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A
ENXAQUECA DO DIA SEGUINTE PARECIA CATASTRÓFICA. As dores no corpo também
incomodavam, bem como algumas contusões suspeitas, que Mauro não sabia indicar
as razões. Sentia-se mal, nauseado e tonto, mas sentia-se mal, primeiramente,
por não saber o que sentir.
Não
bastasse o pesadelo da noite anterior, que fora real o bastante para deixar
marcas em seu corpo e em sua mente, Mauro ligou a televisão e, na forma de uma
surpresa irônica escarrada por um universo maléfico demais, escutou com a alma
ferida a mídia narrar a morte de uma quarta garota.
—Não...
—murmurava, as mãos sobre os lábios, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
A garota ainda não
identificada recebeu tantos golpes com a faca que seu rosto ficou desfigurado.
A polícia está imbuída na busca pelo assassino, ao mesmo tempo em que tentam
descobrir a identidade da mais nova vítima do então chamado Maníaco do Circo,
nome atribuído graças à atração doentia do assassino em série por jovens
garotinhas de vidas curtas e sonhos grandiosos. Há uma grande possibilidade de
que a família da vítima resida nas proximidades de onde o corpo foi localizado.
Mais notícias após os comerciais.
Mauro
desligou o televisor e bebeu água, muita água, então vomitou tudo. Pensou em
comer, pois sentia uma fome colossal, mas sabia que nenhum alimento estacaria
em seu estômago. Ele não estava bem, não mesmo. Precisava descansar.
Olhou
no espelho e se viu exausto. Tinha olheiras enormes, arroxeados no rosto e nos
braços, manchas verdes nas pernas e no torso. Estava mais magro, mais fraco.
Mais vazio.
Olhando
no espelho, daquela forma, Mauro se perguntou se realmente sabia quem era
aquele homem no reflexo.
—O
que você fez? —perguntou ele, e a resposta não existiu. —O que você fez, seu
maldito? O que você tá fazendo com a minha vida?!
O
espelho o fitava com deboche, em silêncio.
—O
QUE VOCÊ FEZ?!
Mauro
gritou e, com as mãos nuas, esmurrou o vidro com toda sua força, odiando aquele
homem que não era ele, não podia ser. O vidro cortou suas mãos, fez o sangue
escorrer livre, livre como Mauro não mais se sentia.
Alguém
bateu à porta.
—Mauro?
—a voz chamava do outro lado dos sofás e dos armários, soando abafada pelos
escudos. —Mauro, sou eu, Luciana! Será que a gente pode conversar?
—Eu
não tô afim de conversar —Mauro disse, baixo o suficiente para que somente ele
escutasse. Não queria que Luciana o escutasse. Não queria que o estranho no
espelho soubesse que ele estava ali.
—Mauro,
eu sei que tá aí dentro —ela insistia. —Abre essa porta, fala comigo. Eu não tô
chateada pelo que você fez, eu juro! Tô preocupada contigo. Você devia me
deixar te ajudar.
Mauro
lavou o ferimento em sua mão, cobrindo-o com um esparadrapo que encontrou num
kit medicinal de validade vencida. Sentou-se num dos sofás que bloqueavam a
porta de entrada e esperou, ouvindo as batidas insistentes de Luciana até que
ela desistisse de tentar e fosse embora.
Restou
o silêncio, e ele. Pensou se deveria abrir as janelas, para que o homem do
espelho fosse embora. Estava louco. Não queria aquele homem dentro de sua casa,
mas aquele homem era ele.
Só
tinha uma solução.
Procurou
em seu armário por um cordão de escalada, guardado para aventuras passadas,
coisas que a adrenalina envelhecida não mais lhe permitia tentar. Ajeitou a
corda num dos armários de seu quarto, o mais alto deles, prendeu-a com firmeza
de modo que ele perdesse o chão. Subiu numa cadeira e enrolou a corda no
pescoço, prestes a iniciar o que seria o fim de sua vida, mas também o fim de
todo aquele sofrimento insano.
—Adeus.
Adeus?
—Sim,
adeus.
De
quem estava se despedindo?
—Do
mundo. Eu estou me despedindo do mundo.
Como
se o mundo se importasse com ele.
—Não
se importa. Nem o mundo, nem ninguém.
Ninguém.
—Ninguém
se importa.
Ninguém
o salvaria, ninguém o impediria.
—Ninguém.
A
corda enrijeceu com um puxada leve.
—Adeus.
A
cadeira sob seus pés estremeceu.
—Mauro!
Era
Daiana. Ela correu na direção do ex-marido e saltou sobre seus braços,
derrubando-o da cadeira e afrouxando a corda que marcava seu pescoço. Mauro
caiu, sentiu seus sapatos da noite anterior baterem contra as costas
desprotegidas, ganiu de dor, não pela pancada, mas por saber que sobreviveria
àquilo.
—Por
que?! —ele soluçava, desesperado. —Por que você está aqui?! Por que me salvou?
Por que me impediu?
—Mauro,
se acalme!
Daiana
o acolheu em seu abraço e, pela primeira vez em muito tempo, Mauro se sentiu
seguro.
—Por
que... —chorava ele.
—Fique
quieto. Você precisa descansar. Isso não é uma opção, não mesmo. Venha.
Ela
o ajudou a se levantar. Colocou-o sobre a cama de casal utilizada por um
solteiro, tirou suas meias e sua camiseta, suja pelo sangue do ferimento na
mão.
—O
que aconteceu aqui? —perguntou ela.
—Eu
não sei —Mauro sofria para falar, sofria para existir. —Eu não sei... mas eu
não aguento mais, não. Me deixa morrer, Daiana. Me deixa ir embora agora, por
favor, pelo amor de Deus!
A
expressão de Daiana poderia confundir qualquer pessoa, demonstrando sentimentos
e emoções desconexas, distintas e estranhas, mas uma delas prevalecia: pena.
Piedade, dó.
Ela
tinha pena daquele homem.
—Tá
tudo bem, Mauro —dizia ela, confortando o ex-marido com suas carícias. Mauro
sentiu suas mãos em sua testa. Eram frias, diferente do que ele se lembrava.
Ainda assim, eram carinhosas, aconchegantes e protetoras. Ele se sentia bem
naquele carinho. Ele se sentia bem com aquela mulher. —Vai ficar tudo bem...
Ouvindo a voz manhosa de
Daiana, Mauro adormeceu, sem calmantes ou pavores. Dormiu sem sonhar com nada,
mas igualmente livre dos pesadelos. Apenas dormiu por minutos, por horas, por
vidas.
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