sábado, 27 de julho de 2013

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 16 [Web Novela]

16

FORA DAQUELE LUGAR, SIRENES ECOAVAM COMO UM EXÉRCITO UIVANTE. Dentro, Mauro silenciava. Estava escuro e frio. Ele estava sozinho. Suas mãos estavam cobertas de sangue.
No chão, uma faca.
—Mas que —
Calou-se. Sua voz ecoava, mesmo que baixa. O lugar parecia um depósito, repleto de tralhas e de caixotes. Frestas miúdas no telhado permitiam a entrada da luz da lua, singela e calma, diferente dos batimentos cardíacos de Mauro, que pareciam o estopim bélico de uma guerra mundial.
Ele ouviu alguma coisa que pensou se tratar de um passo, um único movimento à espreita, possivelmente um observador. Baixou a silhueta, escorou-se nas madeiras que guiavam-no por uma trilha larga de entulhos, caminhou tão devagar quanto os ossos permitiam sem ranger. Alguma coisa gotejava, próxima. Mirou o som do líquido, deixando para trás a faca, a incerteza e o pavor.
Talvez não o pavor. Este sempre o seguiria.
Passos adiante, ouviu-se um crepitar. Naquele escuro, chamas miúdas e tímidas iluminavam as paredes, acesas pela força do homem, não da natureza. Madeira dos caixotes queimava com precisão, uma fogueira trabalhada na intenção de irradiar, esquentar ou confundir. Mauro se aproximou, cauteloso, e a luz lhe permitiu visualizar sombras macabras, demônios e monstros de seu subconsciente, ganchos de maquinaria de carga e empilhadeiras, suportes e plataformas, produtos e mais produtos largados às traças.
O mesmo fogo que mostrou a Mauro tantas sombras soturnas, mostrou a ele a razão do gotejar.
Dependurada no gancho de uma das máquinas, um corpo. Uma menina, outra vítima. Não mais vivia, infelizmente, sequer tentava respirar após a dor mortífera que lhe aturdira. O metal enferrujado trespassava os seios não desenvolvidos da garota, deixando-a ali, inerte a metros de altura do chão, despejando sangue fresco dos lábios e do ferimento que lhe tirara a vida. O sangue escorria sem pressa, rumando contra o solo, empoçando o escarlate abaixo dos pés de uma juventude desperdiçada pelo ócio da insanidade.
Mauro viu, para seu desespero pessoal, cortes e perfurações nas pernas e nos braços da menina. Marcas de lâmina, de faca.
Lembrou-se da faca que deixara para trás.
—Não pode ser... —murmurou ele, os olhos foscos, tão mortos quanto aquela garota.
As sirenes continuavam a vibrar no exterior do depósito. Algo estrondou, um dos portões. Tentavam arrombá-lo, invadir o local, encontrar o assassino em série que aterrorizava as meninas e as famílias da região.
Buscavam por Mauro.
Pensou em correr, mas de que adiantaria? Podia evitar a culpa dos demais, mas não a sua. Podia fingir-se de despercebido para a milícia, mas não para si mesmo. Era um assassino. Era ele o responsável pelas mortes, em sua esquizofrenia bizarra e descontrolada. Era ele o assassino de sua própria filha.
Ouviu passos.
Ao longe, mais estrondos contra os portões de chapa. Alguém disparou, possivelmente alvejando correntes e cadeados. Estavam chegando mais perto.
—Eu vou me entregar.
Mauro olhou ao redor. Sentia-se observado, perseguido. Sentia-se louco.
—Eu preciso me entregar.
Então tudo passaria. Mas não se sentia culpado. Sentia-se mal pelas mortes, fechava os olhos para tentar se recordar, para poder se incriminar por tantos crimes, mas falhava. Nada em sua mente permitia que ele visualizasse assassinatos e banhos de sangue. Nada.
Passos.
As sirenes continuavam, faziam música. Os passos eram um toque saboroso, tamborilando em meio a melodia dos uivos mecânicos das viaturas. Mauro tentou contar, de acordo com o som, quantos carros de polícia estariam ali, à sua procura, mas era incapaz de deduzir. Três, quatro? Vinte?
Era um assassino em série, um criminoso de elite. Sua pena não caberia em anos. Prisão perpétua não parecia uma opção razoavelmente aceitável. Era a morte. O fim, a solução. Morte a ele, morte a seu passado, a seus erros.
Talvez morrer não fosse tão ruim.
Passos.
Algo arrastava no chão. As sirenes ululavam. Os passos aumentavam e diminuíam. O sangue da garota empoçava o local. O vento se chocava contra as paredes metálicas. Os caixotes rangiam.
Mauro choramingava, sem perceber.
Tudo aquilo era música.
Os passos pararam. Havia alguém ali, em algum lugar. Mauro observou, tentou encontrar quem o observava, inexistia. Arriscou caminhar, fugir do caçador, entregar-se á prisão ou á morte, tropeçou em seu fracasso, em sua loucura, cedeu de joelhos, fraquejando. Quedou, o queixo tocou o solo, os dentes cerraram um aperto apreensivo. A pele sentia o frio, o coração congelava. A garganta doía ao engolir a própria saliva, como se o líquido pudesse cortar, ferir, mas o que feria era o medo.
—Mauro.
A voz o chamou, no escuro. Era familiar. Masculina, presente. Atrás dela, sirenes e pancadas nos portões, cada vez mais perto, cada vez mais assustadoras.
—Quem está aí?
A silhueta estava ali, no alcance da visão. Familiar, irreconhecível no breu do depósito. Passos, sirenes, goteiras de sangue, ranger das caixas; tudo misturava-se ao urro estridente do silencioso pânico de Mauro.
—Quem está aí? —repetiu ele.
Frestas no telhado deixaram que a luz entrasse, e ela entrou, iluminou e soprou um feixe de verdade naquela paisagem obscura. A loucura de Mauro se confundiu, criou imagens e formas satânicas atrás daquela presença. Forçou os olhos, se concentrou, não acreditou no que via.
Felipe.
—Felipe?
Sem resposta.
A silhueta do amigo se moveu, vagarosa.
—O que você tá fazendo aqui? —perguntou Mauro, sem entender.
—Eu segui você —contou ele. —Se acalme. Está tudo bem, ok? Eu te segui. Estava preocupado.
—Você... viu, não viu?
Felipe lançou-se à luz, aparecendo por completo no luar. Suas roupas estavam manchadas de sangue. Ele ofegava.
—Eu vi —respondeu. —É, eu vi tudo.
—Então me conte. Por favor, eu preciso saber, preciso ter certeza. Me conte o que viu, Felipe.
O amigo respirou, incerto do que fazer.
—Não.
—Me conte. Eu matei essa garota, não é? Eu matei todas elas. Eu sou um assassino. Eu sou um assassino!
A última frase de Mauro estrondou como um trovão naquele depósito. Insanidade sonora se dispersou por todas as paredes, debateu-se no teto e no solo, voltou de encontro à confusão dos olhares.
—Mauro, se acalme —com toda tranquilidade e paciência do mundo.
—Me acalmar? Me acalmar?! Como é que eu posso ficar calmo?!
Os gritos ecoaram, mais altos que as sirenes. Os estrondos no metal continuavam. Mauro podia ouvir as vozes dos policiais. Eram muitas, amedrontadas, raivosas. Vozes de homens, de heróis. De pais.
Pais que odiavam um assassino de garotas inocentes.
—Eles estão atrás de mim —continuou ele. —Eles vieram me pegar. Vieram pegar o assassino, o maldito assassino que ferrou a cidade toda!
—Vou te ajudar, cara, é sério.
—Me ajudar? —Mauro riu, debochado. —Eu não quero ajuda! Não quero fugir! Quero ficar aqui, esperando por eles. Quero gritar e esperar que me fuzilem com aquelas pistolas de merda. Quanto vale a minha vida, Felipe? Quanto vale a vida de um maluco que matou várias crianças?!
Felipe suspirou, preocupado. Arriscou um ou dois passos, parou mais uma vez.
—O importante é que você se acalme, agora. Me deixa te ajudar. Venha cá, Maurão, eu prometo que vai ficar tudo bem.
—Não tem nada pra ficar bem, merda! A minha vida já tá toda ferrada! Eu matei a minha esposa! Matei a minha filha, e sei lá quantas outras meninas depois. Como espera que —
—MAURO, SE ACALMA!
O grito assustou. Reinou o silêncio, destruído por sirenes, passos velozes e estrondos metálicos. Outro disparo, um cadeado cedeu. A passagem estava aberta, disponível. O fim estava próximo.
—Fica parado —disse Felipe. —Eu só quero te ajudar!
Um passo, mais outro. A lua o tocou mais uma vez. Mauro viu que ele tinha sangue nos braços e no rosto. O ferimento no ombro estava aberto, desprotegido, lembrava um corte. Em sua mão, uma faca.
—Espera aí —Mauro tentou, mas Felipe não esperou por seus pensamentos. Num movimento ríspido, veloz demais para que o desespero de Mauro previsse, Felipe saltou sobre seu corpo, derrubou-o ao chão com seu peso, imobilizou suas pernas e seus braços. —O que tá fazendo?!
Pavor.
Nos olhos de Felipe, loucura.
Loucura igual à de Mauro, talvez maior.
Uma loucura falsa, enganosa, como veneno de víbora, como espinhos nas mais belas rosas.
—Eu adoro a sua memória, cara —sorriu Felipe, e seus dentes pareceram amarelados, pontiagudos e malignos na mente conturbada de Mauro. —Ela sempre me ajudou.
Mas, naquele pavor de momento, Mauro se lembrou. Lembrou do começo, do meio, do fim.
Lembrou de tudo.

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