sábado, 15 de junho de 2013

Conto - O Último Soldado de Deus

Certa vez, me foi imposto um desafio: escrever um conto, uma história paralela ou similar, com base em palavras aleatórias, e tais palavras foram as seguintes: Dinossauros, alienígenas, robôs, soldado e demônio. Não era uma escolha de todo complexa, mas também nada simples. O resultado, entretanto, ainda que com suas controversas, me agradou. Hoje trago a vocês o conto 'O Último Soldado de Deus', inspirado pelo desafio do Sr. Alec Silva, autor de Ariane e de A Guerra dos Criativos, e espero sinceramente que apreciem a história que os aguarda.
Sem mais demoras, cá está o texto:

O Último Soldado de Deus

É certo que eu já enfrentei diversas situações exóticas nessa vida. Poderia passar horas aqui, somente para lhes citar algumas, mas farei melhor. Contarei a última, e não só a última das histórias que vivenciei, mas sim a última história que eu quero para o meu livro do destino que, cá entre nós, foi escrito por um autor insano demais para o meu gosto.
Naquele tempo, a Terra já não era mais um lugar seguro.
Demoramos para descobrir, mas ela nunca foi, na verdade. Antes que as ameaças externas surgissem, nós mesmos cuidávamos do caos, das mortes e das desgraças que assolavam os povos. Todos da mesma raça, ainda assim divididos em castas, classes e etnias, o que sempre me enojou, mas não o suficiente para que eu me tornasse um presidente e mudasse o dogma de um planeta tão grande quanto um feijão, no que diz respeito ao caráter evolutivo de seus moradores. Assim, quando o caos de outros universos nos encontrou, nada fizemos além de rezar, morrer e, num último resquício de sorte, fugir.
Eu estava em uma daquelas naves que foram atiradas no espaço. Em uma das que não explodiram logo em seguida, por sinal. Flutuamos no vácuo por tempo demais, e eu gostaria de ter dormido pelas semanas, ou talvez pelos meses, que se seguiram naquela viagem tenebrosa, mas não o fiz. Estava ansioso, e bastante inconformado, um fato. Ninguém aceitaria ver seu lar dominado por outra pessoa. É como o homem da casa assistir ao estupro de sua esposa e à escravização de suas filhas.
Tá, nem tão forte assim, mas vocês podem imaginar como eu me sentia.
Chegamos, mas não havia lugar algum para se chegar, e então em perguntei onde aquela nave espacial estaria se escorando. Não fora muito bem um pouso confortável, muito menos aconchegante, mas ela parou, após um momento infindável de caos desenfreado, e portas se abriram, presenteando-nos com o ar de um novo mundo, de um novo tempo, um ar que poderia nos matar, mas não matou, e aquela era a primeira boa notícia desde que o nosso planeta caminhara para a destruição.
Desci depois de todos os demais, sozinho, sem ser capaz de me empolgar pela sobrevivência que nos aguardava. Estávamos destinados a viver num lugar inóspito, onde, possivelmente, não seríamos bem-vindos. Se aquele ar nos respeitava, respeitaria a outros também. Foi o mesmo pensamento que me tomou quando vi, naquela terra verdejada e sedosa, córregos de água limpa e, acima de tudo, num céu anuviado e bastante escuro, um sol fosco e duas luas partidas ao meio, como é o yin-yang.
Eu não tinha medo de encontrar um alienígena naquele outro mundo: nós éramos os alienígenas. Na visionária proporção que o ser humano se vê, vivendo como umbigo do mundo, sem respeitar norma alguma, temos a concepção de que nunca seremos nós os alienígenas. Aquele não era nosso lar, nem mesmo nosso planeta, então, sim, éramos nós os estranhos.
Mas a primeira coisa que vi me chocou muito mais do que um exército de marcianos seria capaz de me chocar.
Era um dinossauro.
Talvez não fosse, e eu me enganava, mais uma vez, mas a imagem não se confundia em minha mente. Não um tiranossauro, bem menor, na verdade, ainda que maior do que eu, do que qualquer pessoa dentre aquelas que desembarcavam da espaçonave que nos resgatou. De início, a criatura não se importou conosco, impossibilitada de se concentrar no cheiro de carne fresca graças ao desconhecido daquele metal imenso e aerodinâmico que a máquina de travessia de galáxias possuía.
Em um momento inoportuno, o dinossauro nos viu, e o caos se instalou entre todas as pessoas. Fico imaginando, em meu subconsciente doentio, se fosse aquele ser um tiranossauro do tamanho de um trem de carga, mas enfim.
A criatura urrou, faminta, deixando que a saliva escorresse por entre as presas afiadas demais para que a nossa carne se sentisse confortável em servir de oficina de mastigação, e então disparou desenfreado e desembestado, chocando-se contra obstáculos do terreno, vez ou outra, como formações rochosas que eu sequer havia reparado anteriormente. Suas primeiras vítimas foram estraçalhadas, mas o que ele tinha não era fome: era sede de sangue, de morte. O dinossauro matava, mas matava de forma impiedosa, e não parava para devorar nada nem ninguém, apenas avançava, alvejando uma nova vítima, desfazendo-a nas mandíbulas preparadas para findar vidas.
Os gritos em histeria me fizeram acelerar, como antes me acelerava as balas de festa, e eu sentia o sangue ferver, borbulhando dentro de mim, como se eu fosse mais do que um homem, mais do que um simples humano. Talvez eu fosse. Queiramos ou não, naquela terra desconhecida, éramos nós os alienígenas, os invasores e estranhos. Então, isso era o que eu era naquele exato momento: um desconhecido numa terra de que eu não tinha conhecimento. Tudo era confuso demais para assimilar, então deixei as ideias e os conceitos de lado para me focar na única alternativa que me parecia viável no momento: correr, mais do que as minhas pernas me permitiram ao longo da vida de fumante passivo.
Atrás de mim (e também nos lados, pois não era eu, e jamais seria, o melhor corredor dentre tantos aqueles falsos sobreviventes), as pessoas morriam, e só então percebi que havia outros dinossauros. Não bastasse suas velocidades absurdas e suas presas grotescas, algo mais me aterrorizou: mecânica. Se antes eu imaginava como diabos poderiam existir dinossauros naquele lugar, agora eu martelava em minha mente o conceito de criação dos cientistas de um novo mundo, capazes de trabalhar a carne e o organismo de criaturas tão fabulosas lado a lado com peças mecânicas, partes cinzentas de aço e fibras de carbono, e assim moldar seres metade animal extinto há milênios, metade máquinas de matar. Parte dinossauros, parte robôs, e isso me parecia terror o suficiente para um filme de caos trash, daqueles onde os protagonistas são caçados por bizarrices como palhaços assassinos do espaço sideral, ou, agora, dinossauros mecanizados.
Encontrei, num momento que julguei sagrado pelo restante de meus dias de vida, uma entrada subterrânea, uma escadaria, na verdade. Depois de tanto correr por aquela paisagem medonha e devastadas do mundo que não era o meu, uma escadaria me soou bastante irônica, tamanho o contraste de tal criação com o território desértico e árido que servia de palco para o espetáculo de sangue e partes de corpos que os dinossauros ministravam. Lancei-me nos degraus, desesperado, muitos outros me copiaram, alguns rolando pela escadaria com braços e pernas que se quebravam em fraturas expostas, cenas amorosas demais para meus olhos clínicos e detalhistas. Escapei de um grupo que se envolvia em confusão próximo a um dos corrimões, pouco antes de vê-los estripados pelas garras de um dinossauro de manchas brancas e couro verdejado, e então segui em frente, até que a visão me fez parar, com as pernas trêmulas e os olhos arregalados.
Era um metrô.
Lá estava a linha moldada no metal, circundada por plataformas subdividas em setores, com direito a bancos de espera, cabines de vendas de tickets e afins. Até mesmo um carrinho de pipoca ainda estava lá, abandonado, jogado às traças. Naquele primeiro instante, tentei me concentrar na ideia de que aquele planeta, que não era o nosso, obviamente, tinha similaridades assim, quase que bizarras e inacreditáveis, mas foi um cartas, um simples cartas, que me fez mudar de ideia e achar aquela situação toda ainda mais revoltante.
Havia uma imagem de um cartão postal e, nesta, as palavras Conheça Londres de baixo para cima, começando pelas nossas linhas de metrô, que promovem um turismo sem igual no subsolo da cidade.
Foi então que eu engoli as imagens da devastação, dos dinossauros e das mortes, e elas tinham um gosto de vómito de alcóolatra recolhido após duas semanas, batido no liquidificador com boldo e camomila e misturado a uma colher de orgasmo de elefante.
Aquele não era outro planeta.
Aquela era a Terra, a minha Terra, a Terra de todos aqueles que morriam ali, sem saber o que estava acontecendo, como eu também morreria, talvez, sem saber o que aconteceu ao meu lar.
Então, não era eu o alienígena, mas sim todos aqueles monstros que nos perseguiam. Acho que isso poderia ser considerado uma boa notícia, no fim, e o fim estava realmente próximo. O metrô começava a ser povoado por dinossauros, e pessoas morriam a cada novo segundo, jorrando explosões de sangue fresco e órgãos para todas as partes, pintando as paredes com as histórias escarlates que ninguém leria, marcando o solo com lágrimas rubras que secariam e seriam pisoteadas por seres que não eram os verdadeiros donos daquele lugar.
Eu meio que desisti de correr. Talvez não houvesse escapatória, desde o início. A própria espaçonave foi uma lenda, uma mentira sem tamanho, uma falsa esperança de sobreviver. Nunca saímos do lugar, mas sobrevivemos àquilo que fez do nosso mundo a merda fétida que é agora. Mas nada nos garantia a sobrevivência naquele momento. Nada, nem ninguém.
E este sim era o erro.
Os dinossauros pararam de matar. Suas bocas se fecharam, suas presas desapareceram em sorrisos famintos, suas garras foram recolhidas, como fazem os felinos. Eles baixaram as cabeças, diante de poucos sobreviventes que ali existiam, como se mostrassem dignidade e respeito a cada um de nós, mas não o faziam, certamente. Era outra coisa, muito diferente de respeito, muito diferente de dignidade e, principalmente, muito diferente de nós.
Era medo.
Medo daquele ser que surgia do solo, vomitado por um vórtice assustador, por um buraco negro saído da fenda, aberto pelas mãos cadavéricas e pútridas de uma criatura que eu sequer seria capaz de descrever em sã consciência, mas aproveito agora, que minha consciência já não está muito sã, para tentar. Ele se vestia na noite, no escuro, com um manto feito da alma dos mortos, e tais almas ululavam em suas roupas, gritantes e perdidas. Não era um dinossauro, um alienígena, mas era, sim, um invasor, não de outro mundo, talvez, mas de outro plano, de outro lar.
Um demônio oriundo do inferno.
Ele tinha o sorriso dos estupradores, dos assassinos em série, dos homicidas e dos kamikazes, dos sequestradores e dos pedófilos. Ele tinha o sorriso do mal, desenhado em dentes podres e amarelados, acompanhado de olhos fundos, escuros e sem íris, olhos de noite, com suas vestes, olhos congelantes e horrendos. Uma barba grisalha e imensa caía de seu queixo magricela, e o pedaço de céu negro que ele tinha na cabeça, na forma de um chapéu de feiticeiro dos filmes antigos, só lhe garantia ainda mais o semblante de Morte, de caos exacerbado, de pavor com pernas e braços.
E ainda havia aquela foice, terrível, sempre empunhada, sempre preparada para ceifar.
Ele sorriu, gargalhou, e o som matou vários, mortes piores que aquelas encontradas nas mandíbulas dos dinossauros, estourando tímpanos e cérebros, atirando sangue para o ar como brinquedos desperdiçados por crianças mesquinhas. Ele então se virou para mim, sorridente em sua melancolia infernal, e eu ouvi sua voz que, para minha mente conturbada pelo apavorante destino que me cercava, soou como a pior de todas as tempestades.
—Suportas tua sina, anjo?
Anjo. Sim, claro. Como pude me esquecer?
Eu era um anjo.
O último deles.
Perdido entre os homens, escondido, pois decidi me esconder quando os céus não se mostraram mais seguros, camuflado na casca fria dos humanos. Era eu, um anjo sem asas, sem espada, sem virtude alguma: um anjo fujão, amedrontado, covarde. Um anjo sem pai, sem filhos, sem família, amigos ou mesmo companheiros. Um anjo sem passado, sem presente e, agora, sem futuro.
Um par de asas brancas se abriu, imensas asas plumadas, e elas derramaram penas sobre o sangue dos mortais, de jovens e adultos, de crianças e velhos, e as penas brancas se mancharam de vermelho.
Eu tinha nas mãos uma espada dourada, uma vingadora, uma lâmina reflexiva, coberta de pecados e de salvações, e ela era a esperança da humanidade. Aquele diante de mim era apenas um entre tantos os demônios que cercavam aquele local, povoando-o com pesadelos como os dinossauros mecânicos, mas havia muito mais, muitos outros, cuidando da destruição iminente numa empreitada que nem mesmo divindades foram capazes de prever. O inferno se ergueu de uma só vez, gatuno, e mundo algum estava preparado para afrontar tamanha força como aquela que se apresentava na malícia dos planos satânicos. Caíram tantos mundos que eu sequer poderia contar, e agora, mais um estava para cair.
Eu era o último soldado de Deus.
E, como último soldado de Deus, fiz aquilo que nasci para fazer.
—Não —respondi, de olhos baixos e coração congelado.
Então saltei, as asas em impulsão, a espada rasgando o tempo e o espaço, e voei, para longe dali, para longe de tudo. Não queria ser mais um imortal a morrer por uma guerra que já estava perdida. Não queria ser mais um celeste torturado e violentado pela ambição grotesca dos abissais.
O mundo precisava de heróis, e eu não era um herói. Poucos anjos eram, na verdade. Gabriel, Uriel, Castiel, talvez eles tenham sido heróis. Eu não era. Eu nem mesmo tinha um nome ou, se tinha, havia me esquecido há tempos, junto da minha honra e das minhas virtudes. Eu não era um herói, jamais seria, e estava feliz assim, sem viver, mas sobrevivendo.

E, devo admitir, ajoelhado diante do universo: se sou eu, realmente, o último soldado de Deus, aqui termina a guerra, meus caros mortais, e todos vocês estão destinados a morrer, pois o último soldado não fará parte da última batalha.

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