Sem mais demoras, cá está o texto:
O
Último Soldado de Deus
É certo que eu já enfrentei diversas
situações exóticas nessa vida. Poderia passar horas aqui, somente para lhes
citar algumas, mas farei melhor. Contarei a última, e não só a última das
histórias que vivenciei, mas sim a última história que eu quero para o meu
livro do destino que, cá entre nós, foi escrito por um autor insano demais para
o meu gosto.
Naquele tempo, a Terra já não era mais um
lugar seguro.
Demoramos para descobrir, mas ela nunca foi,
na verdade. Antes que as ameaças externas surgissem, nós mesmos cuidávamos do
caos, das mortes e das desgraças que assolavam os povos. Todos da mesma raça,
ainda assim divididos em castas, classes e etnias, o que sempre me enojou, mas
não o suficiente para que eu me tornasse um presidente e mudasse o dogma de um
planeta tão grande quanto um feijão, no que diz respeito ao caráter evolutivo
de seus moradores. Assim, quando o caos de outros universos nos encontrou, nada
fizemos além de rezar, morrer e, num último resquício de sorte, fugir.
Eu estava em uma daquelas naves que foram
atiradas no espaço. Em uma das que não explodiram logo em seguida, por sinal.
Flutuamos no vácuo por tempo demais, e eu gostaria de ter dormido pelas semanas,
ou talvez pelos meses, que se seguiram naquela viagem tenebrosa, mas não o fiz.
Estava ansioso, e bastante inconformado, um fato. Ninguém aceitaria ver seu lar
dominado por outra pessoa. É como o homem da casa assistir ao estupro de sua
esposa e à escravização de suas filhas.
Tá, nem tão forte assim, mas vocês podem
imaginar como eu me sentia.
Chegamos, mas não havia lugar algum para se
chegar, e então em perguntei onde aquela nave espacial estaria se escorando.
Não fora muito bem um pouso confortável, muito menos aconchegante, mas ela
parou, após um momento infindável de caos desenfreado, e portas se abriram,
presenteando-nos com o ar de um novo mundo, de um novo tempo, um ar que poderia
nos matar, mas não matou, e aquela era a primeira boa notícia desde que o nosso
planeta caminhara para a destruição.
Desci depois de todos os demais, sozinho,
sem ser capaz de me empolgar pela sobrevivência que nos aguardava. Estávamos
destinados a viver num lugar inóspito, onde, possivelmente, não seríamos
bem-vindos. Se aquele ar nos respeitava, respeitaria a outros também. Foi o
mesmo pensamento que me tomou quando vi, naquela terra verdejada e sedosa,
córregos de água limpa e, acima de tudo, num céu anuviado e bastante escuro, um
sol fosco e duas luas partidas ao meio, como é o yin-yang.
Eu não tinha medo de encontrar um alienígena
naquele outro mundo: nós éramos os alienígenas. Na visionária proporção que o
ser humano se vê, vivendo como umbigo do mundo, sem respeitar norma alguma,
temos a concepção de que nunca seremos nós os alienígenas. Aquele não era nosso
lar, nem mesmo nosso planeta, então, sim, éramos nós os estranhos.
Mas a primeira coisa que vi me chocou muito
mais do que um exército de marcianos seria capaz de me chocar.
Era um dinossauro.
Talvez não fosse, e eu me enganava, mais uma
vez, mas a imagem não se confundia em minha mente. Não um tiranossauro, bem
menor, na verdade, ainda que maior do que eu, do que qualquer pessoa dentre
aquelas que desembarcavam da espaçonave que nos resgatou. De início, a criatura
não se importou conosco, impossibilitada de se concentrar no cheiro de carne
fresca graças ao desconhecido daquele metal imenso e aerodinâmico que a máquina
de travessia de galáxias possuía.
Em um momento inoportuno, o dinossauro nos
viu, e o caos se instalou entre todas as pessoas. Fico imaginando, em meu
subconsciente doentio, se fosse aquele ser um tiranossauro do tamanho de um
trem de carga, mas enfim.
A criatura urrou, faminta, deixando que a
saliva escorresse por entre as presas afiadas demais para que a nossa carne se
sentisse confortável em servir de oficina de mastigação, e então disparou
desenfreado e desembestado, chocando-se contra obstáculos do terreno, vez ou
outra, como formações rochosas que eu sequer havia reparado anteriormente. Suas
primeiras vítimas foram estraçalhadas, mas o que ele tinha não era fome: era
sede de sangue, de morte. O dinossauro matava, mas matava de forma impiedosa, e
não parava para devorar nada nem ninguém, apenas avançava, alvejando uma nova
vítima, desfazendo-a nas mandíbulas preparadas para findar vidas.
Os gritos em histeria me fizeram acelerar,
como antes me acelerava as balas de festa, e eu sentia o sangue ferver,
borbulhando dentro de mim, como se eu fosse mais do que um homem, mais do que
um simples humano. Talvez eu fosse.
Queiramos ou não, naquela terra desconhecida, éramos nós os alienígenas, os
invasores e estranhos. Então, isso era o que eu era naquele exato momento: um
desconhecido numa terra de que eu não tinha conhecimento. Tudo era confuso
demais para assimilar, então deixei as ideias e os conceitos de lado para me
focar na única alternativa que me parecia viável no momento: correr, mais do
que as minhas pernas me permitiram ao longo da vida de fumante passivo.
Atrás de mim (e também nos lados, pois não
era eu, e jamais seria, o melhor corredor dentre tantos aqueles falsos
sobreviventes), as pessoas morriam, e só então percebi que havia outros
dinossauros. Não bastasse suas velocidades absurdas e suas presas grotescas,
algo mais me aterrorizou: mecânica. Se antes eu imaginava como diabos poderiam
existir dinossauros naquele lugar, agora eu martelava em minha mente o conceito
de criação dos cientistas de um novo mundo, capazes de trabalhar a carne e o
organismo de criaturas tão fabulosas lado a lado com peças mecânicas, partes
cinzentas de aço e fibras de carbono, e assim moldar seres metade animal
extinto há milênios, metade máquinas de matar. Parte dinossauros, parte robôs,
e isso me parecia terror o suficiente para um filme de caos trash, daqueles onde
os protagonistas são caçados por bizarrices como palhaços assassinos do espaço
sideral, ou, agora, dinossauros mecanizados.
Encontrei, num momento que julguei sagrado
pelo restante de meus dias de vida, uma entrada subterrânea, uma escadaria, na
verdade. Depois de tanto correr por aquela paisagem medonha e devastadas do
mundo que não era o meu, uma escadaria me soou bastante irônica, tamanho o
contraste de tal criação com o território desértico e árido que servia de palco
para o espetáculo de sangue e partes de corpos que os dinossauros ministravam.
Lancei-me nos degraus, desesperado, muitos outros me copiaram, alguns rolando
pela escadaria com braços e pernas que se quebravam em fraturas expostas, cenas
amorosas demais para meus olhos clínicos e detalhistas. Escapei de um grupo que
se envolvia em confusão próximo a um dos corrimões, pouco antes de vê-los
estripados pelas garras de um dinossauro de manchas brancas e couro verdejado,
e então segui em frente, até que a visão me fez parar, com as pernas trêmulas e
os olhos arregalados.
Era um metrô.
Lá estava a linha moldada no metal,
circundada por plataformas subdividas em setores, com direito a bancos de
espera, cabines de vendas de tickets e afins. Até mesmo um carrinho de pipoca
ainda estava lá, abandonado, jogado às traças. Naquele primeiro instante,
tentei me concentrar na ideia de que aquele planeta, que não era o nosso,
obviamente, tinha similaridades assim, quase que bizarras e inacreditáveis, mas
foi um cartas, um simples cartas, que me fez mudar de ideia e achar aquela
situação toda ainda mais revoltante.
Havia uma imagem de um cartão postal e,
nesta, as palavras Conheça Londres de
baixo para cima, começando pelas nossas linhas de metrô, que promovem um
turismo sem igual no subsolo da cidade.
Foi então que eu engoli as imagens da
devastação, dos dinossauros e das mortes, e elas tinham um gosto de vómito de
alcóolatra recolhido após duas semanas, batido no liquidificador com boldo e
camomila e misturado a uma colher de orgasmo de elefante.
Aquele não era outro planeta.
Aquela era a Terra, a minha Terra, a Terra
de todos aqueles que morriam ali, sem saber o que estava acontecendo, como eu
também morreria, talvez, sem saber o que aconteceu ao meu lar.
Então, não era eu o alienígena, mas sim
todos aqueles monstros que nos perseguiam. Acho que isso poderia ser
considerado uma boa notícia, no fim, e o fim estava realmente próximo. O metrô
começava a ser povoado por dinossauros, e pessoas morriam a cada novo segundo,
jorrando explosões de sangue fresco e órgãos para todas as partes, pintando as
paredes com as histórias escarlates que ninguém leria, marcando o solo com
lágrimas rubras que secariam e seriam pisoteadas por seres que não eram os
verdadeiros donos daquele lugar.
Eu meio que desisti de correr. Talvez não
houvesse escapatória, desde o início. A própria espaçonave foi uma lenda, uma
mentira sem tamanho, uma falsa esperança de sobreviver. Nunca saímos do lugar,
mas sobrevivemos àquilo que fez do nosso mundo a merda fétida que é agora. Mas
nada nos garantia a sobrevivência naquele momento. Nada, nem ninguém.
E este sim era o erro.
Os dinossauros pararam de matar. Suas bocas
se fecharam, suas presas desapareceram em sorrisos famintos, suas garras foram
recolhidas, como fazem os felinos. Eles baixaram as cabeças, diante de poucos
sobreviventes que ali existiam, como se mostrassem dignidade e respeito a cada
um de nós, mas não o faziam, certamente. Era outra coisa, muito diferente de
respeito, muito diferente de dignidade e, principalmente, muito diferente de nós.
Era medo.
Medo daquele ser que surgia do solo,
vomitado por um vórtice assustador, por um buraco negro saído da fenda, aberto
pelas mãos cadavéricas e pútridas de uma criatura que eu sequer seria capaz de
descrever em sã consciência, mas aproveito agora, que minha consciência já não
está muito sã, para tentar. Ele se vestia na noite, no escuro, com um manto
feito da alma dos mortos, e tais almas ululavam em suas roupas, gritantes e
perdidas. Não era um dinossauro, um alienígena, mas era, sim, um invasor, não
de outro mundo, talvez, mas de outro plano, de outro lar.
Um demônio oriundo do inferno.
Ele tinha o sorriso dos estupradores, dos
assassinos em série, dos homicidas e dos kamikazes, dos sequestradores e dos
pedófilos. Ele tinha o sorriso do mal, desenhado em dentes podres e amarelados,
acompanhado de olhos fundos, escuros e sem íris, olhos de noite, com suas
vestes, olhos congelantes e horrendos. Uma barba grisalha e imensa caía de seu
queixo magricela, e o pedaço de céu negro que ele tinha na cabeça, na forma de
um chapéu de feiticeiro dos filmes antigos, só lhe garantia ainda mais o
semblante de Morte, de caos exacerbado, de pavor com pernas e braços.
E ainda havia aquela foice, terrível, sempre
empunhada, sempre preparada para ceifar.
Ele sorriu, gargalhou, e o som matou vários,
mortes piores que aquelas encontradas nas mandíbulas dos dinossauros,
estourando tímpanos e cérebros, atirando sangue para o ar como brinquedos
desperdiçados por crianças mesquinhas. Ele então se virou para mim, sorridente em
sua melancolia infernal, e eu ouvi sua voz que, para minha mente conturbada
pelo apavorante destino que me cercava, soou como a pior de todas as
tempestades.
—Suportas tua sina, anjo?
Anjo. Sim, claro. Como pude me esquecer?
Eu era um anjo.
O último deles.
Perdido entre os homens, escondido, pois
decidi me esconder quando os céus não se mostraram mais seguros, camuflado na
casca fria dos humanos. Era eu, um anjo sem asas, sem espada, sem virtude
alguma: um anjo fujão, amedrontado, covarde. Um anjo sem pai, sem filhos, sem
família, amigos ou mesmo companheiros. Um anjo sem passado, sem presente e,
agora, sem futuro.
Um par de asas brancas se abriu, imensas
asas plumadas, e elas derramaram penas sobre o sangue dos mortais, de jovens e
adultos, de crianças e velhos, e as penas brancas se mancharam de vermelho.
Eu tinha nas mãos uma espada dourada, uma
vingadora, uma lâmina reflexiva, coberta de pecados e de salvações, e ela era a
esperança da humanidade. Aquele diante de mim era apenas um entre tantos os
demônios que cercavam aquele local, povoando-o com pesadelos como os
dinossauros mecânicos, mas havia muito mais, muitos outros, cuidando da
destruição iminente numa empreitada que nem mesmo divindades foram capazes de
prever. O inferno se ergueu de uma só vez, gatuno, e mundo algum estava
preparado para afrontar tamanha força como aquela que se apresentava na malícia
dos planos satânicos. Caíram tantos mundos que eu sequer poderia contar, e
agora, mais um estava para cair.
Eu era o último soldado de Deus.
E, como último soldado de Deus, fiz aquilo
que nasci para fazer.
—Não —respondi, de olhos baixos e coração
congelado.
Então saltei, as asas em impulsão, a espada
rasgando o tempo e o espaço, e voei, para longe dali, para longe de tudo. Não
queria ser mais um imortal a morrer por uma guerra que já estava perdida. Não
queria ser mais um celeste torturado e violentado pela ambição grotesca dos
abissais.
O mundo precisava de heróis, e eu não era um
herói. Poucos anjos eram, na verdade. Gabriel, Uriel, Castiel, talvez eles
tenham sido heróis. Eu não era. Eu nem mesmo tinha um nome ou, se tinha, havia
me esquecido há tempos, junto da minha honra e das minhas virtudes. Eu não era
um herói, jamais seria, e estava feliz assim, sem viver, mas sobrevivendo.
E, devo admitir, ajoelhado diante do
universo: se sou eu, realmente, o último soldado de Deus, aqui termina a
guerra, meus caros mortais, e todos vocês estão destinados a morrer, pois o
último soldado não fará parte da última batalha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário