8
HÁ
MUITAS COISAS PARA SE OBSERVAR NUMA TARDE. Ainda mais quando se senta no banco
de madeira de uma praça movimentada.
Toda
cidade tem sua praça movimentada. Ali não era diferente. Mauro estava sentado
ali, num dos bancos, com os braços unidos sobre as pernas e a mente vagueando
como uma nuvem carregada num tufão. E, dentre todas as coisas que ele poderia
observar, escolheu meninas para isso.
Pensava
em Daiana. Ele a beijara pouco tempo antes, e ela estranhou sua reação. Não
disseram mais nada. Ela foi embora, ele permitiu. Talvez ela nunca mais
voltasse. Quem saberia dizer? Ele não esperava por isso. Ele a odiava, é.
Lutava consigo mesmo para inserir essa ideia em sua mente. Lutava contra o
universo para acreditar que um dia seria capaz de aceitar tal fato.
Enquanto
pensava em Daiana, Mauro observava meninas. Havia um assassino à solta, ou
assim diziam os jornais. Um homem que matava crianças do sexo feminino. Um
monstro que estripava garotinhas. Um ser desprezível, como uma fera animalesca
e faminta em busca da carne que saciaria sua fome. Um demônio.
Olhando
garotas, Mauro se sentiu como o monstro em pessoa. Será que era assim que ele
fazia? Sentava num lugar de grande movimento, num fim de tarde ou numa manhã de
domingo, e escolhia sua vítima? Lá estava uma garota de vestido vermelho
segurando um balão, acompanhada da mãe. Ele a seguiria até sua casa, estudaria
a rotina e, no primeiro momento de fraqueza, findaria sua vida? Era estranho
imaginar assim. E a coisa só piorava conforme Mauro tentava entender o que
motivaria alguém a agir assim.
Olhava,
às vezes, para o celular. O relógio mostrava que ele já estava algumas horas
atrasado para seu trabalho. Não pretendia ir, não mesmo. Ali, na tela,
marcavam-se cinco ligações de Rubens, bem como algumas mensagens com ofensas
abusivas. Ao lado delas, algumas ligações de Luciana. Ela também escrevera
algumas mensagens, mas Mauro não teve coragem de lê-las. Por último, uma única
ligação de Felipe.
Mauro
ligou de volta para ele, mas o telefone chamou e chamou. Ele estava trabalhando
naquele momento. Não ligaria de volta.
Para
surpresa de Mauro, Felipe ligou.
—Alô?
—Mauro?
Cara, tu é louco? O Rubão tá puto contigo! Ele quer arrancar a sua pele, tinha
que ver como ele bufava!
—Que
pena.
—Qual
é cara, o que tá acontecendo? Cadê aquele maluco que sentava no bar do meu lado
e bebia até cantar as garçonetes com músicas bregas?
—Deve
ter morrido junto com Elizabeth...
—Mauro,
ergue essa cabeça cara! Até quando você pretende ficar assim?
Mauro
não soube responder.
—Você
não deveria estar no trabalho? —perguntou ele.
—Sim,
deveria, mas eu escapei. Tinha um atestado na manga, resolvi usá-lo hoje, sabe
como é: tem um parceiro precisando de companhia.
—É,
nisso você tá certo. Eu vou até aí ou você vem me encontrar?
—Aparece
aqui. Tem um vinho esperando pela gente.
—Não
me leva a mal não, mas nem tem como eu beber.
—Você
quem sabe.
Mauro
foi andando até o apartamento de Felipe, que não era tão longe. Três
dormitórios com suíte, piscina, hidromassagem, sauna, academia e playground,
tudo isso para um cara sozinho e sem filhos. Algumas pessoas gostavam de
esbanjar. Outras, como Mauro, apenas as invejam.
—Entra
aí —disse Felipe, abrindo a porta. Vestia um calção de banho e um chinelo.
—Dá
licença.
Mauro
se sentou no sofá, recusando educadamente uma taça de vinho que já estava
disposta ao seu lado.
—Bebi
demais por um mês —contou ele.
—Quando
isso?
—Ontem.
Com a Luciana. Ela foi trabalhar hoje?
—Foi
sim, mas tava com uma cara péssima! Agora eu já sei o que aconteceu. Mas diz
aí, o que rolou? Vocês saíram? Ela é uma ruiva e tanto hein!
—Eu
não me lembro direito, cara. Ela me convidou, eu aceitei, bebemos muito e...
Sei lá. Acordei na casa dela sem calças, e talvez isso devesse ser um bom
sinal, mas não me alegra. Ela tava na cama de solteiro e eu no chão.
—Mas
rolou algo ou não?
—Não
faço ideia.
—E
ela?
—Muito
menos.
Felipe
coçou o queixo, pensativo.
—Ela
não parecia muito alegre não, se quer saber —começou ele. —Talvez você tenha
falhado na hora, vai saber. —Mauro lançou um olhar sombrio para Felipe, que
apenas riu em deboche. —Relaxa cara, é só brincadeira. Mas por essa eu não
esperava, tenho que admitir.
—Imagina
se eu esperava...
Felipe
bebericou o vinho.
—E
quanto às mortes?
Mauro
estranhou.
—Que
mortes?
—As
garotas. Você não assiste televisão?
—Mais
uma?
Felipe
fez que sim com a cabeça. Procurou com as mãos por um jornal amassado que
estava embaixo de suas pernas e jogou-o na direção de Mauro. A manchete falava
sobre a morte de uma terceira garota, aos mesmos moldes de Elizabeth e Júlia.
—Acho
que ela se chamava Clara, ou Carol, algo assim —contou Felipe, tentando recolher
detalhes da reportagem que vira na mídia. —Foi encontrada num parque, na
madrugada de ontem. O desgraçado tirou ela da própria casa e arrastou até os
brinquedos. Provavelmente foi lá que ele a viu pela primeira vez. Só sei que,
depois de esfaqueá-la inúmeras vezes, o cara ainda amarrou a garota no balanço
e deixou ela se arrastar de um lado para o outro, na areia. Acho que nem
preciso comentar sobre como ela ficou...
—Maldito
—praguejou Mauro, apertando o jornal nas mãos, mais especificamente o retrato
da terceira garota assassinada. —Acha mesmo que essas mortes estão
relacionadas?
Felipe
deu de ombros.
—Quem
sabe? Tudo pode estar relacionado. Às vezes o mundo nos prega umas peças, sabe?
As garotas, sua filha, sua depressão... Tudo pode estar relacionado.
—Do
que tá falando?
Felipe
riu, sem graça.
—Sei
lá, cara. Acho que tentei fazer uma piada, mas seu humor não tá muito bom.
Mauro
baixou os olhos, desanimado.
—Eu
tenho medo, Felipe —contou ele. —Tenho medo de não conseguir passar por isso,
de não ter forças para me levantar. Essa queda doeu demais.
—Você
ficou assim quando... Daiana... bom, você sabe. Foi difícil, eu me lembro, mas
no final deu tudo certo.
—Não
deu nada certo. Eu nunca superei aquilo, nunca. Nunca aceitei que ela me
deixou.
—Mas
aprendeu a conviver com isso, o que dá na mesma. Acho que dá pra levar, Maurão,
não me leva a mal. A gente segue com uns tropeços constantes, mas tudo é
passageiro. Tudo fica para trás um dia.
—Eu
não sei... —Mauro pensou um pouco, em silêncio. —Daiana tem me visitado.
Felipe
se assustou.
—Como
assim? —perguntou ele, atônito.
—Ela
apareceu no enterro de Elizabeth. Jurava que ela não estaria lá, mas estava.
Falou comigo, depois foi embora. Achei que era só isso, mas ela tá me seguindo.
Invadiu a minha casa duas vezes. Disse que ainda tinha a chave, mas eu já
troquei as fechaduras. Dei um beijo nela ontem.
Os
olhos de Felipe mostravam um visível desespero em seu semblante, mas ele nada
disse.
—Eu
sei, parece loucura, mas eu não pude me controlar —contou Mauro. —Eu... Eu
ainda a amo. Por isso não atendo Luciana. Por falar nisso, olha ela me ligando
outra vez.
—Devia
tentar atender —disse ao amigo, acabando com seu vinho de uma só vez. —Talvez
você precise disso: uma mulher. Outra mulher. Não Daiana. Se livra do passado,
segue em frente. Enquanto se acorrentar em memórias, vai viver delas, e o mundo
não te espera pra girar.
O
celular vibrou até a chamada de Luciana cair.
—Você
tem razão. Talvez eu deva tentar.
—É.
Eu sempre tenho razão.
Mauro
sorriu, mais por educação do que por graça. Aceitou um único gole de vinho,
para evitar a desfeita, e se despediu do amigo. Felipe ainda o olhava com
estranheza, como se algo em suas palavras fizesse com que o amigo o visse como
um louco.
Quando
no exterior do apartamento, Mauro recebeu novamente uma ligação de Luciana. O
celular tocou uma, duas, três vezes. Ele prometeu a si mesmo que atenderia, mas
não o fez.
Desligou e seguiu em frente.
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