14
PODERIA
SER UM FANTASMA OU UMA ALUCINAÇÃO. Não faria diferença. Daiana não estava mais
ali. Daiana não mais vivia.
Ela
estava morta, e a culpa era de Mauro.
—Por
isso estranhei quando você me contou sobre ela —disse Felipe, guardando a foto
na gaveta outra vez. —Não era possível que ela estivesse te seguindo. Daiana
está morta, Mauro. Não importa se foi você ou não. Ela está morta, então não
pode estar invadindo a sua casa.
—Ela
não tinhas as chaves —choramingava ele. —Ela nem estava ali. Eu a beijei... eu
senti aquele beijo, Felipe.
—Você
não tá legal, cara.
—A
minha cabeça tá falhando. Eu... Eu acordei sem saber onde estava, um dia
desses. —Mauro falava como se fosse uma confissão de um adolescente feita a um
padre repleto de dogmas religiosos. —Acordei nas ruas, com gatos mortos nas
mãos.
—Que
nojo!
—É
sério, merda! Eu não me lembro de ter matado esses bichos! Não me lembro de
andar até lá, não me lembro de nada.
—Como
não se lembrava da morte de Daiana.
Mauro
fez que sim, choroso.
—Eu
estou ficando louco, não é? —perguntou ele.
Felipe
deu de ombros.
—Todo
mundo tem um pouco de louco —respondeu ele. —Faz parte da normalidade.
Em
outros momentos, Mauro riria, mas não tinha graça quando o louco era ele.
—Eu
encontrei uma faca —continuando sua confissão. —Ela tinha sangue. Não sei de
onde ela veio, nem para onde ela foi. Mas ela tinha sangue, Felipe, tinha
sangue naquela merda de faca! Eu não me lembro de nada!
—Fica
calmo, Mauro, você —
—Como
ficar calmo?! —gritou ele, desesperado. —Como é que dá pra ficar calmo quando
tem gente morrendo e você não sabe se é você o responsável?! Como é que eu
posso ficar calmo sem saber se eu não matei a minha própria filha?!
Felipe
abriu a boca na tentativa de dizer algo, mas seu semblante transpareciam
surpresa e temor, e ele se calou, baixando os olhos.
—Eu
vou embora —Mauro falou, e Felipe não impediu. Assistiu enquanto seu amigo se
levantava e se dirigia à porta.
—Mauro
—disse ele.
—O
que?
—Se
cuida, seu merda.
A
porta se fechou, e aquilo não era uma resposta.
Mauro
ganhou as ruas, rodeado por ar puro e impuro, um ar que não lhe sustentava a
respiração. Sentia o peito arder, a cabeça oscilar, impactada pela desgraça que
circundava sua vida.
Ele
não levantava os olhos. Não tinha coragem de encarar o mundo, muito menos um
espelho. Passava a passos rápidos por todas as vitrines, acelerando como se
alguém o perseguisse, mas era a verdade quem o seguia. Luciana estava grávida.
Daiana estava morta. Ele era um assassino. Sua filha estava morta, e ele
poderia muito bem ser o culpado também. Sua vida estava um caos, completamente
desregulada, sem vínculo algum com a sanidade do cotidiano. Não tinha um
emprego, um amor ou uma meta. Não tinha vontades, não tinha fome ou sede, não tinha
mais nada.
Não
tinha salvação.
Queria
a solução em uma palavra, e essa palavra era suicídio.
Alguém
gritou.
Foi
um grito estridente, feminino e apavorado. Ecoou por toda a rua, de esquina a
esquina, quase capaz de estilhaçar as vidraças das lojas. Uma mulher apontava
para cima, uma multidão de curiosos correu para observar, mães e pais cobriam
os olhos de crianças ingênuas demais para a verdade imunda do universo.
Mauro
não levantou os olhos. Nada nesse mundo despertaria sua curiosidade, pois nada
nesse mundo poderia mudar sua vida, seus dias e sua loucura. Alguém gritou, mas
ele estava em silêncio, congelado num pavor que tardaria a passar, se passasse.
Os
olhos se levantaram sem vontade. Seus passos estacaram, seu corpo não
respondeu. A vida paralisou por um instante, e aquela visão dizimou seus
pensamentos, e o caos absurdo que o circundava pareceu uma brincadeira de
criança diante daquela visão.
Uma
mulher jazia dependurada nos fios de eletricidade de um poste, no meio da rua.
Seu corpo sacudia como o pêndulo de um relógio, tiquetaqueando para lá e para
cá, sem marcar horas ou quaisquer outras medidas. Ela apenas se movia, ia e
vinha, sem pressa, sem vida. Os olhos estavam saltados, as bochechas arroxeadas
pela falta de ar, o pescoço quebrado pelo tranco insuportável do suicídio.
Ainda que irreconhecível, Mauro a conhecia e a reconhecia. Viu ali a paz de
espírito e o caos das ideias, num mesmo lugar, numa mesma cena, num mesmo nome
que se perdia na morte iminente.
Luciana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário