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A
ROTINA COMEÇOU COMO TODA ROTINA COMEÇA: PACATA. Mauro entrou no escritório na
tarde de seu primeiro dia de trabalho com uma ressaca destruidora. Sua cabeça
doía, seu corpo doía, sua alma doía, mas ele estava lá, inteiro.
Obviamente,
estava em pedaços por dentro. Não seriam sete dias ou dez batidas de destiladas
a solução para os seus problemas. Ele jamais se esqueceria daquela perda,
jamais apagaria da memória a cena de sua filha enterrada, dentro de um caixão
de madeira envernizada. Mas tinha que prosseguir. Tinha que continuar a
caminhar, e foi isso o que fez.
—Bom
dia —disse ele, e ninguém respondeu com a animação de costume. Parecia que era
ele o morto. Sentiu-se como um fantasma entre um bando de céticos.
Felipe
o cumprimentou distante, de sua mesa de trabalho. Tinha olheiras fundas e
lábios ressecados, mas parecia bem. Melhor do que Mauro, ao menos.
—Está
tudo bem?
A
pergunta vinha de Luciana. Encontrando uma brecha na documentação que
organizava, a ruiva se sentou ao lado de Mauro com a expressão mais
compreensiva e companheira que uma mulher poderia ter.
—O
que você acha?
Ela
deu de ombros.
—Espero
nunca descobrir. Eu sinto muito, mesmo. Só quero oferecer ajuda, para o que
você precisar.
—Eu
sei que posso contar com você. Obrigado mesmo, Luciana.
Ela
sorriu, simpática, e então se afastou.
—Mauro
—chamou Rubens, e Mauro se levantou.
—Pois
não?
—Venha
à minha sala um momento.
Obedecendo
à ordem de seu chefe, Mauro se levantou e adentrou a sala do patrão. Não era o
melhor exemplo de organização, muito menos uma grande imagem de profissional
exemplar, mas tinha seus livros nas estantes, suas impressoras multifuncionais
e seus computadores de gerações atrasadas. Rubens mexia em seu bigode, como de
costume, mas parou quando seu funcionário chegou.
—Espero
que esses dias tenham lhe feito bem —disse ele. —Se precisar de mais alguma
coisa, podemos conversar. Talvez precise descansar mais alguns dias, não sei.
Com alguns descontos, podemos providenciar isso.
—Não,
não precisa —Mauro falou. —Eu estou bem. Obrigado pela oferta.
—Tem
certeza? Bom, se está bem, preciso que me detalhe os processos da semana
anterior. Sabe como é, tá tudo atrasado por aqui. Não quis colocar ninguém no
seu lugar para não me arrepender de esperar por você, entende? Tem seu emprego de
volta, então conquiste minha confiança com atitudes agora.
Vontades
de socar, chutar e gritar passaram num lampejo na mente de Mauro, mas ele só
disse:
—Sim,
chefe. Com licença.
E
voltou para sua cadeira.
A
tarde seguiu mais lenta que uma lesma de cadeira de rodas. Antes que o
expediente chegasse ao fim, quando já era noite, Mauro ouviu duas das demais
auxiliares de Rubens comentarem:
—Você
viu as notícias, Mônica?
—Claro
que vi! Parece que encontraram um corpo todo destruído, né?
—Do
mesmo jeito que a filha do Mauro. Estão falando que pode ser o mesmo assassino.
—Tipo
um assassino em série?
—Sei
lá viu! Esses caras hoje em dia são muito loucos! Tem gente que mata só pra
virar celebridade.
—Quinze
minutos de fama, vai vendo.
—Quinze
minutos de fama por vinte anos de prisão. Não acho que seja uma troca justa.
—Nem
eu! Mas fala sério, eu não consigo imaginar como ele tá se sentindo agora. E se
esse cara estiver mesmo por aí, se estiver matando mais garotinhas como Eliz —
—Não
fala —a outra sussurrou, ríspida. —Ele vai nos ouvir!
Com
mais cuidado para manter a voz baixa, continuaram:
—Se
alguém estiver matando garotinhas por aí dessa forma, as coisas vão ficar
feias. Nossa cidade vai ficar conhecida mundialmente por um pedófilo retardado.
Mauro
derrubou alguns de seus papéis, chamando a atenção das duas fofoqueiras, que
deixaram de lado a conversa para voltar a seus afazeres. O homem recolheu seus
documentos e se levantou, buscando um copo de água. Aproveitou a brecha para
ligar a internet do celular, procurando nos sites de notícia pela morte que não
vira nos jornais. Não foi difícil encontrar:
Garota é encontrada
morta debaixo da própria cama.
A pequena Júlia tinha
somente onze anos de idade. Encontrada nessa manhã, debaixo da cama onde dormiu
por todos os anos de sua vida, Júlia estava sem vida e tinha diversos cortes
espalhados pelo corpo despido, bem como pedaços retirados e espalhados pelo
chão do quarto. A polícia acredita que o criminoso tenha se utilizado de
envenenamento, já que os pais alegaram não escutar grito algum da filha, mas a
perícia ainda não confirmou nada a respeito. A suspeitas de que esse caso possa
estar relacionado com o caso de Elizabeth, encontrada morta em sua casa há
cerca de sete dias.
—Filho
da mãe —Mauro deixou escapar. Se aquele era o mesmo homem, ele realmente estava
fora de si. Alguém tinha que pará-lo.
O
que ele estava pensando naquele momento? Queria ser um herói? Bobagem! Sua
cabeça girava, ainda ressentida pela perda da filha, mas o que isso poderia
mudar? Restava a ele confiar na polícia, a mesma polícia que nunca resolvia
nada em seu país, que se vendia para bandidos e se voltava contra o povo. Era
ela a sua única esperança de encontrar o assassino de sua filha e se vingar,
acreditando numa justiça que inexistia. Mas e daí? Ele veria o culpado ser
levado a julgamento, preso por alguns dias e solto após pagar uma fiança que
não era o preço de sua filha, certamente. E depois?
Por
que ele pensava no depois?
—Mauro.
A
voz de Rubens extinguiu seus pensamentos.
—Sim,
chefe.
—Não
acho que essa seja a sua cadeira de trabalho. Tem certeza de que está se
sentindo bem?
—Eu...
Eu estou sim.
Mas
era mentira.
Rubens
respirou fundo.
—Vai
embora. Já chega por hoje. Vai descansar, você precisa.
—Mas
—
—Sério,
pode ir. Não vou descontar do seu salário. É uma promessa, cara.
Mauro
baixou os olhos.
—Tá
legal. Obrigado, chefe.
—Não é nada —Rubens falou, mas
Mauro já estava distante o suficiente para sequer escutar.
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