15
HAVIA
UMA CORDA NAS MÃOS DE MAURO, UMA CORDA QUE RESOLVERIA SEUS PROBLEMAS. Sentado
em sua casa, em sua cama, ele chorava. A cabeça rodopiava, intercalando cenas
do corpo estripado de sua filha, do acidente sabotado de sua ex-mulher, do
suicídio inexplicável de Luciana.
Pensava
na tortura a que sua filha fora submetida antes de desfalecer. Pensava na
inocência de Daiana ao acelerar o carro que ele modificara previamente. Pensava
na criança carregada pela mulher que se debatia nos fios de cobre de um poste
de iluminação.
—Eu
vou me entregar à polícia.
Falou
para si mesmo. Estava sozinho. Sempre esteve sozinho. Sempre.
—Vou
confessar.
Confessaria
um crime de anos atrás, e também todos esses outros. Não sabia se era o
assassino das garotas, mas sabia que não se conhecia mais. Podia matar, podia
morrer. Não se importava.
Pegou
o telefone.
—Eu
preciso me entregar.
O
espelho refletia suas olheiras. Estava mais magro. Sua boca estava rachada pelo
stress. Seus olhos estavam vermelhos pelo sono, mas não tinha vontade de
dormir.
Discou
o primeiro dos números.
Lembrava-se
da faca na bolsa de Luciana.
—E
se ela fosse a assassina?
Era
uma hipótese. Como saber agora? Ela estava morta. Como Daiana. Como ele
próprio.
Discou
mais um número.
As
imagens se confundiam. O corpo de Elizabeth, o acidente de Daiana, o suicídio
de Luciana, o ferimento de Felipe, as atrocidades de Rubens. Três gatos mortos,
sangrando. Uma rua desconhecida. Uma porta barrada por sofás e armários. Uma
faca coberta de sangue. Um estranho no espelho. O beijo de uma fantasma. Tudo
se misturava, sonho e realidade, loucura e medo.
Discou
outro número.
—Você
podia evitar tudo isso.
Daiana.
—E
você podia voltar para seu lugar debaixo da terra.
Ela
sorriu.
—Eu
nunca saí de lá. Não sou um fantasma. Nunca estive aqui. Você me trouxe. Você
me criou. Você criou tudo isso.
—Cale
a boca.
—Você
podia evitar tudo isso mesmo.
—VOCÊ
NÃO EXISTE!
Gritou,
ouviu seu grito. Estava sozinho. O espelho ria de sua loucura. Arremessou seu
sapato no reflexo, estilhaçando-o.
—Respire
e pense, Mauro —Daiana dizia. —Pare de mentir para si mesmo. Pare de —
—Para
de me incomodar —chorou aquele homem insano, abraçando os joelhos, deixando que
o telefone caísse no chão, mudo. —Para de me seguir, de me enlouquecer. Morra,
Daiana. Morra de uma vez por todas.
—Eu
já estou morta, queridinho. Você me matou.
—NÃO!
—Sim,
e você sabe bem disso.
—Eu
não... eu não me acostumei com a sua ausência. Eu nunca aceitei, nunca... nunca
entenderia que você tinha me deixado. Eu precisava de você.
—Agora
eu estou aqui —disse ela, os braços abertos. —Morta, mas aqui. Sua. Quer
transar? Ainda posso te dar prazer. Posso ser sua para sempre, agora. Para a
eternidade. Sempre bonita, com os peitos firmes e as coxas sem estrias. Quer me
comer, Mauro? Elizabeth está morta, mas você pode tentar de novo! Ah, é, eu me
esqueci, você já tentou. Pediu por mim, pra que eu voltasse, e transou com a
primeira vagabunda que teve a oportunidade. Colocou sua semente naquela vadia,
não é? E agora ela tá morta, e você, sozinho. Feliz?
Mauro
gritou, jogou tudo o que tinha por perto na direção de Daiana, mas nada a
atingiu. Ela não estava ali. Ela não existia, e ele sabia disso.
—Some...
Some, por favor. —Era uma súplica. —Desaparece pra nunca mais voltar, pelo amor
de deus...
—Eu
só preciso ouvir uma coisa, Mauro.
Ele
engoliu em seco.
—Eu
sinto muito. Me desculpa pelo que fiz, mas eu não aguentei. Sem você, eu... Eu
não era nada.
—E
ainda não é nada. Mas pode ser, se quiser. Não se engane. O mundo é cruel. Você
errou. Fez coisas que não devia. Coisas aconteceram, meu amor. Todas elas estão
aí, na sua cabeça. Você precisa se lembrar.
—Do
que você tá falando?
Daiana
suspirou.
—Volte
para sua mente. Tá tudo aí dentro. Se você não se lembrar, vai mentir. O mundo
vai mentir. Você vai se enganar, vai se deixar levar pela maré.
—Me
explica.
—Tarde
demais —disse ela, sorrindo, e suas pernas desapareceram. —Agora eu vou embora,
e você vai ficar sozinho. Você precisa lembrar, Mauro. Por Elizabeth.
Aquelas
foram as últimas palavras de Daiana antes de desaparecer, e Mauro teve certeza
de que ela nunca mais voltaria.
—Por
Elizabeth... —Mauro repetiu, refletindo. Buscava em sua mente, mas nada
encontrava. —Por Elizabeth... —Aquilo só podia significar uma coisa: era ele. O
assassino, o culpado. Era ele. Sua mente pregava peças, sua loucura o enganava.
Daiana o alertou, mas ele não conseguia enxergar.
—Fui
eu —disse para o que restara do espelho. —Fui eu, não é?
O
espelho não respondeu.
O
mundo ao redor de Mauro pareceu confuso. Ele ouvia gritos, ouvia murmúrios,
ouvia súplicas de sobrevivência. Alguém pedia para não se ferir, outra voz
implorava para manter-se em pé. Uma garota gritou. Sangue escorria das paredes,
manchava o chão e o teto. As paredes ganharam olhos, fitaram-no com
desaprovação, com náusea. Então ganharam bocas, e todas elas grunhiram,
rangeram e gritaram, incriminando-o. Por último, ganharam braços, mãos, dedos,
e tudo apontava para sua loucura, para seu veneno.
—Foi
você —diziam as paredes. —Você é um assassino nojento. Você é um maldito
assassino!
Mauro
cobriu seus ouvidos, fechou os olhos, lacrou a boca e se debateu no colchão.
Seu corpo doía, sua cabeça era como um vulcão tomado por magma. Queria gritar,
queria saltar da janela, queria correr nas ruas até que um carro o atingisse.
Queria ficar ali, se esquecer de tudo, fingir que o mundo era o paraíso e não o
inferno. Queria sumir, parar na lua, morrer sozinho como sempre viveu. Queria
algo que não sabia o quê era.
—Você
é um assassino de merda!
As
paredes repetiam, culpando-o, mostrando a ele a verdade que sua mente escondia.
—Sim,
eu sou —admitiu.
O
celular tocou. Era Rubens, provavelmente já ciente da morte de Luciana. Mauro
recusou a ligação, desligou seu aparelho. Haviam outras chamas perdidas e
mensagens, mas ele não fez questão de lê-las. Levantou-se, foi até o banheiro,
jogou o celular na privada e urinou sobre ele. Imaginava o rosto de Rubens
naquele aparelho, e isso o confortou, mas quando a descarga não foi capaz de
levá-lo ele percebeu que teria de se acostumar com o rosto de seu antigo patrão
dentro de seu vaso sanitário para sempre.
—Beba
isso, filho de uma vaca —dizia.
Rubens
ria, a boca coberta de espuma.
—Vai
se ferrar.
Mauro
fechou a tampa, não lavou as mãos. Abriu os armários da cozinha, virou todas as
panelas no chão, quebrou um a um seus pratos e seus copos. Derrubou os
talheres, os pires e as xícaras, queimou as toalhas e os panos de prato. A casa
cheirava a incêndio, mas ele estava seguro. Era infeliz demais para morrer.
Deitou-se,
exausto. Gritou, chorou sozinho, não estava satisfeito. Então riu, gargalhou,
mas não havia uma piada para lhe fazer feliz. Chorou mais uma vez, socou as
paredes, o ferimento em sua mão se abriu novamente. Provou do próprio sangue,
sentiu o gosto do ferro. Tentou estancar os sangramento, desistiu quando parou
para admirar aquele rastro escarlate em sua pele. Lhe fez bem vê-lo, sentir-se
vivo, saber que era capaz de sangrar como os homens. Ele também fora um homem
um dia, não é?
Agora,
não mais.
Fechou
os olhos, mas ainda via cenas confusas. Felipe, Rubens, Elizabeth, Daiana,
Luciana, Júlia, outras garotas assassinadas. Uma faca cortava na noite, meninas
gritavam, pais choravam o desespero da perda. Ele era um dos pais. Ela era uma
das meninas chorosas. Ele sentira a dor da perda. Ela fora assassinada. Assim
era o fim, o final da história que não tinha o direito de ter um final feliz.
As imagens se confundiam. Parte era sonho, parte pesadelo. Tudo estava
misturado, rodopiando e batendo contra os seus olhos. A verdade doía como
estacas. A loucura não o protegia, muito pelo contrário. A morte parecia uma
solução, mas ele estava cansado demais para morrer.
De
olhos fechados, Mauro apagou, sem dormir, sem descansar. Apenas saiu dali, de
sua vida, de seu corpo.
Quando voltou, arrependeu-se
por viver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário