Quebra-Cabeça
Ali, entre as mesas de madeira e o clima
festeiro, ela destonava.
Sombria, quase que submersa em tecidos
violáceos, pouco além dos olhos e da madeixa negra à mostra. As mãos franzinas,
próximas da tonalidade albina, moviam as cartas de um baralho peculiar;
embaralhavam-no. Em cada dedo, um anel diferente, cada qual com sua cor e seu
símbolo, talvez de diversos significados, talvez de significado algum. O manto
lhe escondia a aparência exótica e, nas sombras, ela sorria.
O corvo em seus ombros suspirava, impaciente.
Quando postou as cartas na mesa da taverna, o
homem à sua frente se ajeitou na cadeira, ansioso. Suava frio, em suma nas
mãos, que se esfregavam. Aproximou-se, olhando os padrões ilegíveis das cartas,
buscando nas figuras um entendimento, um roteiro para sua vida, em vão. Abriu a
boca uma ou duas vezes, engoliu as indagações e os comentários, esperou.
—Vejo tua sorte nas cartas —ela falou, e ele
ouviu.
Com os dedos magricelas, moveu as cartas de
lugar. Os nomes eram incompreensíveis, escritos numa linguagem peculiar. As
figuras variavam: de cobras e escorpiões a gárgulas e matilhas de lobos
sorridentes. Havia também uma torre, e um castelo, e uma fortaleza feita de
palitos de fósforo.
Nada parecia fazer sentido.
—Teu futuro são as cartas —ela disse, e respirou
fundo, mais uma vez. Era, possivelmente, a décima vez em que fazia isso. Olhou
para suas mãos, que percorriam as gravuras. Parou sobre uma, aleatória. O corvo
ajeitou as asas.
—E o que elas dizem?
—Nada.
—Nada?
—Eu digo. Elas apenas me mostram.
O homem satisfez-se com a sabedoria filosófica
da cartomante, e esperou.
A concentração fazia com que ambos se
esquecessem da farra que ocorria ao redor, na agitada taverna em que se
encontravam.
—A Torre sem Janelas —disse-lhe a mulher,
postando os indicadores sobre a figura de uma torre que, surpreendentemente,
tinha duas janelas miúdas. —É ela a resposta.
—Que resposta?
—Para todas as tuas perguntas.
Ele estranhou.
—Uma torre sem janelas? Isso quer dizer que...
eu vou ficar sem saída na vida?
—Há outro motivo para que eu lhe mostre A Torre
sem Janelas. As cartas são teu futuro, saiba desde já. A torre é uma boa
escolha, pois torres são rígidas.
—Rígidas?
A mulher recolheu o baralho com velocidade.
—E, quanto mais rígida for a torre, menor é a
chance de que você se lembre desse futuro amanhã —disse ela, levantando num
movimento ríspido e, com A Torre sem Janelas nas mãos, golpeando o rosto do
homem, que foi arremessado para trás.
Duas mesas quedaram no processo, virando bebidas
e aperitivos de outros grupos. Um casal de elfos enamorados sentiu-se ofendido
pela barulheira desnecessária, e o bardo cujo som agitaria poucos enterros
deixou de tocar sua melodia para encantar a todos com o som de um conflito. Um
anão bêbado há semanas se levantou, o que não mudava muito em sua altura, pedia
por brigas.
O corvo guinchou nos ombros da mulher.
—Tava demorando pra você arrumar confusão! —ele
falou, com uma voz estridente e incômoda, e a mulher riu, deixando de lado as
pesadas vestimentas que a cobriam.
Por sob os mantos, não era de todo feia.
Surpreendia, porém, com sua aparência, digamos, exótica. Cabelos finíssimos,
ondulados, separados em cores e tons, do azul ao púrpura. Uma tiara prateada,
mesma cor dos seis brincos que lhe recobriam as orelhas, uma tatuagem cinzenta
sob o olho esquerdo, tribal. Os lábios tinham um aro metálico trespassado, sem
perder o vermelho sangue já natural. Uma madeixa negra caía sobre os olhos,
parte castanhos, parte verdejados, e as sobrancelhas se misturavam a plumas que
variavam entre o azul marinho e o carmesim.
Aquela era Enigma, a mulher dos mistérios.
Antes que o homem caído se levantasse, Enigma
mostrou-se disposta a fugir, evitando maiores confusões. Guardava nos bolsos as
moedas de ouro do coitado que assaltara, vitoriosa. Precisava apenas de uma
rota de fuga para que o almoço de mais um dia estivesse garantido.
—Até quando vai viver desses trambiques?
—perguntou o corvo.
—Fica quieto, Jarvis! —Enigma bradou, deixando
de lado a tonalidade culta utilizada há pouco.
Tentou escapar pelas portas dos fundos, mas um
bando de arruaceiros já se postava à sua frente, impedindo-a. Buscou a entrada,
mas o casal de elfos já esperava por elas, inconformados com o encontro amoroso
que viram estilhaçar. Correu para os lados, mas o anão bêbado e um grupo de
orcs desajeitados lançavam-na olhares nada admirados.
Estava presa.
O homem caído ao chão se levantou, furioso.
—Como ousa enganar Durval, o Grande
Conquistador?! —indagou, aos berros. Tinha um nome e um título, mas sua fama
não parecia das maiores, pois ninguém naquela taverna se intimidou. —Há de
pagar com sua vida, sua larápia! Prepare-se para —
—Sabia que, quando eu ainda frequentava a
escola, me chamavam de Quebra-Cabeça? —Enigma perguntou, surpreendendo a todos.
A mão direita dentro das vestimentas que até então lhe escondiam. As
sobrancelhas sacudiam ao vento cada vez que ela piscava.
Durval respirou fundo, fora de controle. Sua
pele morena começava a avermelhar, em frenesi. Caminhou, pé ante pé, na direção
de Enigma, que não se moveu.
—Que ótimo, Senhora Quebra-Cabeça —disse ele. —É
uma grande brincadeira essa sua, mas eu vou te mostrar uma brincadeira ainda
mais divertida. Se chama —
Novamente interrompido.
—Eles diziam que eu era incompreensível. Os
garotos tentavam definir meus gostos, mas sempre erravam. Diziam que eu era
difícil de entender. Dá pra acreditar?
O Grande Conquistador bufou. Um dos botões de
sua calça estourou, não suportando a pressão de suas gorduras desnecessárias.
—E me deixa adivinhar —começou ele. —Esse é o
motivo do seu apelido, Quebra-Cabeça?
Enigma sorriu.
—Não —respondeu ela, tirando dos mantos a mão e,
nela, portando um martelo de combate utilizado como se nada pesasse, apesar do
tamanho desproporcional. —Eu quebro crânios. Por isso o apelido.
O golpe veio avassalador, sem aviso, sem
esquiva, e a têmpora de Durval, o Grande Conquistador, deparou-se com a solidez
da Parede, a Grande Destruidora de Guerreiros Nada Famosos, e ele só se
lembraria do acontecido quando acordasse, uma semana mais tarde.
O martelo de Enigma sacudiu no ar, ameaçando
todos os adversários que a circundavam. Ela olhou ao redor, contou. Um, três,
onze, vinte e cinco, cento e... Droga, era horrível em matemática!
Achou melhor fugir e, vendo as portas
bloqueadas, escapou por uma abertura feita nas paredes com seu martelo
quebra-crânios. A primeira parede derrubada a levou até uma casa. Teve de abrir
caminho mais uma vez, antes de disparar numa direção errônea, seguida de perto
por diversos baderneiros de taverna.
O corvo ainda em seus ombros, singelo.
—Por que você sempre faz isso? —perguntou
Jarvis. —Por que não pode simplesmente roubar sem ser percebida e destruir
metade das coisas que ficam perto de você?
—Porque assim não seria tão divertido! —sorriu
Enigma, desaparecendo num beco. Assim que saiu do esconderijo, seu rosto era
outro. As sobrancelhas plumadas desapareceram, o cabelo multicolorido foi
deixado de lado para que fios cobreados pudessem nascer. A pele era mais
morena, e os olhos, mais verdes, fazendo do castanho uma memória antiga e
confusa. Os brincos e o anel metálico dos lábios sumiram, deixando seu rosto
limpo, puro e jovial, como uma garotinha ruiva repleta de sardas. Ainda havia a
tatuagem sob o olho, mas a imagem era diferente: uma lágrima azulada, miúda e
quase imperceptível.
Um dos guerreiros da taverna a abordou. Era o
anão alcoolizado.
—Ei, garota, por um acaso tu não viu uma mulher
bizarra por aí? —perguntou ele, a voz amolecida, bem como as pernas. —Ela tinha
umas sobrancelhas de pavão, sei lá...
—Não a vi —sorriu a garotinha, inocentada, e o
anão aceitou a resposta, encantado pelo sorriso admirável daquela menina, indo
embora logo a seguir. Estranhou o corvo nos ombros da garota, que lhe era
estranhamente familiar, mas nada disse, e logo desapareceu na confusão que se
instalava pela cidade.
Quando fora de perigo, Enigma sentou-se em um
banco, contando o dinheiro que roubara de Durval.
—Viu, foi muito fácil! —disse para Jarvis, que
suspirou, indignado. —Como roubar doce de um filhote!
—Claro, de um filhote de dragão! —corrigiu o
corvo. —Eu não gosto de tanta adrenalina assim, se quer saber.
—Não quero —Enigma zombou, guardando a pequena
fortuna. —Você me segue por opção, Jarvis. E eu ainda tento te ajudar. Depois
de tudo o que tenho feito para quebrar sua maldição, como tem coragem de ser
ingrato assim?
—A maldição que VOCÊ colocou, cretina!
Com a delicadeza das mãos de uma ingênua
garotinha, Enigma estapeou o bico do corvo em seus ombros.
—Indiferente a isso, ainda estou te ajudando
—disse ela. —Se não está feliz com tal situação, queira posicionar seu
sofisticado traseiro plumado no ombro de outra vadiazinha, sua pomba negra.
Jarvis contou, dentro de sua mente de corvo, até
dez, mas achou que dez era um número pequeno demais para que pudesse se
acalmar. Ali, postado nos ombros de Enigma, vivia um dia de cada vez, sem saber
quando seriam apanhados, quando se dariam bem, ou mesmo se um dia, num futuro
distante, sua maldição seria quebrada. Destinado a acompanhá-la para todo o
sempre, ele apenas rezava, em seu interior, para que alguma divindade sóbria
despejasse um pingo de sanidade na deturpada mentalidade de Enigma, cujo nome
verdadeiro se perdera há anos, e que agora atendia assim, ou como a famigerada
Senhora Quebra-Cabeça, cujos rostos jamais se repetiam, cujos roubos se
espalhavam como histórias mitológicas e lendas urbanas.
E, enquanto Jarvis pensava em tudo isso, Enigma
ajeitava suas cartas, preparando-se para ler o futuro de uma nova vítima em
potencial.
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