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A
PRAÇA PARECIA BASTANTE CONVIDATIVA PARA MAURO. Nos dias que se seguiram, ganhou
o hábito de se sentar ali, no mesmo banco, e observar as mesmas pessoas, em
suma crianças. Algumas famílias estavam sempre por lá, outras variavam. O
cenário era o mesmo, a paisagem era idêntica, mas o conteúdo do quadro se
alterava todos os dias, mesmo que somente em peças de roupas, e ele acreditava
que jamais fosse se cansar de admirar aquela pintura de realidade.
Luciana
ligou por mais dois dias, então desistiu. Deixou algumas mensagens na caixa de
entrada, mas Mauro não as leu. Tinha medo de se encontrar com ela. Tinha medo
de seguir em frente.
Felipe
tentou ligar, bem como Rubens. Mauro não queria falar com ninguém. Recebeu em
sua casa, pelo correio, o acerto de sua demissão por justa causa, e assinou o
termo recebido sem demora. Jogou-o por sob a porta de entrada do escritório e
jurou que nunca mais voltaria àquele lugar.
Estava
livre, de alguma maneira. Sentado naquele mesmo banco dia após dia, acorrentado
ao passado e às desgraças de sua vida, mas livre. Livre para voar sem asas,
para correr numa cadeira de rodas. Livre numa prisão, mas livre.
—Se
sente melhor?
Daiana
se sentou ao seu lado. Usava um vestido florido e suave, o qual ele reconheceu
de imediato como um presente que lhe dera durante o casamento.
—Sim
—mas repensou. —Não. Talvez tenha melhorado, mas não me sinto assim. Acho que
nem me sinto mais, pra ser sincero.
Ela
sorriu, como amiga.
—Está
olhando as crianças?
Mauro
não respondeu. Também não sabia o quê estava olhando todo esse tempo.
—É
engraçado, não é? —começou Daiana. —Um dia, fomos nós assim, como pais bobos.
—Ela apontava um casal que corria atrás de um garoto de boné. —Elizabeth
aprontava bastante. Sempre soube se divertir e nos cansar. Era uma garota de
ouro.
—Ouro
esse que foi tirado de nós. De mim. Roubado.
Daiana
suspirou.
—Tem
um remédio que resolve tudo: o tempo. Ele passa. Faz o mundo girar e a cabeça
envelhecer. Cabeças velhas esquecem as coisas mais rápido. É a única vantagem
de ficar mais velho.
—Eu
já sou velho demais, Daiana.
—Então
precisa envelhecer mais, pra aprender a deixar as coisas para trás.
Mauro
tentou engolir cada uma das palavras que proferiu antes que elas escapassem de
sua boca, mas não pôde evitar:
—Como
posso deixar as coisas para trás se você continua a me perseguir assim? Como eu
posso me livrar do passado se ele invade a minha casa nas horas vagas? A minha
vida tá uma merda, Daiana, e te encontrar toda semana não tem ajudado em nada.
Se quer me ajudar, se quer mesmo me ajudar, some, desaparece. Eu não tô legal.
Eu nunca estive depois que você partiu. Eu sinto sua falta...
Daiana
o observava sem palavras. Ao fim do discurso, ela se levantou, calada. Deixou
um sorriso transparecer em seu rosto, tocou os ombros de Mauro por duas vezes,
num gesto de carinho, e partiu sem olhar para trás.
—Daiana,
espera!
Mas,
obviamente, ela não esperou, e logo desapareceu na praça.
—Você
podia ter me ligado, não é?
A
voz de Luciana assustou Mauro.
—Como
me encontrou?
—Por
acaso. Várias vezes, vários dias, sempre no mesmo lugar. Acho que eu aprendi
sua rotina.
Mauro
se perguntava se Luciana tinha visto Daiana ao seu lado, no banco. Resolveu
fingir-se de desentendido até que ela tocasse no assunto, se tocasse.
—Tem
me seguido?
—Tenho
te ligado —ela soltou como um trovão. —Bastante, devo admitir. Aí você me
rejeita, pensando que eu sou daquelas que se apaixona e quer ter uma família de
maneira desesperada. Eu só estava preocupada contigo, seu idiota. Queria saber
como você estava. Você foi demitido, sabia?
—Sim,
eu sei. Recebi os documentos em casa, deixei o termo assinado embaixo da porta
do escritório. Não vou voltar mais lá.
—Tá
feliz com isso?
—Estou
indiferente. Isso deve ser bom. Ultimamente, tudo me deixa abatido. Se isso não
mexeu comigo, deve ser um bom sinal.
—O
Rubens ficou doido.
—Felipe
me contou.
—Então
com ele você fala, né?
Mauro
se arrependeu de ter dito aquilo.
—Falei.
Uma vez, só. Bebemos um pouco.
—Só
espero que não tenha acordado no apartamento dele sem suas calças —disse ela,
forçando um sorriso. —Eu tenho uma coisa pra você.
Luciana
depositou sua bolsa de couro escuro sobre o banco e começou a revirá-la,
buscando por algo específico. Mauro se permitiu observar por um só instante a
bolsa de Luciana, que não tinha nada de organizada como ele esperava. Por um
único momento, teve a impressão de enxergar lá dentro um objeto metálico e
longo, como um punhal, mas Luciana pareceu notar seus olhos, escondendo a bolsa
de imediato.
—É
pra ser uma surpresa, sabia? —disse ela, claramente mascarando o desconforto de
uma situação que notara.
—Isso
é uma faca?
A
pergunta pegou Luciana de surpresa.
—O
que disse?
—Você
tem uma faca na bolsa?
Ela
hesitou.
—Tá
me acusando de algo, Mauro? Porque eu sinceramente não consigo acreditar que tá
fazendo isso assim, numa praça pública!
—Por
que você tem uma faca na sua bolsa? —Mauro se lembrava das mortes das garotas,
em especial a de sua filha, a qual teve a infelicidade de se deslumbrar com o
corpo. Facadas. —Me diz, Luciana, por que você tem uma faca na sua bolsa?!
Algumas
pessoas nas proximidades ouviram. Uns disfarçaram, outros se mostraram interessados
ou com medo.
—Não
tem uma faca aqui, Mauro —Luciana contou, com calma.
—Eu
vi, eu juro que vi!
Ela
jogou a bolsa em sua direção.
—Então
olha outra vez, com atenção, e me diz se encontrar alguma coisa.
Mauro
olhava para aquela bolsa com medo e desprezo nos olhos.
—Vou
pra casa —disse ele, se levantando com rispidez. —Não me liga mais, sério, me
deixa em paz!
Ele se afastou caminhando, de
início, mas logo se viu correr para longe de Luciana, que ficou ali, somente
observando até que Mauro desaparecesse nas ruas.
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