sexta-feira, 7 de junho de 2013

Conto - O Eterno Silêncio de Aokigahara

Para quem não conhece, Aokigahara é uma floresta japonesa muito famosa por ser o segundo local mais comum para suicídios no mundo todo. Sem mais demoras, vamos ao conto.


O Eterno Silêncio de Aokigahara

Já não se lembrava o motivo de estar ali.
O silêncio agradava, ao menos. Em meio a tantas árvores, pouco do som exterior trespassava as folhas, tamanha a densidade daquele local. Era uma música única, sem melodia, sem batidas, sem ruído algum. Vez ou outra, um galho se partia sob suas botas, era quase o rufar de um tambor. Depois, silêncio outra vez. Um inseto ressonava, o vento ululava, era tudo, então nada.
Silêncio, sempre.
O verde o circundava. Não eram belas árvores. Tinham formas bizarras, em suma. Galhos retorcidos, membros magricelas e contorcidos, sombras de gente agonizando. No silêncio, por vezes, escutava um grito. Era o fantasma da dor de outro alguém, de alguém que já não mais ali se encontrava. Mas era apenas silêncio. O resto era sua imaginação tentando lhe pregar uma peça, uma brincadeira de mau gosto.
Silêncio, ainda.
Caminhava na incerteza de cada passo. Não se recordava o que fazia ali. Não se lembrava do nome, nem mesmo disso. Apenas andava, acompanhado por nada e ninguém, dançando ao som emudecido de uma floresta assombrada. Histórias bailavam em sua mente: fantasmas, demônios, entidades e baboseiras mais. Não via nada além de sua sombra, não ouvia nada além de seus passos. Pior que qualquer fantasma ou demônio, ele tinha a solidão, apenas ela, e tal mártir é capaz de ferir como monstro algum o seria.
Apoiou-se numa das árvores, tremulou. Fazia frio, não estava agasalhado. As pernas oscilavam, os dedos enrijeciam, já enrugados pela baixa temperatura e pela umidade. Seus cabelos carregavam gotículas, parte por uma chuva que já não se recordava, parte pelo ar congelante do local. Os olhos pareciam insanos. Não focavam, sempre perdidos, visitando lados e direções errôneas, buscando o que não existia, uma finalidade, um fundamento, uma explicação. Diante de seus olhos, a solução iminente, a resposta para todas as perguntas. Atrás de seus olhos, nada além da fosca e sem brilho sensação de perder todas as esperanças.
Voltou a caminhar, era sua única chance de esquentar o corpo num movimento incomum. Apertou o passo, tentando assim chegar mais rápido ao seu destino, se um destino houvesse. Tropeçou em raízes e vinhas, não caiu. Sentia algo pesar nos bolsos, sacudir conforme corria. Sentia algo metálico roçar a virilha, preso ao cinto, gélido como o ar que o acolhia naquele local absurdo. Não se lembrava daquilo, não tinha coragem para olhar. Tinha que seguir em frente. Ainda que não se recordasse, sabia que havia um lugar para chegar.
Tropeçou, dessa vez caiu.
Algo estava ali, inerte.
Alguém.
Deitado, os braços confortáveis sob a cabeça, as roupas jogadas como uma coberta improvisada por um morador de rua. Abaixo das cobertas, nudez. Uma mulher, de poucos dotes, de baixa beleza. Falhara em sua vida, ou a vida falhara com ela, talvez. Ao seu lado, um pote de veneno. Ainda havia uma boa quantidade.
Seguiu, os olhos trêmulos.
Silêncio, incômodo.
Já não era tão agradável quanto de início.
Sentia-se sozinho. Atrás dos olhos, nas memórias, nas lembranças, a voz de uma criança sorridente lhe fazia pensar que não teria de estar sozinho. A voz de uma mulher dizia que lhe amava, pedia pra voltar. A voz de diversas pessoas o cumprimentava, parabenizava por uma conquista que inexistia. Então, sumiam. Todas as vozes, todas as pessoas. Não conseguia se lembrar de seus rostos. Quem eram aquelas pessoas? Aqueles amigos, aquela mulher, aquela garota. Quem eram?
Algo caiu de seus bolsos. Agachou-se, pegou: era uma foto cortada. Uma mulher tinha uma criança nos braços, sorria. O bebê chorava, como costumam chorar os recém-nascidos. Havia alguém ao seu lado, mas fora cortado, dispensado, abandonado.
Vagava.
Deixou a foto para trás, como tudo deixaria. Seguiu.
Silêncio, um tormento. Dava dor de cabeça, pavor.
Uma árvore sorriu para ele. Olhou direito, era uma lacuna, um espaço entre o tronco e os galhos. Ali, uma boneca sorria, não a árvore. O que restara de uma boneca, ao menos: uma cabeça plástica e emborrachada, calva, repleta de cicatrizes feitas a caneta vermelha. Sorria, eterna.
Nos galhos, cordas.
Nas cordas, corpos.
Dúzias.
Seguiu.
A voz o chamava. Uma garota. O que ela dizia?
Três letras, uma lembrança.
Pai?
Tropeçou, outra vez, caiu e rolou por alguns metros. Machucou o tornozelo no processo. A dor era uma agonia, o frio era um agravante. Algo caiu de seus bolsos, o objeto metálico de seu cinto estacou sobre algumas folhas. Dos bolsos, munições, três delas. Da cinta, uma revólver.
Pegou-o.
Lembrou-se de algumas coisas. Tinha pouco dinheiro, muito menor era sua vontade. Comprou aquela arma ilegalmente, o primeiro crime de sua vida. Tinha de ser uma solução, ou seria outro problema, e problemas não mais lhe cabiam. Estava prestes a explodir. Que o fizesse direito, então. O divórcio era o caos. A mulher que tanto amou, a quem tanto dedicou sua vida, não mais o desejava. Tinha outro, outro alguém, outra vida. Ele tinha problemas. Não estava numa boa fase. Não estava em bons momentos. Acharam melhor que ela ficasse com sua filha, com sua casa, com seu dinheiro. Deixaram-no sem nada. Perdera o emprego, afastou-se dos amigos. Não mais sorria. Tinha pouco dinheiro, mas tinha uma arma.
Ela era a solução.
Lembrou-se. O silêncio lhe dizia o que fazer.
O silêncio era um tormento.
Precisava acabar com ele.
Pegou a arma, municiou, três cartuchos. Atirou para o alto, um estopim, um estrondo. Riu, sozinho. Algo a se escutar, enfim. Depois, silêncio, angústia. Agonizava. Preparou um novo disparo, mirou uma árvore qualquer, atirou. Som, agudo, perverso. Então, silêncio. Carregou, uma terceira vez, sua última. Teria som, então nada. Era sua última chance. Precisava de coragem, de valentia, mais do que sempre tivera na vida.
Encostou o cano da arma nos lábios. Era gélido.
Silêncio, maldito.
Precisava de som, de algo para escutar.
Ao longe, uma criança chamava por seu pai. Era só um fantasma, uma memória. Não existia.
Existia o silêncio, um inferno calado.
Disparou.
Estrondo, uma última vez. A solução de todos os seus problemas, o desfecho para todos os seus medos. A linha de chegada, ou de partida. O fim do conto, da história, do romance. O fim de tudo.
Ele já não estava lá, mas quando os ecos se extinguiram, o silêncio retornou.

Em Aokigahara, era eterno.

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