos épicos resolvidos por táticas de cavaleiros bem
treinados. Rowena escutava tudo, atenta. Quando não escutava, vivia no
silêncio, e o silêncio zunia em sua espada, num treinamento que não tinha fim.
Questionando o pai sobre um possível
aprendizado da arte da guerra, encontrava sempre a mesma resposta.
—És uma princesa, não um plebeu esfomeado
ou um cavaleiro da guarda! —Dietrich parecia inconformado. —Lâmina alguma há de
se aproximar da suavidade de tuas mãos, minha filha. A guerra não alcançará meu
povo, e mesmo se o fizer, tu jamais a verás.
A ideia da guerra soava assustadora aos
olhos de Rowena, mas ela não se intimidava. As batalhas estavam aí, na espreita
de quaisquer que fossem as civilizações. Se o estopim lhe alcançasse, ela
gostaria de saber lutar, de poder se defender.
Gostaria de ser uma princesa guerreira.
Por isso, quando teve a oportunidade,
fugiu. Deixou para trás seus pais, e também Zelinda, forjou um sequestro
planejado. O reino de paz estilhaçou, Dietrich pensava numa sabotagem, uma
guerra forjada por ameaças. Preparou seus melhores cavaleiros, cercou as
amuradas, lacrou a cidadela que circundava seu castelo, esperando encontrar a herdeira
de suas virtudes, em vão.
Meses adiante, sem que perdesse as
esperanças, postou-se num altar de mármore e declarou:
—Ao povo de meu reino, uma súplica:
encontrem minha filha —eram suas palavras. —Tu que a encontraste, serás
declarado o mais nobre dentre meus leais servos, digno da fidelidade eterna do
rei que vos fala. Terás o direito de escolher dentre quaisquer recompensas,
aquela que mais lhe agraciar será tua. Hei de desfalecer sem minha bela Rowena.
Virna choramingava todos os dias, pois
Rowena era tua única prole. Desde a cria da princesa sequestrada, a rainha fora
incapaz de procriar novamente. Fora abençoada com uma única semente, e então
suas raízes definharam, adoecidas. Perdera a oportunidade de povoar um novo
reino; não poderia perder, também, a única herdeira que trouxera ao mundo.
Nas ruas, Rowena aprendeu a arte dos
ladrões, dos soldados, dos aventureiros. Escutou histórias, esquivou-se em
becos, roubou e foi roubada. Quando atacada, defendeu-se, sua arte da espada
era boa. Numa briga de taverna, saiu-se melhor, afugentou oponentes que sequer
viram seu rosto. Sempre camuflada por vestimentas pesadas, a princesa viveu uma
vida distante de teu conforto, e assim cresceu, por dentro, como a vida forçava
crianças a crescer a todo o momento.
Nas andanças, deparara-se com um velho
cavaleiro cujo nome era Caron. Em sua calvície de histórias de guerra, o velho
a ensinou tudo o que sabia sobre o manejo das lâminas, e também mais. Mostrou a
ela o caminho das divindades, das preces, das nuvens. Fez dela uma paladina,
trajada no metal mais puro, portadora de uma espada encantada, um presente de
um general de aventuras indizíveis que, Caron lhe contou, carregava o nome de
Dagny.
—Dagny é o Novo Dia —ele falou, fumegando o
cachimbo que tinha nas mãos trêmulas. As cicatrizes em seus braços contariam
histórias por si só. —E, neste novo dia que nasce, vejo tua liberdade,
princesa. Volte para Zelinda, para o rei Dietrich e para a rainha Virna. Volte
para teu lar, estrela brilhosa.
—Não hei de voltar às correntes que me
prendiam —retrucou Rowena. —Mas, se Dagny é o Novo Dia, será ela a me
acompanhar nesta nova vida.
E toda a cidade se reuniu quando um
misterioso cavaleiro de armadura alva gritou, a plenos pulmões, ser conhecedor
do destino da filha do rei.
Dietrich não demorou a se mostrar,
desajeitado, oscilante, velho de preocupação. Ao seu lado, Virna, tomada por
olheiras e por temores. Zelinda os seguia, bem como tantos guardas quanto os
dedos de dez mãos seriam capazes de contar.
O homem de elmo ajoelhou-se diante do rei.
—Erga-se, servo leal —disse Dietrich. —Rumores
me alcançaram em sua voz. Diz saber sobre minha filha.
—E o sei —confirmou, forçando a voz.
—Então diga-me, onde está Rowena?
O silêncio perdurou, fez com que soldados
transpirassem sob o metal de suas proteções. Escudos tremularam quando o
cavaleiro alvo se ergueu, imponente. Havia ao seu redor uma aura que poucos guerreiros
seriam capazes de afrontar.
—Antes, o importante: a recompensa. Entregando-a,
terei direito a qualquer que seja minha vontade?
—É este meu trato —o rei disparou, ansioso.
—Se sabes sobre minha filha, diga logo! Terás todo o ouro que desejar, ou mesmo
o posto mais alto dentre as funções que me cercam! O que estiver ao meu alcance
será teu, paladino.
—Pois bem —o cavaleiro suspirou, postando
as mãos ao redor do elmo. Seus olhos rutilavam junto do sol. —Sabe o que mais
desejo, rei?
O elmo foi retirado.
—Liberdade —Rowena falou, mostrando seu
rosto, sua virtude e sua vontade.
O rei Dietrich choramingou, bem como Virna
e Zelinda. Nos olhos da governanta, orgulho, disfarçado como repreensão, certamente.
No meio do povo, um sorriso torto nasceu, antes de Caron aplaudir e, junto
dele, todo o povo daquele reino.
Naquele dia, naquele novo dia, morria uma
princesa, mas nascia uma general de guerra. Ambas carregavam, na honra que
somente tal herança mística pode levar a um homem, a mesma ufania e o mesmo
título.
A Filha do Rei.
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