“A loucura contagia: se abre num leque de
cotidianos, se perde numa epidemia de espirros asmáticos, se foca numa multidão
silenciosa de gritantes solitários, se cala na mais clara das noites e no mais
escuro dos sóis. Ela percorre o ar, acasala com o oxigênio e, a todos aqueles
que respirarem o terror de enlouquecer, nada além da loucura pode restar.”
10
MAURO
ABRIU OS OLHOS E SE PERGUNTOU QUE LUGAR ERA AQUELE. Sua cabeça doía, o corpo
formigava. Os olhos custavam a acostumar com a baixa iluminação. Estava numa
rua cinzenta, próximo de um poste de luz, e carregava nas mãos um saco de lixo.
Havia
sangue em seus dedos, vermelho e, para sua surpresa, ainda quente.
—O
que aconteceu?
Antes
de se desesperar, Mauro avaliou se aquilo não era um sonho. Ele podia sentir o
frio da madrugada, o vento cortante de um horário em que seu corpo velho não
lhe permitia caminhar nas ruas. Não era um sonho. Infelizmente, não era mais um
de seus pesadelos. Era a dura e trágica realidade da sua vida.
Tentou
reconstruir os últimos fatos. Lembrou-se do encontro com Daiana, e logo em
seguida com Luciana. Lembrou-se do punhal que vira em sua bolsa, por mais que
ela tenha negado. Lembrou-se de correr para casa e se trancar, na esperança de
que o mundo pudesse mudar enquanto ele ficasse ali, quietinho. Lembrou-se de
tomar um calmante pra poder dormir, de sentar-se em frente à televisão e de
fechar os olhos para o que deveria ser somente um cochilo.
Agora,
estava numa rua desconhecida, com sangue e um saco escuro nas mãos.
Levantou
o saco de lixo, sentiu um peso estranho em seu interior. Não eram latas de
cerveja, restos de comida ou pedaços de papel, como de costume. Era outra
coisa. Aproveitando-se da luz do poste, Mauro olhou para suas mãos, confirmando
o escarlate do sangue que ali se encontrava. Temeu o pior.
—O
que eu fiz? —perguntou para si mesmo.
Sua
voz estava irreconhecível.
Ele
se agachou, trêmulo, e desfez o nó que lacrava o saco de lixo. Com o maior
receio que sentiu por toda sua vida, olhou o conteúdo daquele pesadelo e,
quando o cheiro lhe agraciou as narinas, vomitou na calçada como um bêbado que
acaba de sair de uma festa.
Eram
gatos.
Três
deles, todos escuros e de pelugem maltrapilha. Gatos de rua, daqueles que sobem
nos telhados das casas e miam a noite toda, incomodando o sono dos insones. Os
três animais estavam mortos, mas todos ainda sangravam.
—Puta
merda! —exclamou, limpando o vômito dos lábios.
Olhou
para os lados, não viu ninguém, constatou que estava sozinho naquele local.
Sentia-se um criminoso, um assassino. Encontrou uma caçamba próxima a uma
construção, jogou os corpos dos gatos lá dentro e, sem demoras, correu para sua
casa, apavorado.
Sentia
como se a rua o observasse em desaprovação. Os prédios, as casas, as lojas e os
postes, todos eles lançavam olhares perversos na direção de Mauro, que corria
cabisbaixo, trêmulo e suando frio. O mundo parecia frio demais para que ele
pudesse resistir àquele pavor. Por vezes, sentiu o vento pesar contra seu
corpo, forçando-o a desistir de correr, de fugir, como se buscasse aprisioná-lo
no lugar até que alguém o encontrasse ali, naquela situação inóspita, e o
incriminasse por algo que ele não se lembrava de fazer.
—O
que foi que eu fiz? —ele se perguntava, mas não sabia.
Talvez
fosse sonambulismo. Não, não era possível que alguém com tal doença deixasse
sua casa para trás e alcançasse um lugar distante como aquele, àquela hora da
madrugada, sem atrair atenção alguma de possíveis meliantes ou pedintes.
Estaria ficando louco? Sim, isso era bastante provável. Louco, cada vez mais,
sem perceber. Enlouquecia pela ausência, pela saudade, pela solidão.
Enlouquecia ao ver sua vida se reprimir daquele modo, por se enclausurar em sua
moradia e se destruir pouco a pouco com pensamentos de intensa angústia.
Enlouquecia,
e a loucura o cegava a ponto de agir sem notar.
—O
que foi que eu fiz? —repetia, balbuciando.
Pensou
se, em dias anteriores, aquilo já havia acontecido. Talvez ele tivesse agido
sem se recordar. Talvez não tenha acordado a ponto de se ver ali, num lugar diferente,
antes de retornar para sua casa e fingir que nada de absurdo tinha ocorrido.
Olhava
para suas mãos e via o sangue de três felinos, e aquela visão castigava seus
pensamentos.
E
se ele tivesse... Não, isso não poderia ser verdade?
Poderia?
Correu,
alvejado pelos olhares de todos os prédios, de toda a noite. Por vezes, gritava
algo repulsivo, incompreensível e doloroso. Alguns destes gritos eram
traduzíveis:
—Não
fui eu. Eu juro, não fui eu, eu não me lembro de nada! Eu não matei ninguém, eu
não matei nenhum animal. Eu não matei... Eu não...
Elizabeth.
E
se ele fosse o responsável por sua morte?
—Não
—sacudindo a cabeça.
Mas
ele poderia muito bem ter se esquecido...
—Não
é possível... —com as mãos sobre os ouvidos, tentando extinguir a voz que lhe
gritava as dores, mas a voz vinha de dentro de sua mente.
Ele
poderia muito bem ser o responsável pela morte de sua própria filha.
—Não!
—aos gritos. —Eu não fiz nada, eu juro...
Choramingava.
Buscava nas memórias algo que lhe permitisse acreditar em sua inocência, mas
talvez não houvesse inocência para acreditar.
—Eu
não faria...
Ele
não. Mas e esse outro homem? Esse homem sem nome, sem identidade, que se
ausenta de sua casa no meio da noite para acabar com a vida de três bichanos?
Talvez ele fizesse.
—Sou
apenas eu, mais ninguém, e eu jamais faria!
De
quem estava se defendendo? Pra quem estava tentando provar alguma coisa?
—Não
fiz...
Para
si mesmo?
—Eu
não...
Para
o mundo?
—Não...
Para
ninguém. Só precisava acreditar. Precisava ser inocente. Precisava enxergar
facas nas bolsas de outras pessoas, enxergar em pais mais velhos possíveis
assassinos de garotinhas, coisas assim.
Precisava
culpar alguém para que pudesse se livrar da culpa.
Enfim
chegara a sua casa. Trombou em um homem de roupas sociais, não teve coragem de
olhá-lo nos olhos. O estranho perguntou alguma coisa, Mauro não respondeu.
Pediu desculpas, acenou com uma mesura, baixou os olhos e entrou. Por um
instante, teve a impressão de ver o estranho com as mãos sujas de sangue, mas
deixou de acreditar no que seus olhos mostravam.
Eles
procuravam um culpado, e o culpado poderia muito bem estar escondido no
espelho.
Mauro
fechou a porta, trancou-a de todas as formas, empurrou os sofás e os armários
contra a única saída. Ofegava. Correu para o banheiro, derrubou quadros e
móveis no caminho, escancarou o armário da pia buscado o sabonete rosado com
cheiro de morango. Lavou as mãos por longos minutos, tentando desesperadamente
se livrar do sangue dos gatos que matara sem perceber. Livrou-se da sujeira,
mas e a culpa? Ela ficaria ali, para sempre. Água ou espuma não seriam fortes o
suficiente para limpá-lo de suas atitudes. Nada seria.
Mas
ele precisava ser forte o suficiente.
Ele
necessitava.
Jogou-se
num dos sofás, só então percebeu que chorava aos soluços. Tentou se acalmar,
falhou miseravelmente. Era um fracasso como homem, um fracasso como pessoa. Era
um desastre como marido, uma tragédia como pai. Não era nada, nunca seria.
Fraquejava, os braços trêmulos, as mãos buscando cobrir os olhos para evitar o
choque da realidade.
Alguém
bateu à porta, Mauro chorou, assustado. Como uma criança. Uma criança
desesperada, terrivelmente magoada após perder numa brincadeira que ela não
mais poderia participar.
Batidas,
outra vez. Mais fortes. Mais rápidas.
—Não
tem ninguém aqui! —gritou ele.
A
cabeça girou no lugar. A visão ficou turva, confusa. Sua cabeça latejou.
—Não
tem ninguém! —tentou outra vez, mas não teve certeza se sua voz realmente saiu
de sua garganta.
As
batidas persistiram, ele agonizou. Cobriu os olhos, tudo ficou escuro, escuro
como nunca antes tinha ficado. O mundo se moveu rápido demais, Mauro se sentiu
zonzo. O sofá deixou de parecer confortável. Sua casa deixou de parecer segura.
Sua vida deixou de parecer real. Era como um pesadelo eterno.
—Não
tem ninguém —murmurou, e sua voz soou sozinha.
Estava
outra vez na rua, em frente à própria casa. Ao seu lado, uma faca grande, como
a que vira na bolsa de Luciana, ou que acreditou ter visto. Havia sangue em sua
lâmina, sangue fresco.
Não
era sangue de gatos.
—O
que foi que eu fiz? —balbuciou Mauro, incrédulo, oscilante, sentindo como se o
chão abaixo de seus pés tivesse desaparecido por completo.
Sem forças, entrou em sua
casa, montou as barreiras que lhe protegeriam e tomou cinco comprimidos do mais
forte calmante que encontrou em seu banheiro, antes de adormecer como uma
princesa enfeitiçada por uma bruxa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário