17
HAVIA
UM BAILE DE MEMÓRIAS, E ELAS DANÇAVAM UMA DANÇA PERVERSA. Mauro tentava
organizar as peças, juntar o quebra-cabeça na intenção de enxergar mais do que
aquele borrão de quem procura seu reflexo na água urinada de uma privada de
boate.
Se
viu deitado em sua cama, recebia uma ligação. Felipe o chamava. Era um convite
para um lugar desconhecido, não um bar, não um restaurante. Um lugar
abandonado. A promessa era a verdade, a realidade, o seu rosto real no espelho.
Um reflexo palpável, o primeiro deles.
Viu-se
caminhar pelas ruas, receber o vento frio no corpo, no rosto, nas roupas.
Sentia o gelo da incerteza, o medo das descobertas, das revelações. Caminhava,
passos rápidos, outros vagarosos, oscilantes, não sabia se queria ou deixava de
querer. Seguia, sempre em frente. Não havia retorno, não havia mais volta. Se
houvesse algo, estava à frente, na próxima esquina, na próxima porta. Se
houvesse. Talvez não houvesse nada. Talvez ele não fosse nada nem ninguém.
Talvez não houvesse talvez.
Piscou,
viu-se nas ruas escuras, guiado pela brisa perfumada. Seguia um cheiro
conhecido, uma mulher, uma desconhecida de perfume similar, o mesmo perfume de
Luciana. O mesmo perfume de Daiana, inclusive. Ele nunca percebeu que ela o
amava. Nunca percebeu que, mesmo antes, ela fora apaixonada por ele.
Quando
Daiana foi embora, Luciana apareceu. Ofereceu oportunidades, uma mão amiga, um
ombro pra chorar. Queria sua proximidade, sua presença, seu calor. Queria Mauro
para si, queria uma nova vida, uma vida de felicidades. Queria tentar. O
perfume era o mesmo, copiado descaradamente, imitado na tentativa de chamar
atenção. Mauro amava aquele perfume. Não em Luciana, não naquela desconhecida.
Amava-o em Daiana, mas ela não estava mais lá. Não estava mais viva. Não mais
pertencia a ele, se um dia pertenceu.
Seguia
a estranha, um estranho o seguia. Ele não o viu, não o notou. A mulher virou
numa ruela qualquer, o escuro a engoliu, Mauro oscilou. Alguém o atingiu, o
arrastou. Ao seu lado, algo miava. Sua cabeça doía. Levantou-se, olhou ao redor,
não havia ninguém. Nas mãos, um saco de lixo, o corpo de três gatos começava a
apodrecer em seu interior.
Voltava
para casa, olhos atrás de si, nas sombras. Ele sabia que era seguido, mas não
podia evitar. Estava louco. Tentou se esconder, se proteger, alguém o
acompanhou. Fechado em sua casa, ouviu alguém bater. Resistiu, evitou escutar,
abriu quando suas forças não eram suficientes para evitar a curiosidade. Queria
que fosse Daiana, Luciana, uma prostituta qualquer, barata. Queria sexo pra
esquecer, pra seguir em frente. Abriu a porta, encontrou olhos de desaprovação.
Viu
Felipe, em frente à sua casa, naquela madrugada. Ele disse algo, Mauro não
entendeu. Queria ajuda, um abraço. Recebeu um golpe. Nas mãos do amigo, uma
faca. Mauro estava louco, descontrolado. Aquele era seu amigo de tempos. O que
ele estava fazendo? O que ele faria em resposta? A faca cortou o ar, sibilou,
traiçoeira. Mauro caiu, derrubou o agressor, tomou dele a arma e o feriu, na
altura do ombro, um corte superficial. O agressor fugiu, ameaçando, urrando no
caos. Mauro não entendia, mas esquecia.
Viu-se
ainda mais longe, antes de tudo, antes de nada. Viu-se consertando um veículo,
mas o reparo era a última de suas intenções. Queria destruí-lo. Aquele motor
levaria para longe de si a mulher que amava. Levaria para outra cidade sua
única esperança de felicidade no mundo todo. Tiraria Daiana de seus braços, do
nome em sua aliança de casamento, da certidão de nascimento de Elizabeth.
Acabaria com sua vida. Antes disso, acabou com aquele carro, mas Daiana nunca
soube dessa sabotagem. Ela o dirigiu, acelerou, tentou fugir. A morte era
iminente.
Numa
das discussões, a loucura tomou conta de Mauro. Ele gritou, ofendeu. O novo
homem de Daiana tomou a frente, postou-se em sua defesa, levantou a voz e a
postura. Ele não era forte, não era valente, mas a amava. Ele não era
conhecido, mas seria. Agora, nas lembranças, era familiar, e Mauro se
perguntava como pudera esquecer de tudo aquilo. Felipe estava lá, ao lado de
Daiana. Felipe era o outro homem, o amante apaixonado, aquele que a tirara do
coração de Mauro.
Viu-se
admirar o estrago da morte de Daiana. Ela não seria mais sua, e isso doía.
Também não seria mais dele, de Felipe, daquele maldito outro. Não seria de ninguém. A culpa remoía, no entanto. Queimava
por dentro, doía, ardia como brasa nos pés. Felipe jurou vingança. A polícia
nunca comprovou a culpa de Mauro. Fora um acidente. Sabotagem, homicídio
doloso, nada disso sequer foi cogitado. Um acidente. Mas Felipe sabia a
verdade, e sabia que faria algo para mudar aquilo.
Mauro
se viu retornar do trabalho, cumprimentar Felipe no caminho. Agora, seu amigo.
Não se lembrava do passado, não se lembrava de sua própria história. A loucura
o corrompia, destruía seus neurônios, seus pensamentos. Cumprimentou o
companheiro de trabalho que, naquele dia, não trabalhou. Era estranho que ele
estivesse ali, próximo de sua casa. Morava em outro lado, em outro bairro. Mas
estava ali, por perto, e ele o cumprimentou, e isso era o suficiente. Depois,
sangue. Sua filha ao chão, estripada, marcada por uma faca impiedosa. A
primeira das vítimas.
Enlouquecer
fazia com que Mauro se culpasse por algo que não fizera. Felipe se aproveitou
disso. Tirou dele a filha, tirou a sanidade, tiraria ainda mais. Tirou a
esperança, o amor, a vontade. Tirou depois a própria crença, e o homem de
coragem que um dia fora Mauro não mais tinha certeza sobre sua inocência. Ele
podia ser um assassino, podia ser coisa pior. Matou crianças, ou assim pensava.
Enquanto isso, Felipe sorria, cruel. Matava, fazia sangrar.
Aquela
era sua vingança.
Tudo
agora se encaixava, tudo fazia sentido.
Mauro
se lembrou de tudo, choroso. Felipe estava sobre seu corpo, os punhos desciam
como trovões, vingativos e pesados. Alguns socos entortavam seus dentes e seu
maxilar, outros abriam seu supercílio e cortavam seus lábios. A dor era
passageira, distante. A dor maior estava ali, no peito de um homem que perdeu
tudo para a loucura.
A
sua loucura e a loucura do outro.
—Sabe
o que acontece agora, Mauro? —perguntou Felipe. —Você perde. No fim, você
perde. Um dia, tirou tudo o que eu queria de mim. Daiana. Você a tirou de mim,
a tirou do mundo. Agora, vou tirar tudo de você.
—Eu
já não tenho mais nada pra você tirar —Mauro agonizou, sem forças. O sangue
inundava sua boca. Sentia o gosto metálico na língua, nauseado.
—Ah,
tem sim. Tem uma coisa que eu sempre sonhei em tirar de você.
Mauro
se perguntou o que era, mas sua voz não foi capaz de formular a indagação.
—Eu
vou te contar o que é, cara. —Felipe se abaixou, o rosto colado ao rosto de
Mauro, os lábios unidos ao ouvido do companheiro. —A liberdade —sussurrou ele,
e sua palavra soprada feriu o peito do amigo enganado.
Felipe
se levantou, deixou a faca quedar ao solo, a lâmina tilintou. Então, com todas
as suas forças, gritou:
—Eu encontrei! —e havia um
sorriso em seu rosto a cada palavra. —Eu encontrei o assassino! Eu encontrei
esse maldito assassino!
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