II
Eu
aprendi cedo a me transformar em lince.
Foi
uma coisa que fez minha vida mudar por inteiro. Não que me tornar um gato seja
interessante assim, mas me possibilitou conhecer lugares que eu nunca imaginei
conhecer. O telhado das casas, o topo das construções, eu os alcançava sem
dificuldade. Saltava, via o céu se comprimir, o vento tentar me rasgar, e então
pousava, indiferente à altura, com a maciez de uma pluma, seguindo em meu
desfile de cauda levantada.
Mas
eu pouco utilizava meu dom na cidade onde vivia. Não seria legal para os homens
sem mágica ver um lince por aí, à solta. Eles ficariam, no mínimo, intrigados.
Nessas
horas eu praguejava por não me tornar um gato comum.
Um
dia, estava eu a deslizar sobre as rodas de meu skate, como muito tenho o
costume de fazer, quando eles apareceram. Os mesmos magos que me maltratavam,
que ousavam apontar suas imundices em meu rosto e me culpar por nascer filho de
pai sem magia. Eram herdeiros da guerra, eu sabia. Eu era somente um garoto,
filho de porcos, sem dinheiro e sem poder.
Durante
muitos anos, eu sofri silenciado. Deixava que me cobrissem os lábios, escondia
as marcas no corpo após as torturas que me eram impostas.
Naquele
dia foi diferente.
Eu
pensava em minha mãe, em sua loucura. Pensava no rosto de meu pai, contorcido
pela ira do preconceito, expurgado somente por ser diferente, ou ser normal num mundo de diferentes. Pensava
na vida de merda à qual eu tinha de me submeter, sem entender o mundo, sem
entender meus poderes, sem entender a mim mesmo.
Quando
eles me provocaram, eu revidei. Retruquei, inicialmente com palavras, logo após
com a magia que entrelaçava meus dedos. O vento solidificado me servia de
rampa, mas ali mostrou-se de uso variável, afagando o pescoço de um deles
enquanto lhe privava do ato de respirar. Eu poderia tê-lo matado, ou todos
eles.
Não
o fiz.
Deixei-os
ali, com meros resquícios de consciência, e fugi. Não fugi para longe,
entretanto. Fugi para sobre os muros, nos olhos de um felino de tamanho
incomum, na pelugem de um animal cuja inocência se provava com um simples
ronronar. Dali, assisti enquanto uma viatura policial encostou, ajudou os
garotos a serem carregados para uma ambulância. Eu ouvi uma enfermeira alertar
seu companheiro de que um deles teria sequelas cerebrais pela falta de
oxigênio. Outro chegou tão perto da morte que era inacreditável o fato dele
poder respirar novamente. Aquilo era uma atrocidade e, pior do que isso, uma
atrocidade que a milícia jamais seria capaz de explicar.
Eu
me senti culpado por instantes, mas a culpa não era minha.
Quem
fez aquilo era um garoto, um feiticeiro, um bruxo.
Eu
era somente um lince.
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