16
FORA
DAQUELE LUGAR, SIRENES ECOAVAM COMO UM EXÉRCITO UIVANTE. Dentro, Mauro
silenciava. Estava escuro e frio. Ele estava sozinho. Suas mãos estavam
cobertas de sangue.
No
chão, uma faca.
—Mas
que —
Calou-se.
Sua voz ecoava, mesmo que baixa. O lugar parecia um depósito, repleto de tralhas
e de caixotes. Frestas miúdas no telhado permitiam a entrada da luz da lua,
singela e calma, diferente dos batimentos cardíacos de Mauro, que pareciam o
estopim bélico de uma guerra mundial.
Ele
ouviu alguma coisa que pensou se tratar de um passo, um único movimento à
espreita, possivelmente um observador. Baixou a silhueta, escorou-se nas
madeiras que guiavam-no por uma trilha larga de entulhos, caminhou tão devagar
quanto os ossos permitiam sem ranger. Alguma coisa gotejava, próxima. Mirou o
som do líquido, deixando para trás a faca, a incerteza e o pavor.
Talvez
não o pavor. Este sempre o seguiria.
Passos
adiante, ouviu-se um crepitar. Naquele escuro, chamas miúdas e tímidas
iluminavam as paredes, acesas pela força do homem, não da natureza. Madeira dos
caixotes queimava com precisão, uma fogueira trabalhada na intenção de
irradiar, esquentar ou confundir. Mauro se aproximou, cauteloso, e a luz lhe
permitiu visualizar sombras macabras, demônios e monstros de seu subconsciente,
ganchos de maquinaria de carga e empilhadeiras, suportes e plataformas,
produtos e mais produtos largados às traças.
O
mesmo fogo que mostrou a Mauro tantas sombras soturnas, mostrou a ele a razão
do gotejar.
Dependurada
no gancho de uma das máquinas, um corpo. Uma menina, outra vítima. Não mais
vivia, infelizmente, sequer tentava respirar após a dor mortífera que lhe
aturdira. O metal enferrujado trespassava os seios não desenvolvidos da garota,
deixando-a ali, inerte a metros de altura do chão, despejando sangue fresco dos
lábios e do ferimento que lhe tirara a vida. O sangue escorria sem pressa,
rumando contra o solo, empoçando o escarlate abaixo dos pés de uma juventude
desperdiçada pelo ócio da insanidade.
Mauro
viu, para seu desespero pessoal, cortes e perfurações nas pernas e nos braços
da menina. Marcas de lâmina, de faca.
Lembrou-se
da faca que deixara para trás.
—Não
pode ser... —murmurou ele, os olhos foscos, tão mortos quanto aquela garota.
As
sirenes continuavam a vibrar no exterior do depósito. Algo estrondou, um dos portões.
Tentavam arrombá-lo, invadir o local, encontrar o assassino em série que
aterrorizava as meninas e as famílias da região.
Buscavam
por Mauro.
Pensou
em correr, mas de que adiantaria? Podia evitar a culpa dos demais, mas não a
sua. Podia fingir-se de despercebido para a milícia, mas não para si mesmo. Era
um assassino. Era ele o responsável pelas mortes, em sua esquizofrenia bizarra
e descontrolada. Era ele o assassino de sua própria filha.
Ouviu
passos.
Ao
longe, mais estrondos contra os portões de chapa. Alguém disparou,
possivelmente alvejando correntes e cadeados. Estavam chegando mais perto.
—Eu
vou me entregar.
Mauro
olhou ao redor. Sentia-se observado, perseguido. Sentia-se louco.
—Eu
preciso me entregar.
Então
tudo passaria. Mas não se sentia culpado. Sentia-se mal pelas mortes, fechava
os olhos para tentar se recordar, para poder se incriminar por tantos crimes,
mas falhava. Nada em sua mente permitia que ele visualizasse assassinatos e
banhos de sangue. Nada.
Passos.
As
sirenes continuavam, faziam música. Os passos eram um toque saboroso,
tamborilando em meio a melodia dos uivos mecânicos das viaturas. Mauro tentou
contar, de acordo com o som, quantos carros de polícia estariam ali, à sua
procura, mas era incapaz de deduzir. Três, quatro? Vinte?
Era
um assassino em série, um criminoso de elite. Sua pena não caberia em anos.
Prisão perpétua não parecia uma opção razoavelmente aceitável. Era a morte. O
fim, a solução. Morte a ele, morte a seu passado, a seus erros.
Talvez
morrer não fosse tão ruim.
Passos.
Algo
arrastava no chão. As sirenes ululavam. Os passos aumentavam e diminuíam. O
sangue da garota empoçava o local. O vento se chocava contra as paredes
metálicas. Os caixotes rangiam.
Mauro
choramingava, sem perceber.
Tudo
aquilo era música.
Os
passos pararam. Havia alguém ali, em algum lugar. Mauro observou, tentou
encontrar quem o observava, inexistia. Arriscou caminhar, fugir do caçador,
entregar-se á prisão ou á morte, tropeçou em seu fracasso, em sua loucura,
cedeu de joelhos, fraquejando. Quedou, o queixo tocou o solo, os dentes
cerraram um aperto apreensivo. A pele sentia o frio, o coração congelava. A
garganta doía ao engolir a própria saliva, como se o líquido pudesse cortar,
ferir, mas o que feria era o medo.
—Mauro.
A
voz o chamou, no escuro. Era familiar. Masculina, presente. Atrás dela, sirenes
e pancadas nos portões, cada vez mais perto, cada vez mais assustadoras.
—Quem
está aí?
A
silhueta estava ali, no alcance da visão. Familiar, irreconhecível no breu do
depósito. Passos, sirenes, goteiras de sangue, ranger das caixas; tudo
misturava-se ao urro estridente do silencioso pânico de Mauro.
—Quem
está aí? —repetiu ele.
Frestas
no telhado deixaram que a luz entrasse, e ela entrou, iluminou e soprou um
feixe de verdade naquela paisagem obscura. A loucura de Mauro se confundiu,
criou imagens e formas satânicas atrás daquela presença. Forçou os olhos, se
concentrou, não acreditou no que via.
Felipe.
—Felipe?
Sem
resposta.
A
silhueta do amigo se moveu, vagarosa.
—O
que você tá fazendo aqui? —perguntou Mauro, sem entender.
—Eu
segui você —contou ele. —Se acalme. Está tudo bem, ok? Eu te segui. Estava
preocupado.
—Você...
viu, não viu?
Felipe
lançou-se à luz, aparecendo por completo no luar. Suas roupas estavam manchadas
de sangue. Ele ofegava.
—Eu
vi —respondeu. —É, eu vi tudo.
—Então
me conte. Por favor, eu preciso saber, preciso ter certeza. Me conte o que viu,
Felipe.
O
amigo respirou, incerto do que fazer.
—Não.
—Me
conte. Eu matei essa garota, não é? Eu matei todas elas. Eu sou um assassino.
Eu sou um assassino!
A
última frase de Mauro estrondou como um trovão naquele depósito. Insanidade
sonora se dispersou por todas as paredes, debateu-se no teto e no solo, voltou
de encontro à confusão dos olhares.
—Mauro,
se acalme —com toda tranquilidade e paciência do mundo.
—Me
acalmar? Me acalmar?! Como é que eu posso ficar calmo?!
Os
gritos ecoaram, mais altos que as sirenes. Os estrondos no metal continuavam.
Mauro podia ouvir as vozes dos policiais. Eram muitas, amedrontadas, raivosas.
Vozes de homens, de heróis. De pais.
Pais
que odiavam um assassino de garotas inocentes.
—Eles
estão atrás de mim —continuou ele. —Eles vieram me pegar. Vieram pegar o
assassino, o maldito assassino que ferrou a cidade toda!
—Vou
te ajudar, cara, é sério.
—Me
ajudar? —Mauro riu, debochado. —Eu não quero ajuda! Não quero fugir! Quero
ficar aqui, esperando por eles. Quero gritar e esperar que me fuzilem com
aquelas pistolas de merda. Quanto vale a minha vida, Felipe? Quanto vale a vida
de um maluco que matou várias crianças?!
Felipe
suspirou, preocupado. Arriscou um ou dois passos, parou mais uma vez.
—O
importante é que você se acalme, agora. Me deixa te ajudar. Venha cá, Maurão,
eu prometo que vai ficar tudo bem.
—Não
tem nada pra ficar bem, merda! A minha vida já tá toda ferrada! Eu matei a
minha esposa! Matei a minha filha, e sei lá quantas outras meninas depois. Como
espera que —
—MAURO,
SE ACALMA!
O
grito assustou. Reinou o silêncio, destruído por sirenes, passos velozes e
estrondos metálicos. Outro disparo, um cadeado cedeu. A passagem estava aberta,
disponível. O fim estava próximo.
—Fica
parado —disse Felipe. —Eu só quero te ajudar!
Um
passo, mais outro. A lua o tocou mais uma vez. Mauro viu que ele tinha sangue
nos braços e no rosto. O ferimento no ombro estava aberto, desprotegido,
lembrava um corte. Em sua mão, uma faca.
—Espera
aí —Mauro tentou, mas Felipe não esperou por seus pensamentos. Num movimento
ríspido, veloz demais para que o desespero de Mauro previsse, Felipe saltou
sobre seu corpo, derrubou-o ao chão com seu peso, imobilizou suas pernas e seus
braços. —O que tá fazendo?!
Pavor.
Nos
olhos de Felipe, loucura.
Loucura
igual à de Mauro, talvez maior.
Uma
loucura falsa, enganosa, como veneno de víbora, como espinhos nas mais belas
rosas.
—Eu
adoro a sua memória, cara —sorriu Felipe, e seus dentes pareceram amarelados,
pontiagudos e malignos na mente conturbada de Mauro. —Ela sempre me ajudou.
Mas,
naquele pavor de momento, Mauro se lembrou. Lembrou do começo, do meio, do fim.
Lembrou de tudo.
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